DIREITO CIVIL COMENTADO - Arts. 156, 157 -
Do Estado de Perigo e Da Lesão - VARGAS, Paulo S. R.
Livro III – Dos Fatos
Jurídicos (art. 104 a 184)
Título I – Do Negócio
Jurídico – Capítulo IV –
Dos Defeitos do
Negócio Jurídico – Seção IV e V–
Do Estado de Perigo e
Da Lesão- vargasdigitador.blogspot.com
Art 156. Configura-se o estado de perigo quando
alguém, premido da necessidade de salvar-se, o a pessoa de sua família, de
grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.
1, 2, 3
Parágrafo único. Tratando-se de pessoa não pertencente
à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias.
1.
Estado de perigo
Não havia no Código de 1916 menção ao estado de perigo como defeito do
negócio jurídico. À sua falta, doutrina e jurisprudência buscavam amoldar as
hipóteses de estado de perigo ao conceito de coação. Na coação, contudo, a
vítima age influenciada pela premente necessidade de afastar um dano
dolosamente ameaçado pelo coator. No estado de perigo, por sua vez, o perigo
não é causado ou ameaçado por ninguém, ocorrendo espontaneamente, sendo apenas
aproveitado por quem dele tenha tido conhecimento. É o que ocorre, por exemplo,
com alguém que vende um imóvel a preço muito abaixo de seu valor para conseguir
custear tratamento médico do filho. Enquanto que a coação é caracterizada pela
vontade de coagir (elemento subjetivo) no estado de perigo a ameaça de dano é
objetiva e não foi causada por ninguém (objetiva). Da mesma forma como ocorre
com a coação, contudo, o declarante não manifesta sua vontade livremente, e sim
premido pela urgente necessidade de afastar um grave dano a própria pessoa u a
pessoa de sua família ou a ela próxima (parágrafo único).
2.
O estado de perigo como defeito do negócio jurídico
Para que o estado de perigo possa se caracterizar como um vício de
consentimento, levando à anulação do negócio jurídico é necessário que
concorram alguns requisitos. Primeiramente, é necessário que o negócio jurídico
celebrado tenha levado o declarante a assumir uma obrigação excessivamente
onerosa. A obrigação assumida deve ser de tamanha onerosidade que jamais teria
sido assumida em situações normais. Além disso, é necessário que o negócio
jurídico tenha sido celebrado para afastar o estado de perigo em que o
declarante, seu familiar ou pessoa a ele próxima se encontrava. Em outras
palavras, é necessário que a necessidade de afastar esse estado de perigo tenha
sido a causa, a razão determinante da celebração do negócio jurídico. Por fim,
mantendo a mesma baliza utilizada em todos os demais defeitos do negócio
jurídico, nos basta o simples vício subjetivo, íntimo e interior de quem
manifesta a vontade para caracterizar o defeito do negócio jurídico. O
legislador protege sempre aquele que contrata de boa-fé, sem conhecer o vício
que limita ou condiciona a vontade do outro contratante. Por essa razão, apenas
haverá defeito do negócio jurídico se a outra parte conhecer souber que a
declaração de vontade a ele dirigida foi feita para que o declarante possa afastar
um perigo iminente a ele próprio ou a alguém de sua família. Sem que essa outra
pessoa conheça esse estado de perigo do declarante, o negócio não poderá ser
anulado.
3.
Consequência do estado de perigo
Uma vez caracterizado o estado de perigo como vício de consentimento de
um negócio jurídico, prevê o Código Civil expressamente apenas a possibilidade
de que o contratante prejudicado busque a anulação do negócio (CC, art 156 e
177). Contudo, apesar do silêncio do Código, nada impede que se preserve a validade
do negócio jurídico mediante o reequilíbrio da prestação excessivamente onerosa
a que se obrigou aquele que realizou o negócio premido pela necessidade de
afastar um perigo iminente. É a essa conclusão que chegou a III Jornada de
Direito Civil, resultando na edição do Enunciado n. 148: “ao estado de perigo (art 156) aplica-se, por analogia, o disposto no §
2º do art 157”. Por sua vez, diz o § 2º do art 157 que: “não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento
suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito”. (Direito Civil Comentado apud Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalina.
Material coletado no site Direito.com
em 19.01.2019, corrigido e
aplicadas as devidas atualizações (VD)).
O estado de perigo –
conceito
O Código Civil de 2002 apresenta dois institutos, no capítulo concernente
aos defeitos do negócio jurídico, que não constavam do Código de 1916: o estado
de perigo e a lesão.
Constitui o estado de perigo, a situação de extrema necessidade que
conduz uma pessoa a celebra negócio jurídico em que assume obrigação
desproporcional e excessiva. Ou, segundo Moacyr de Oliveira, constitui “o fato
necessário que compele à conclusão de negócio jurídico, mediante prestação
exorbitante” (Estado de Perigo, in Enciclopédia Saraiva do Direito, p. 504, apud Direito Civil Comentado – Parte Geral,
Roberto Gonçalves, V. I, p. 430, 2010 Saraiva – São Paulo).
Exemplos clássicos de situação dessa espécie são os do náufrago, que
promete a outrem extraordinária recompensa pelo seu salvamento, e o de Ricardo
III, em Bosworth, ao exclamar: “A
horse, a horse, my kingdom for a horse”.
A doutrina menciona,
ainda, outras hipóteses, como a daquele que, assaltado por bandidos, em lugar
ermo, se dispõe a pagar alta cifra a quem venha livrá-lo da violência; a do
comandante de embarcação às portas do naufrágio, que propõe pagar qualquer
preço a quem venha socorrê-lo; a do doente que, no agudo da moléstia, concorda
com os altos honorários exigidos pelo cirurgião; a da mãe que promete toda a
sua fortuna para quem lhe venha salvar o filho, ameaçado pelas ondas ou de ser
devorado pelo fogo; a do pai que, no caso de sequestro, realiza maus negócios
pra levantar a quantia do resgate etc. (Sílvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 218;
Washington de Barros Monteiro, Curso, cit.,
v. 1, p. 212; Caio Mário da silva Pereira, Instituições,
cit., p. 338; Moacyr de Oliveira, Estado,
cit., p. 506; Jean Charles Florent Demolombe, Traité, cit., p. 141, apud,
Roberto Gonçalves,
Direito civil comentado, 2010 – p. 431 - pdf – parte geral).
Merece ser também citado exemplo de inegável atualidade e característico
de estado de perigo, que é o da pessoa que se vê compelida a efetuar depósito
ou a prestar garantia sob a forma de emissão de cambial ou de prestação de
fiança, exigidos por hospital, para conseguir internação ou atendimento de
urgência de cônjuge ou de parente em perigo de vida. Há no direito civil outras
situações em que a necessidade atua como fundamento jurídico da solução do
problema: passagem forçada, gestão de negócios, casamento nuncupativo,
testamento marítimo, depósito necessário, pedido de alimentos etc. A
anulabilidade do negócio jurídico celebrado em estado de perigo encontra
justificativa em diversos dispositivos do CC/2002, principalmente naqueles que
consagram os princípios da boa-fé, e da probidade e condicionam o exercício da
liberdade de contratar à função social do contrato (arts 421 e 422). A
propósito, preleciona Teresa Ancona Lopez: “Evidentemente se o declarante se
aproveitar da situação de perigo para fazer um negócio vantajoso para ele e
muito oneroso para a outra parte não há como se agasalhar tal negócio. Há uma
frontal ofensa à justiça comutativa que deve estar presente em todos os
contratos. Ou, no dizer de Betti, deve haver uma equidade na cooperação”. (O estado de perigo
como defeito do negócio jurídico, Revista do Advogado, n. 68, p. 56,
apud, Roberto
Gonçalves, Direito civil comentado, 2010
– p. 431 - pdf – parte geral).
A necessidade, pode gerar e servir de fundamento a diversas situações e a
institutos jurídicos que, por terem a mesma fonte, apresentam certa similitude.
Podem, assim ser considerados institutos afins do estado de perito a lesão, o
estado de necessidade e a coação, dentre outros.
Art 157. Ocorre
a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se
obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.
1, 2, 3
§ 1º
Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo
em que foi celebrado o negócio jurídico.
§ 2º
Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente,
ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.
1.
Lesão
Diferentemente do que ocorre no estado
de perigo, em que a onerosidade excessiva da prestação é aferida de modo
absoluto, o prejuízo que caracteriza a lesão deve ser aferido em comparação com
a contraprestação a que a pessoa lesada irá receber. Com o reconhecimento de
que a foça normativa do contrato encontra seu fundamento também na realização
da operação econômica subjacente, a própria noção de justiça contratual
deslocou seu foco para os aspectos materiais do contrato, sendo inconteste
atualmente que, ao lado da liberdade contratual e da autonomia da vontade, o
contrato além de formalmente legítimo deve também ser materialmente justo. Isso
significa que nos contratos deve haver um necessário equilíbrio,
proporcionalidade ou equivalência entre prestação e contraprestação. A partir
da ideia de equivalência material do contrato, a justiça contratual deixa de ser
apenas formalmente considerada, impedindo-se que a liberdade contratual seja
exercida de modo a tornar-se demasiadamente onerosa ou excessivamente vantajosa
a uma das partes em detrimento da outra.
Não se pretende, com isso, afirmar que deve haver verdadeira paridade entre as
prestações. O que deve haver é um “equilíbrio aproximado” entre as prestações,
de modo que cada um possa encontrar uma vantagem na celebração do contrato.
Ocorrendo quebra desse equilíbrio material entre as prestações dos contratos bilaterais
por premente necessidade, ou por inexperiência de um dos contratantes, ocorrerá
a lesão.
2.
Requisitos de caracterização da lesão
Não basta a simples desproporção entre
as prestações de um negócio jurídico bilateral para caracterizar a lesão. Vício
de vontade que é, é necessário que essa desproporção seja fruto de uma
equivocada apreensão da realidade do lesado, seja ela causada por simples
inexperiência ou por premente necessidade. É justamente esse elemento subjetivo
que caracteriza a lesão como vício de consentimento. A lesão se caracteriza
quando a pessoa, por inexperiência, celebra um negócio jurídico sem ter
consciência de que faz um negócio que lhe é prejudicial. Essa fala apreensão da
realidade econômica do negócio em muito se assemelha ao erro, mas dele difere
porque na lesão, o inexperiente conhece a desproporção, mas com ela concorda
por não conseguir dimensionar precisamente suas consequências. Ou ainda quando,
mesmo tendo essa consciência, se sente determinantemente compelida a realizar o
negócio por estar sob premente necessidade. É o que ocorre, por exemplo, com a
pessoa que vende seus bens a preços irrisórios por estar desempregada e ter
dificuldades de sustentar a si própria e a seus dependentes. Neste ponto, a
lesão difere do estado de perigo na medida em que tem de reconhecer com muito
mais abrangência as circunstâncias que podem dirigir a vontade do lesado. Não é
só a necessidade de afastar um perigo à própria pessoa ou aos familiares e
pessoas próximas. Na lesão, o perigo pode ser até mesmo puramente patrimonial
(vender bens para levantar o dinheiro necessário para pagar o aluguel e evitar
o despejo). Além disso, não exige o código que a contraparte que recebe
prestação desproporcionalmente vantajosa tenha conhecimento da inexperiência ou
da premente necessidade do lesado. Tal conhecimento é presumido pela enorme e
injustificada vantagem que recebeu do lesado. Todavia, tal presunção é
relativa, levando apenas a uma inversão no ônus da prova. Provado pelo lesado
sua condição de inexperiente ou de que agiu sob premente necessidade,
inverte-se o ônus da prova dispensando-o de provar que o beneficiado contratou
com a manifesta intenção de se aproveitar dessa fragilidade do lesado. De todo
modo; não fica o lesado dispensado de provar sua inexperiência ou sua condição
de premente necessidade.
3.
Lesão nos contratos empresariais
Dizia o artigo 220, do revogado Código
Comercial que “a rescisão por lesão não
tem lugar nas compras e vendas celebradas entre pessoas todas comerciantes;
salvo provando-se erro, fraude ou simulação”. O espírito que permeava esse
dispositivo é o de que não se pode admitir ou presumir que os empresários desconheçam
as particularidades da atividade que exploram. Se desconhecem, são maus
empresários e, por imposição constitucional da livre concorrência, o direito
não pode socorrê-los neste ponto. Segundo Antônio Junqueira de Azevedo, “uma entidade jurídica empresarial
ineficiente pode – ou até mesmo deve – ser expulsa do mercado, ao contrário da
pessoa humana que merece proteção, por não ser “descartável”. (1) Diante de tais princípios, a doutrina tem recusado aplicação do
instituto da lesão por inexperiência aos contratos empresariais. É exatamente
isso o que diz o enunciado 28 da I Jornada de Direito Comercial: “Em razão do profissionalismo com que os
empresários devem exercer sua atividade, os contratos empresariais não podem
ser anulados pelo vício da lesão fundada na inexperiência”. (Direito Civil Comentado apud Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalina.
Material coletado no site Direito.com
em 20.01.2019, corrigido e
aplicadas as devidas atualizações (VD)).
(1) Antônio Junqueira
de Azevedo, Novos estudos e pareceres de direito privado, São Paulo, Saraiva, 2009, p. 185
Segundo Roberto Gonçalves, as diferenças entre estado de perito e lesão
são tão sutis que alguns doutrinadores sugerem a sua fusão num único instituto.
Ainda durante a tramitação do Projeto de Código Civil ao Congresso Nacional
duas emendas, as de n 183 e 187, propunham a supressão do atual art 156,
relativo ao estado de perigo, por entender que esse instituto, em última
análise, se confundia com a lesão.
A elas respondeu o relatório da Comissão Revisora que os “dois institutos
– o do estado de perigo e o da lesão – não se confundem. O estado de perigo
ocorre quando alguém se encontra em perigo, e, por isso, assume obrigação
excessivamente onerosa. Aludindo a ele, Espínola (Manual do Código Civil Brasileiro, Vol. III, parte primeira, pp.
396/397) dá este exemplo: “Será alguma vez um indivíduo prestes a se afogar
que promete toda a sua fortuna a quem o salve de morte iminente””.
Prossegue o aludido relatório: “A lesão ocorre quando não há estado de
perigo, por necessidade de salvar-se; a ‘premente necessidade’ é, por exemplo,
a de obter recursos. Por outro lado, admitindo o § 2º do art 155 (atual 157) a suplementação da
contraprestação, isso indica que ela só ocorre em contratos cumulativos, em que
a contraprestação é um dar (e não um fazer). A lesão ocorre quando há usura real. Não há lesão, ao contrário
do que ocorre com o estado de perigo, que vicie a simples oferta. Ademais, na
lesão não é preciso que a outra parte saiba da necessidade ou da inexperiência;
a lesão é objetiva. Já no estado de perigo é preciso que a parte beneficiada
saiba que a obrigação foi assumida pela parte contrária para que esta se salve
de grave dano (leva-se em conta, pois, elemento subjetivo)”.
Conclui, então, o mencionado relatório: “Por isso, a existência dos dois
institutos, pois só o estado de perigo ou só a lesão não bastam para coibir
todas as hipóteses que se podem configurar. E a disciplina deles, conforme as
hipóteses em que incidem, é diversa, como se viu acima. (José Carlos Moreira Alves, A Parte Geral, cit., p. 143-145, apud Direito Civil
Comentado – Parte Geral, Roberto Gonçalves, V.
I, p. 432, 2010, Saraiva – São Paulo).