terça-feira, 1 de outubro de 2019

Direito Civil Comentado - Art. 541, 542, 543 - continua - Da Doação – VARGAS, Paulo S. R.


Direito Civil Comentado - Art. 541, 542, 543 - continua
- Da Doação – VARGAS, Paulo S. R.

Parte Especial - Livro I – Do Direito das Obrigações
Título VI – Das Várias Espécies de Contrato
 (art. 481 a 853) Capítulo IV – Da Doação
Seção I – Disposições Gerais
- vargasdigitador.blogspot.com

Art. 541. A doação far-se-á por escritura pública ou instrumento particular.

Parágrafo único. A doação verbal será válida se, versando sobre bens móveis e de pequeno valor, se lhe seguir incontinenti a tradição.

Como alerta Nelson Rosenvald, o caput do artigo demonstra que a doação é contrato forma, não sendo aperfeiçoado apenas por manifestação verbal, sendo indispensável a forma escrita, como de substância do ato, sob pena de invalidação por nulidade da doação que lese o ora preceituado (CC 166, V).

 A forma escrita será da essência da doação de bens móveis, exceto no tocante a bens de pequeno valor, em que excepcionalmente se admitirá a forma verbal pela própria exigência de dinamicidade no tráfego jurídico. Justamente por isso, qualquer outro negócio jurídico que envolva a transmissão da posse ou propriedade de bens moveis de pequeno valor será realizado por escrito, sob pena de se presumir a doação na ausência de retribuição imediata (v.g., penhor, locação).

A chamada doação manual torna o contrato real, pois a tradição se torna elemento apto à própria configuração do contrato. Como a expressão pequeno valor é um conceito jurídico indeterminado, interpretar-se-á o seu significado à luz da diretriz da concretude. Ou seja, as circunstâncias do caso e as condições econômicas das partes determinarão o critério de razoabilidade para aferir se é ou não possível dispensar a forma escrita.

Tratando-se de doação de bens imóveis, aplica-se o CC 108, impondo o teto de trinta salários-mínimos como limite para a válida realização de uma doação por instrumento particular. Acima de tal valor, a escritura pública é de forma ad substantiam. (ROSENVALD Nelson, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 595 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 01/10/2019. Revista e atualizada nesta data por VD).

No comentário de Ricardo Fiuza, há um histórico cujo texto refere-se Relatório Ernani Satyro, apenas uma alteração para acrescer o parágrafo único ao art. 541, tratando sobre a doação verbal. O objetivo da emenda foi restabelecer a redação do art. 1.168 do CC de 1916, cujo parágrafo único fora injustificadamente suprimido do texto do anteprojeto.

A doutrina mostra que o contrato de doação deve revestir-se, de regra, da forma solene (caput do artigo), como essencial à validade do negócio jurídico, visto que prescrita pela dicção legal do artigo. É celebrado por escritura pública, se a coisa doada for bem imóvel, de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente do País (art. 108), dependendo do registro imobiliário para a translatividade dominial (aquisição da propriedade), prevalecendo, daí, o registro sobre qualquer outro negócio (REsp 260.051-SP) ou por instrumento particular, em caso de imóveis abaixo daquele valor ou de móveis de valor expressivo apenas alcançar bens moveis de pequeno valor e se lhe seguir incontinente a tradição. A jurisprudência tem, todavia, temperado a norma, como observamos: “Doação à namorada. Empréstimo. Matéria de prova. O pequeno valor a que se refere o art. 1.168 do Código Civil há de ser considerado em relação à fortuna do doador: se se trata de pessoa abastada, mesmo as coisas de valor elevado podem ser doadas mediante simples doação manual (Washington de Barros Monteiro) (...)” (STF, 3’ II, REsp 155.240-Ri, rei. Mm. Antonio de Pádua Ribeiro, DI de 5-2-2001). (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 288 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 01/10/2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Nos apontamentos de Marco Túlio de Carvalho Rocha, a forma de doação é: a) livre, se tiver por objeto bem móvel de pequeno valor transferido imediatamente; b) por escritura pública, se de imóvel de valor superior a 30 salários mínimos (CC, 108); c) por escrito particular, nos demais casos (CC 541, caput). A exigência de forma escrita é da substância do ato, i.é, o negócio é nulo se desatendida (CC 166, IV).

Desse modo, se ocorre divergência entre herdeiro e terceiro que se diz donatário de bem pertencente ao de cujus, cabe ao pretenso donatário realizar a prova da doação mediante a apresentação de escrito de autoria do de cujus, sob pena de não se poder considerar realizada doação válida. (Marco Túlio de Carvalho Rocha apud Direito.com acesso em 01.10.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 542. A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante legal.

Suporte interessante trazido por Nelson Rosenvald, relacionado ao nascituro já possuir direitos da personalidade, como atributo inerente a qualquer ser humano, desde a concepção. Porém, é carecedor de capacidade de direito, atributo apenas concedido àqueles que já nasceram com vida.

Ocorre que o direito eventual que lhe assiste para a aquisição de direitos patrimoniais (extensivo à transmissão causa mortis, CC 1.798) é suficiente para permitir a validade do negócio jurídico de doação em período anterior ao nascimento, mas posterior à concepção.

Contudo, apesar de válido o negócio jurídico, a condição suspensiva do nascimento com vida provoca a ineficácia temporal do contrato (CC 125), ao aguardo do evento futuro e incerto. Como não se pode falar em invalidade superveniente pois o negócio nasce valido ou inválido, o nascimento sem vida provoca a definitiva ineficácia do negócio jurídico. Só se cogitará de invalidade caso a doação tenha sido realizada sem que a concepção realmente tivesse ocorrido. A nulidade resultará da impossibilidade do objeto do contrato (CC 166, II).

A menção à aceitação do representante legal significa que a anuência deste se insere no plano de validade. Ou seja, sem a concordância do curador do nascituro, mesmo que o nascimento se produza com vida, não haverá a doação pela falta da representação. (ROSENVALD Nelson, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 595 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 01/10/2019. Revista e atualizada nesta data por VD).

Confirma a doutrina de Ricardo Fiuza, ser possível a coação feita ao nascituro (o infans conceptus, cujo nascimento se aguarda como fato futuro certo), visto que a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro (art. 2º, segunda parte do CC/2002). O contrato de doação tem a sua validade, desde que já concebido o donatário ao tempo em que é estabelecida a liberalidade e não do momento em que se dá a aceitação, segundo doutrina João Luiz Alves. Trata-se de doação sob condição suspensiva: caducará a doação, se o nascituro for natimorto, ou seja, dado à luz sem vida, o que há de se distinguir do feto que, nascido não viável, de vida efêmera, morre imediatamente após o nascimento. Pelo ato instante e fugaz de vida obtém direitos, tomando-se definitiva a doação. A aceitação, necessária para aperfeiçoar o contrato, dar-se-á pelo seu representante legal (v. art. 1.779, sobre a “curadoria do ventre”). Ela é condicional ao nascimento com vida do nascituro (João Luiz Alves, Código Civil da República dos Estados Unidos do Brasil anotado, Rio de Janeiro, E Briguiet, 1917; Sérgio Abdala Senúão. Os direitos do nascituro — aspectos cíveis, criminais e do biodireito, 2. ed. Belo Horizonte, Dei Rey, 2000.) (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 288 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 01/10/2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Como esclarece Marco Túlio de Carvalho Rocha, a personalidade tem início com o nasci- mento com vida, mas, como tradicionalmente é afirmado, a lei resguarda os interesses do nascituro. A proteção dos interesses do nascituro é utilizada por grande parte da doutrina brasileira para a defesa da tese Concepcionista, i.é, a que considera a personalidade a partir da concepção ou da nidação (sabe-se, ela é um passo fundamental no processo de gestação, pois permite o início do desenvolvimento do embrião. A nidação acontece quando o zigoto, o óvulo fecundado pelo espermatozoide, se desloca até o útero e se fixa em sua parede interna. A parede interna do útero é chamada de endométrioNota VD).

O fato de a lei assegurar a proteção de interesses significa o reconhecimento de que a dignidade humana não respeita as fronteiras da existência autônoma; desde antes do nascimento e mesmo após a morte há elementos da pessoa que merecem proteção jurídica. Do mesmo modo que a proteção de traços da personalidade após a morte não significa que esta se estenda para além do marco final, a proteção de elementos próprios da personalidade não justifica a tese Concepcionista.

Em regra, o nascituro não é admitido nas relações jurídicas; não pode vender, comprar, alugar, doar... A lei admite, no entanto, que seja feita doação sob a condição suspensiva de o donatário vir a nascer com vida. Implementada a condição, a obrigação assumida pode ser cobrada; se não vier a ser implementada, o negócio resta ineficaz.

Conforme o dispositivo em comento, o representante legal do nascituro é a pessoa legitimada a realizar tal negócio sob condição suspensiva. Os representantes do nascituro são, ordinariamente, seus pais. Na falta ou em caso de incapacidade destes, será o nascituro representado pelo curador da mãe, se houver, ou, se não houver, por curador ad hoc. (Marco Túlio de Carvalho Rocha apud Direito.com acesso em 01.10.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 543. Se o donatário for absolutamente incapaz, dispensa-se a aceitação, desde que se trate de doação pura.

Sob o prisma de Nelson Rosenvald, o Código Civil de 2002 inovou substancialmente com essa regra. Agora, dispensa-se a aceitação do absolutamente incapaz nas doações puras, posto serem elas realizadas em beneficio exclusivo. Quer dizer, não se trata de aceitação presumida ou ficta do incapaz. Simplesmente se aperfeiçoa a doação com a tradição do bem ao incapaz e com o registro da escritura de doação dobem imóvel, sem a participação do absolutamente incapaz e de seu representante legal. O consentimento do incapaz deixa de ser elemento integrativo do contrato.

Certamente, em se tratando de doação em prol de incapaz com encargo, a necessidade de aceitação através do representante será imperiosa, pois o modo produz obrigações para aquele. Mesmo na doação pura, provado ao juiz pelo representante que a liberalidade é desvantajosa ao incapaz, será ela reputada como ineficaz perante este. (ROSENVALD Nelson, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 596 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 01/10/2019. Revista e atualizada nesta data por VD).

Já em sua doutrina, Ricardo Fiuza aponta a doação pura, desprovida de encargos, vindo em benefício do absolutamente incapaz, desobrigando, por tais razões, a aceitação. A dispensa, em verdade, arrima-se em lógica jurídica, posto que a norma tem finalidade protetiva, dando ensejo de ele poder receber doações. A aceitação, no caso, não é mais ficta ou presumida. Deixa de ser exigida, como elemento integrativo à formação do contrato.

Revela notar o tratamento diferenciado dado pela lei ao nascituro (CC 542) para o qual se exige a aceitação do representante legal. E o nascituro não é, sequer, absolutamente incapaz, porque ainda não nasceu. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 289 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 01/10/2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Voltando ao Código de 1916 conta Marco Túlio de Carvalho Rocha, admitia que incapazes aceitassem doações puras. Realizava, com essa autorização, recorte na incapacidade civil dessas pessoas. A doutrina brasileira, no entanto, via na referida autorização uma contradição entre a capacidade para aceitar doações e o estado de incapacidade do donatário, como se a incapacidade civil devesse ser rígida e igual para todos os atos. A inovação do artigo em comento pretendeu, portanto, eliminar essa suposta antinomia eliminando a necessidade de aceitação. A regra, em sua literalidade, permite o absurdo de se poder tornar o incapaz proprietário de bens perigosos e inadequados por mero ato unilateral do doador. A supressão da consulta aos interesses do incapaz atenta contra sua dignidade, tal como constitucionalmente protegida e, pois, em tais casos, impõe-se a recusa da aplicação da regra em seu sentido literal, permitindo-se considerar nulo o ato de doação. (Marco Túlio de Carvalho Rocha apud Direito.com acesso em 01.10.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Direito Civil Comentado - Art. 538, 539, 540 - continua - Da Doação – VARGAS, Paulo S. R.


 Direito Civil Comentado - Art. 538, 539, 540 - continua
- Da Doação – VARGAS, Paulo S. R.

Parte Especial - Livro I – Do Direito das Obrigações
Título VI – Das Várias Espécies de Contrato
 (art. 481 a 853) Capítulo IV – Da Doação
Seção I – Disposições Gerais
- vargasdigitador.blogspot.com

Art. 538. Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.

No magistério de Nelson Rosenvald, mantendo a opção legislativa do Código Civil de 1916, o legislador atual definiu a doação expressamente como contrato, ou seja, negócio jurídico bilateral resultante do consenso entre doador e donatário acerca de uma liberalidade que resulta na transferência de um patrimônio, bens ou vantagens.

Correta a percepção do Código Civil com base na concepção contratualista alemã, pois, ao contrário do negócio jurídico testamente, o aperfeiçoamento da doação requer o acordo de vontades com a aceitação do donatário. Aliás, comprando a letra do art. 538 com a dicção do antigo art. 1,165 do Código Bevilaqua, vê-se acertada a supressão da parte final “que os aceita”, eis que tal expressão se torna redundante na medida em que o próprio dispositivo define a doação como um contrato, sendo o consenso um pressuposto de existência.

Frise-se, porém, que nem toda liberalidade resultante de um ato jurídico se monopoliza no contrato de doação. Aqui não se ajusta a figura da “doação indireta”. A remissão (negócio bilateral) e a renúncia (negócio unilateral) provocam atribuições patrimoniais gratuitas em benefício de devedores ou outras pessoas. Contudo, apenas na doação localizamos o deslocamento de um bem de um patrimônio a outro, gerando o justificado empobrecimento do doador e correlativo enriquecimento do donatário. Nas duas figuras citadas não se percebe aquela transferência que acarreta o empobrecimento. Aliás, daí é possível perceber a distancia entre a renúncia e a cessão gratuita de herança. Na primeira, o renunciante abdica de um patrimônio que não lhe pertence em prol do acervo hereditário (apenas um fato gerador tributário); na cessão, o cedente aceita a herança e, em seguida, transfere-a gratuitamente a um ou mais herdeiros ou terceiros, gerando o seu empobrecimento pela disponibilização de bens que já lhe pertenciam.

Destarte, o animus donandi requer a intenção de transferir a propriedade sem nenhuma contraprestação ou atribuição patrimonial. Também se afastam da doação os atos de cortesia, como o gesto de presentear amigos por ocasiões especiais. Esses costumes sociais se excluem do âmbito maior de uma doação. De qualquer maneira, é fundamental frisar que não há que investigar os motivos da doação. Ou seja, se a liberalidade decorreu de uma atitude despojada do doador ou de uma vaidade apenas com efeitos promocionais. A reserva mental não gera significado jurídico em nosso ordenamento, exceto quando conhecida pela outra parte (CC 110),

Será difícil perquirir o animus donandi em contratos tidos como “doações mistas”. São situações em que há o pagamento de um preço bem superior ao valor do que está sendo adquirido (v.g., adquirir apartamento de R$ 50.000,00 por R$ 150.000,00), sem que o excesso decorra de uma lesão ou qualquer vício de consentimento, mas sim de uma liberalidade. Para saber se o negócio se cuida de uma doação ou de uma compra e venda, será imprescindível aferir a proporção da liberalidade e da contraprestação na espécie, buscando-se aquela que tenha sido dominante, para então caracterizar o contrato e as normas que serão seguidas no tocante à evicção, vícios redibitórios e outras consequências próprias de cada instituto.

Não obstante a caracterização como negócio jurídico bilateral ínsita a qualquer contrato, a doação é um contrato unilateral, pois gera obrigações apenas para uma das partes, o doador. Também é um contrato gratuito, eis que todos os sacrifícios recaem sobre a pessoa do doador, na medida em que o donatário apenas obtém vantagens. Por fim, é um contrato consensual, dispensando-se a entrega do bem pra o seu aperfeiçoamento, sendo suficiente o acordo de vontades. A tradição e o registro do título funcionam como modos aquisitivos do direito real de propriedade (CC 1.226 e 1.227). (ROSENVALD Nelson, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 592-593 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 30/09/2019. Revista e atualizada nesta data por VD).

Segundo o histórico apresentado por Ricardo Fiuza, o presente dispositivo, em relação ao texto do anteprojeto, sofreu, por parte do Relatório Ernani Satyro, apenas uma pequena alteração de ordem redacional. Houve a substituição da frase “se obriga a transferir”, pela expressão verbal “transfere”. O objetivo da emenda, conta qual se opôs o Prof. Agostinho Alvim, foi restabelecer a redação do art. 1.165 do Código anterior. A redação prevista no Código de 1916, que não falava em obrigação, jamais foi obstáculo ao entendimento de que o contrato de doação é de per si obrigatório. Como bem enfatizou o Deputado Siqueira Campos, “mais certa é a linguagem empregada pelo Código atual. A doação induz ato realizado. É a denominação do instituto. Quando se pretende doar, não se integra ainda a figura. Mero pressuposto ou mera pretensão não se enquadra na figura. Esta se subentende realizada. Por isso a doação é a transmissão gratuita da coisa. Ao dizer-se que a doação é o contrato pelo qual alguém se obriga a transferir, dar a entender que se trata de pré-contrato ou promessa de doação, mas não é doação realizada, que é o que cogita o capítulo”.

Na doutrina exposta o dispositivo conceitua o contrato de doação, translativo de domínio, pelo qual o doador, em ato espontâneo e de liberalidade (animus donandi), transfere, a título gratuito, bens e vantagens que lhes são pertencentes ao patrimônio de outrem que, em convergência de vontades, os aceita expressa ou tacitamente. É contrato unilateral (obrigação unicamente exigida ao doador, salvo modal ou com encargo), gratuito, consensual e, em geral, solene (forma escrita).

O contrato serve de título de aquisição, a rigor não “transfere”. A translatividade do domínio ocorre pela tradição (coisa móvel) ou pelo registro (coisa imóvel), tal como sucede nos contratos de compra e venda e de troca ou permuta.

Direito comparado: Código Civil português (art. 940, alínea I); italiano (art. 769), espanhol (art. 618) e argentino (art. 1.789). O Código francês não a determina como contrato por ser ele unilateral, figurando a doação junto aos testamentos. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 287 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 30/09/2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

No entendimento de Marco Túlio de Carvalho Rocha, ao afirmar-se que a doação é um contrato, o dispositivo visa a superar a antiquíssima polêmica em relação aos efeitos da doação, pois, se no direito romano ela possuía efeitos meramente obrigacionais, no direito francês tornou-se modo de aquisição da propriedade e, portanto, dotada de efeitos reais.

No direito brasileiro, Agostinho Alvim admitiu efeitos obrigacionais às doações (Direito das obrigações: exposição de motivos. Revista do Instituto dos Advogados Brasileiros, Rio de Janeiro, 1972, ano VI, n. 24, p. 58). Para Pontes de Miranda e Paulo Luiz Neto Lobo, entre muitos outros, a doação é contrato real. Baseia-se essa segunda doutrina no fato de o dispositivo estabelecer que a doação “transfere” bens. Entende, por isso, que não resulta da doação a mera “obrigação de transferir”. Como a transferência da propriedade por doação depende da tradição, a consequência desse raciocínio é a de recusar o caráter vinculativo a qualquer contrato de doação ao qual não se siga, imediatamente, a tradição e a de recusar a validade jurídica às promessas de doação.

A melhor solução, a que melhor se assenta na interpretação sistemática é a primeira. Contratos reais são somente aqueles a que a lei defere o efeito de criar direitos reais. Todos os demais contratos são obrigacionais. É o que deflui da teoria geral dos contratos positividade no Código Civil. De outro lado, a jurisprudência brasileira não apenas consagrou os efeitos obrigacionais do contrato de doação como também tem admitido adjudicações compulsórias baseadas em promessas de doação, como ordinariamente ocorrem em ações de divórcio. Neste sentido, confiram-se as doutrinas de Arnoldo Wald (Obrigações e contratos, 12.ed. São Paulo. Saraiva, 1995, p. 118-119) e o seguinte julgado:

É possível inserir cláusula de doação de bens aos filhos, no acordo celebrado em separação judicial consensual, não havendo necessidade de lavratura posterior de escritura pública para sua convalidação. Se o caso insere cláusula de doação de bens ao filho, no acordo realizado em separação judicial consensual, e tendo ocorrido sua homologação, com trânsito em julgado, o ajuste torna-se irretratável, porque o ato se tornou perfeito e acabado, motivo pelo qual não pode o ex-cônjuge unilateralmente, pretender sua revogação, à alegação de fato superveniente, decorrente de ter constituído nova família, vindo a ter outro filho, máxime quando o nascimento deste tiver ocorrido tempos depois da sentença homologatória (TJMG-AC 328000-5, RDBFam 27/141).

Doação é contrato típico, unilateral (obriga apenas o doador), gratuito, de execução continuada ou instantânea, imediata ou diferida. Pode ser consensual ou formal. Não é contrato real.

O art. 5.1 da lei espanhola n. 14/2006 estabelece que a doação de gametas e de pré-embriões é um contrato gratuito, formal e confidencial. A doação é revogável se o doador vier a necessitar, para si, dos gametas doados (art. 5.2). (Marco Túlio de Carvalho Rocha apud Direito.com acesso em 30.09.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 539. O doador pode fixar prazo ao donatário, para declarar se aceita ou não a liberalidade. Desde que o donatário, ciente do prazo, não faça, dentro dele, a declaração, entender-se-á que aceitou, se a doação não for sujeita a encargo.

No entendimento de Nelson Rosenvald, aqui o legislador cuida da doação sob a forma da aceitação presumida pelo donatário. Tratando-se de doação pura, sendo fixado um prazo para declarar a sua aceitação, o seu silêncio será qualificado como anuência à liberalidade.

Certamente, o nascimento do contrato requer a demonstração da ciência da existência do prazo pelo donatário. Outrossim, enquanto o donatário não se manifestar, é possível que dentro do prazo assinalado possa o doador revogar a liberalidade. Aliás, se o doador falecer dentro do prazo, o óbito não impedirá que o donatário aceite, pois o primeiro já havia manifestado a vontade de realizar a liberalidade, sem que tivesse retirado a proposta.

Relativamente à doação com encargo (modal), somente se admite a aceitação pela maneira expressa, manifestada de forma escrita, verbal ou por um comportamento concludente socialmente típico (v.g., sinal afirmativo com o polegar). Na doação modal, o silêncio provoca a recusa da doação.

Por fim, é fundamental frisar que o dispositivo se aplica tão somente à aceitação do donatário capaz. As doações em favor de nascituros (CC 542), incapazes (CC 543), filhos não concebidos (CC 546) e entidades futuras (CC 554) são apartadas da figura em estudo, na medida em que as pessoas capazes possuem liberdade pra avaliar se a doação efetivamente lhes beneficia, ou poderá não ser realmente vantajosa subjetiva ou objetivamente. Cuida-se de motivos pessoais, repita-se, não aferíveis pelo sistema. (ROSENVALD Nelson, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 593 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 30/09/2019. Revista e atualizada nesta data por VD).

Diferente para Ricardo Fiuza, a aceitação é pressuposto necessário para aperfeiçoar, pela consensualidade, o contrato. Cabe ao donatário declarar que aceita o ato de liberalidade do doador, e, no seu silêncio, presume-se o consentimento (aceitação tácita), quando a doação é pura, feita sem encargos ou condições, i.é, inteiramente benéfica, sem quaisquer ônus para o favorecido. Dispensa-se a aceitação quando o donatário for absolutamente incapaz (art. 544). (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 287 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 30/09/2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Na versão dada por Marco Túlio de Carvalho Rocha, como contrato, a doação exige a aceitação do donatário para se aperfeiçoar, exceto se pura e feita a absolutamente incapaz (CC 543), quando configura negócio jurídico unilateral. (Marco Túlio de Carvalho Rocha apud Direito.com acesso em 30.09.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 540. A doação feita em contemplação do merecimento do donatário não perde o caráter de liberalidade, como não o perde a doação remuneratória, ou a gravada, no excedente ao valor dos serviços remunerados ou ao encargo imposto.

Seguindo o ritmo de Nelson Rosenvald, em princípio, a doação será pura e simples, pois a liberalidade não estará sujeita aos elementos acidentais do termo, condição e encargo. Explica-se: o que distingue o negócio jurídico do ato jurídico lícito (CC 185) é justamente a presença da autonomia privada no primeiro, concedendo à vontade humana a possibilidade de criar os efeitos desejados ao ato, nos limites dados pelo ordenamento. Isso permite ao doador restringir a eficácia da liberalidade por modalidades de doações, sem prejudicar a validade do negócio jurídico, posto que são atendidos os seus elementos essenciais (CC 104).

Para além de tais hipóteses, é possível que o doador queira justificar o motivo da liberalidade. Cuida-se da doação contemplativa, enunciada na primeira parte do dispositivo. Portanto, poderá o doador anunciar que a doação decorre do fato de o donatário ser o melhor aluno da classe e merecer um incentivo em seus estudos.

A segunda parte da norma ressalva a chamada doação remuneratória. Aqui a liberalidade se conecta com serviços prestados anteriormente pelo donatário ao doador. O serviço poderá ser caracterizado como aquele em que normalmente haveria cobrança de valores (v.g., cirurgia realizada por amigo do paciente) ou por conduta que pela essência não possua patrimonialidade (v.g., aconselhamento afetivo). Em qualquer caso, aproxima-se das obrigações naturais em que há um débito moral, mas inexiste responsabilidade. Ou seja, podem ser pagas pelo devedor, mas não são exigíveis pelo credor (CC 882).

A parte derradeira do art. 540 é dedicada ao exame da doação com encargo ou modal (onerosa). Diversamente ao termo e à condição, salvo ressalva expressa, o encargo não suspende a aquisição ou o exercício do direito (CC 136). Quando o modo é inserido no contrato, perde a condição de elemento acidental e converte-se em elemento essencial do negócio jurídico. Com efeito, o seu descumprimento provoca a ineficácia superveniente do negócio jurídico por resilição unilateral ou resolução por inadimplemento (CC 555).

O encargo é uma restrição à liberalidade, pois não implica uma contraprestação do donatário ao doador (o que causaria o desvirtuamento do negócio), mas a imposição de um pequeno sacrifício ao donatário. Exemplificando: A destina gratuitamente um apartamento a B com o encargo de este auxiliar as obras de caridade da igreja local. A matéria será mais bem tratada o art. 553.

É muito importante operar a distinção entre a doação gratuita e a onerosa pelas várias consequências que as separam (v.g., possibilidade de discussão de vícios redibitórios na doação modal, CC 441, parágrafo único). (ROSENVALD Nelson, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 594 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 30/09/2019. Revista e atualizada nesta data por VD).

Na esteira de Ricardo Fiuza, o dispositivo diz da doação feita em contemplação do merecimento do donatário aquela doação pura cuja liberalidade tem como motivo o reconhecimento ao mérito do donatário, exarado pelo doador, e que influi na decisão de doar (animus donandi). A rigor, é doação contemplativa por estímulo ou homenagem, proveniente da amizade ou admiração do doador, nada significando que o donatário venha obtê-la em virtude de seus méritos. O merecimento é formado pelo juízo de valor ou manifestação de sentimento que faz o doador em face do donatário.

Doação remuneratória é a efetuada pelo doador em retribuição a serviços prestados de forma graciosa pelo donatário, no que refere à parte excedente ao valor que poderia ter-lhe sido cobrado. É premiação ao devotamento profissional, em demonstração do interesse de recompensar.

A doação gravada com encargo, também denominada modal, é a que, embora atribuindo o doador encargos ao donatário, não afasta a liberalidade, por exceder esta ao encargo imposto e cuja execução do encargo representa simples fim acessório. A incumbência cometida há de ser cumprida em favor do próprio doador, de terceiro ou do interesse geral, constituindo obrigação de fazer do donatário. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 287 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 30/09/2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Estudando a cartilha de Marco Túlio de Carvalho Rocha, no direito romano havia 3 espécies de doações: reais; obrigatórias e liberatórias. No Código Civil, 9 espécies de doação: pura; com encargo (modal); condicional; propter núpcias; reversível; remuneratória; meritória; indireta e inoficiosa.

O dispositivo faz referência à doação remuneratória, que visa a compensar o donatário por serviços prestados ou por ato praticado, e à doação gravada com encargo.

A regra consagra a teoria das duas causas de SAVIGNY, que entende serem a doação remuneratória e a com encargo negócios jurídicos onerosos até o valor dos serviços que se pretende remunerar e ao encargo imposto e gratuitos na parte excedente.

Assim, numa doação de R$ 50.000,00 em que se impõe encargo ao donatário equivalente a R$ 30.000,00, a lei somente considera como liberalidade, propriamente, a parte de R$ 20.000,00. (Marco Túlio de Carvalho Rocha apud Direito.com acesso em 30.09.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Direito Civil Comentado - Art. 534, 535, 536, 537 - Do Contrato Estimatório – VARGAS, Paulo S. R.


Direito Civil Comentado - Art. 534, 535, 536, 537
- Do Contrato Estimatório – VARGAS, Paulo S. R.

Parte Especial - Livro I – Do Direito das Obrigações
Título VI – Das Várias Espécies de Contrato
 (art. 481 a 853) Capítulo III – Do Contrato Estimatório
- vargasdigitador.blogspot.com

Art. 534. Pelo contrato estimatório, o consignante entrega bens móveis ao consignatário, que fica autorizado a vende-los, pagando àquele o preço ajustado, salvo se preferir, no prazo estabelecido, restituir-lhe a coisa consignada.

Segundo entendimento de Nelson Rosenvald, o CC/2002 trata do contato estimatório, inserindo-o entre os contratos típicos. Mas, havia muito, a sociedade brasileira já o tinha como um contrato nominado, também conhecido como contrato de venda em consignação, comumente empregado na atividade mercantil. O consignante entrega bens moveis ao consignatário, que então fica autorizado a vende-los, pagando ao consignante o valor ajustado. Abre-se ao consignatário a possibilidade de restituição de mercadorias caso não sejam comercializadas.

Aliás, o Enunciado n. 32 do Conselho da Justiça Federal bem descreve o modelo contratual: “no contrato estimatório, o consignante transfere ao consignatário, temporariamente, o poder de alienação da coisa consignada com opção de pagamento do preço de estima ou a sua restituição ao final do prazo ajustado”.

Vê-se que surge uma espécie de obrigação alternativa cuja opção é concedida ao consignatário. Poderá vender a coisa e repassar o preço ajustado ao consignante ou então, simplesmente, restituí-la. Caso delibere por pagar o preço ao consignante, não necessariamente o valor deve ser obtido em uma venda a terceiros, pois nada impede ao consignatário ficar com a coisa para si ou presenteá-la a terceiros, arcando com o preço devido ao consignante.

Aliás, diferencia-se a consignação do mandato justamente pelo fato de o consignatário agir na defesa de seus próprios interesses, realizando a venda da coisa móvel como se fosse sua, algo impensável se cogitássemos do formalismo da alienação de bens imóveis. Difere ada comissão ou corretagem, pois o consignatário não é um mero intermediário ou preposto, basta perceber que o consignante não se relaciona com aquele que eventualmente adquira o bem das mãos do consignatário. Enfim, esse contrato foi inserido no Código como modalidade autônoma e assim deverá ser visto pela doutrina.

Isso explica a razão do nome “contrato estimatório”. O preço é estimado pelo consignante, em confiança na pessoa do consignatário, eis que não é da sua alçada a ciência ou o controle acerca do real preço de venda do bem a terceiros.

Se em princípio consignante e consignatário ajustam um prazo para o exercício da opção, também será possível a elaboração do contrato sem termo, aplicando-se as disposições relativas à mora ex persona (CC 397, parágrafo único) caso o consignatário não exercite nenhuma das opções no prazo assinalado na interpelação.

Em sede de relações de consumo, se o consignante for um fornecedor de produtos, mesmo não havendo relação contratual direta com aquele que adquiriu do consignatário, responderá pelos vícios e fatos do produto (CDC 12 e 18). (ROSENVALD Nelson, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 589-590 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 27/09/2019. Revista e atualizada nesta data por VD).

No conceito de Ricardo Fiuza, o contrato estimatório, ou contrato de vendas em consignação, de natureza comercial, com significativa importância nos negócios mercantis, é introduzida no Código Civil, recebendo regulação e disciplina. Tem ele por objeto coisas moveis, entregues ao consignatário para serem vendidas a terceiros, em prazo determinado, onde, em seu termo final, deve ser feito o pagamento ao consignante do preço ajustado ou efetuada a devolução da coisa consignada. Diversamente da compra e venda, na consignação, a tradição da coisa móvel não opera a sua transferência, mantendo o consignante a propriedade sobre o bem e respondendo o consignado como depositário da coisa dada em consignação (Direito Comparado: Código civil italiano (Arts. 1556 a 1,558) (Sebastião José Roque. Dos contratos civis-mercantis em espécie. São Paulo. Ícone Editora, 1997) (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 285 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 27/09/2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Como terceiro entendimento, buscamos o mestre Marco Túlio de Carvalho Rocha, para quem o contrato estimatório é vulgarmente conhecido como “venda por consignação”. É muito utilizado por bancas de jornais e vendedores de produtos de beleza.

O proprietário das coisas a serem vendidas, consignante, as entrega ao vendedor, o consignatário, para que es realize negócios em nome próprio, ficando obrigado a pagar ao consignante o preço ou a restituir-lhe as coisas.

O consignatário vale-se da aparência de proprietário que a posse de bens moveis lhe confere, de tal modo que a real propriedade das mercadorias nenhum relevo tem pra o comprador. Por essa razão, a consignação somente é possível em relação a bens moveis, conforme estabelece o artigo em comento. (Marco Túlio de Carvalho Rocha apud Direito.com acesso em 26.09.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 535. O consignatário não se exonera da obrigação de pagar o preço, se a restituição da coisa, em sua integridade, se tornar impossível, ainda que por fato a ele não imputável.

No ritmo de Nelson Rosenvald, o contrato estimatório não é tratado como uma modalidade especial de compra e venda, porém como contrato autônomo, pois a tradição da coisa móvel não opera a transmissão da propriedade, que remanesce em poder do consignante. Aliás, raciocínio contrário transformaria o consignatário em mero revendedor de uma coisa que já é sua, sem possibilidade de adimplir a obrigação mediante a sua restituição.

Por isso, ao contrário da compra e venda – contrato consensual -, o contrato estimatório é de natureza real, exigindo não só o consenso das partes como a entrega da coisa para se aperfeiçoar. Só terá efetividade a relação jurídica a partir do instante em que o bem se encontrar disponibilizado ao consignatário, tal como nos contratos de depósito e comodato. Com a tradição, surge a obrigação alternativa do consignatário.

Enfatize-se que, com a transmissão da posse direta, o consignatário assume o risco pela destruição ou perda dos objetos consignados. Em outras palavras, mesmo não sendo proprietário, pelo fato de receber a guarda da coisa para o exercício de uma atividade de seu estrito interesse, assumirá a responsabilidade objetiva da coisa perante o consignante, na modalidade do risco agravo (integral), eis que não será exonerado nem mesmo pelo fortuito. Enfim, trata-se de norma cogente, eis que as partes não podem lhe dar configuração diversa.

Porém, lembre-se de que, mesmo sendo dispensado o nexo causal no tocante ao fortuito (v.g., colisão de veículos que destruiu mercadorias) ou pelo fato de terceiro (v.g., vizinho do consignatário que destruiu mercadorias), será possível a exoneração do consignatário com base em alegação de responsabilidade do próprio consignante, em virtude de vícios já existentes ao tempo da entrega dos objetos, como bem reforça o CC 931) (ROSENVALD Nelson, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 591 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 27/09/2019. Revista e atualizada nesta data por VD).

Em sua doutrina Fiuza comenta que o consignatário sujeita-se a uma obrigação definida: pagar o preço ou restituir a coisa consignada que ficou sob sua posse por prazo certo, com o dever de conservá-la incólume, e no fim específico de venda a terceiro. assim, se vier a alienar a coisa, obriga-se ao pagamento ajustado, equivalendo à alienação todo e qualquer evento que torne impossível restituí-la em sua integridade, respondendo, de conseguinte, pela perda ou deterioração da coisa, mesmo que não der causa. Tal obrigação guarda similitude com os característicos do disposto no art. 629. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 285 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 27/09/2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Por seu favor, segundo Marco Túlio de Carvalho Rocha, o dispositivo transfere os riscos pela perda das mercadorias por caso fortuito ou de força maior ao consignatário, o que se justifica pelo fato deste se comportar, por força do contrato, se proprietário delas fosse. (Marco Túlio de Carvalho Rocha apud Direito.com acesso em 27.09.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 536. A coisa consignada não pode ser objeto de penhora ou sequestro pelos credores do consignatário, enquanto não pago integralmente o preço.

É como explica Nelson Rosenvald, o dispositivo mais uma vez reforça o argumento da manutenção da titularidade dos bens moveis em poder do consignante enquanto ao for exercitada a opção de pagamento do preço estimado ou restituição das mercadorias.

Se, durante o período em que as coisas estiverem na posse direta do consignatário, este sofrer processo executivo, será vedado ao credor efetuar qualquer tipo de constrição judicial sobre as mercadorias, v.g., penhora, sequestro. Como consequência da intangibilidade do objeto, deverá o consignante opor embargos de terceiro para excluir a medida constritiva dos bens que lhe pertençam (CPC/1973, art. 1.046, correspondendo ao art. 674 no CPC/2015).

Nada obstante, na qualidade de credores do consignatário, poderão os exequentes oferecer o valor estimado ao consignantes, convalescendo o ato da penhora ou do sequestro, mediante a sub-rogação legal (CC 346, III). Caso o consignante recuse injustificadamente a oferta, será aberta aos terceiros interessados a via da consignação (CC 304).

Se os credores do consignatário não adotarem tais medidas, a única forma de preservar a constrição sobre as mercadorias estará condicionada ao fato de o consignatário adquirir para si os bens, efetuando o pagamento integral estimado pelo consignante. (ROSENVALD Nelson, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 591 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 27/09/2019. Revista e atualizada nesta data por VD).

Como explica Ricardo Fiuza, a intangibilidade da coisa consignada decorre do fato de o bem não pertencer ao consignatário, continuando o consignante com a propriedade do bem que se acha em poder daquele. Por consequência, não pode a coisa, passível de ser restituída ao seu dono, ser objeto de constrição judicial pelos credores do consignatário. De notar que, vencido o prazo, o adimplemento da obrigação do consignatário é atendido pelo recolhimento do preço ajustado ou pela devolução da coisa, casos em que, de nenhum modo, perfaz-se a translatividade do domínio a seu favor. Ou a coisa retorna às mãos do proprietário consignante ou passa à propriedade do terceiro que a adquiriu do consignatário. Mesmo que o consignatário não a devolva, apropriando-se indevidamente da coisa consignada, a circunstância não autoriza a penhora ou o sequestro, porquanto a coisa não é sua. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 285 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 27/09/2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

No pensar de Marco Túlio de Carvalho Rocha, uma vez que a propriedade do consignatário é meramente aparente, tocando o verdadeiro domínio ao consignante, não podem os bens consignados ser penhorados ou sequestrados pelos credores do consignatário. Se o consignatário pagar ao consignante o preço das mercadorias antes de revende-las, passa à condição de proprietário das mesmas o que justifica que a partir de então possam elas responder por suas dívidas.

A proibição de penhora e de sequestro das mercadorias por dívidas do consignatário não impede que o comprador as reivindique, uma vez que é escopo do negócio que o consignatário haja em relação aos compradores como se proprietário delas fosse. (Marco Túlio de Carvalho Rocha apud Direito.com acesso em 27.09.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

 Art. 537. O consignante não pode dispor da coisa antes de lhe ser restituída ou de lhe ser comunicada a restituição.

O dispositivo em exame, como aponta Nelson Rosenvald, descreve um traço marcante do contrato estimatório: a disponibilização da coisa ao consignatário, i.é, apesar de a propriedade remanescer em poder do consignante, o consignatário poderá vender a coisa a qualquer um, por qualquer preço, mesmo que inferior ao valor estimado, sem que tenha de prestar constas ou pedir autorização ao consignante.

Daí, no período ajustado ao exercício da opção de venda ou restituição, será vedado ao consignante qualquer ato que implique disposição do bem. Ou seja, mantém-se proprietário, mas sofrendo severas limitações, posto que será privado do exercício temporário das faculdades de usar, fruir e dispor da coisa. A irrestrita disponibilidade da coisa pelo consignatário é fundamental para a realização do objetivo negocial.

Portanto, não poderá o consignante realizar negócios jurídicos atributivos de propriedade ou posse a terceiros, sob pena de lesar não só a finalidade do contrato de consignação, como também a confiança e legítima expectativa do consignatário quanto ao adimplemento da obrigação. Temos aqui mais uma emanação do princípio da boa-fé objetiva como padrão de conduta honesto e leal para com o parceiro contratual. (ROSENVALD Nelson, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 591 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 27/09/2019. Revista e atualizada nesta data por VD).

Como leciona Ricardo Fiuza, na fluência do prazo da venda em consignação, tem o consignatário a disponibilidade da coisa consignada para venda a terceiro; esse poder de vender a coisa constitui elemento essencial da natureza do contrato. E obrigação do consignante, guardando na execução do contrato os princípios de probidade e boa-fé, faze-lo firme e valioso, não dispondo, por isso mesmo, da coisa oferecida em consignação, enquanto não lhe for restituída ou antes de lhe ser comunicada a restituição. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 285 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 27/09/2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Na esteira de Marco Túlio de Carvalho Rocha, uma vez que o consignante transfere a posse da coisa ao consignatário com o propósito de que ele a venda a terceiros, perde o consignante o poder de disposição das mesmas enquanto se mantenham na posse do consignatário, o que não impede que a coisa seja penhorada por credores do consignante, enquanto estiver na posse do consignatário. (Marco Túlio de Carvalho Rocha apud Direito.com acesso em 27.09.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).