quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

DIREITO CIVIL COMENTADO - Arts. 161, 162, 163 - Da Fraude Contra Credores – Legitimidade passiva VARGAS, Paulo S. R.


DIREITO CIVIL COMENTADO - Arts. 161, 162, 163 -
Da Fraude Contra Credores – Legitimidade passiva
VARGAS, Paulo S. R.
Livro III – Dos Fatos Jurídicos (art. 104 a 184)
Título I – Do Negócio Jurídico – Capítulo IV –
Dos Defeitos do Negócio Jurídico – Seção VI–
Da Fraude Contra Credores - vargasdigitador.blogspot.com

Art 161. A ação, nos casos dos arts 158 e 159, poderá ser intentada contra o devedor insolvente, a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou terceiros adquirentes que hajam procedido de má-fé. 1

1.        Legitimidade passiva da ação pauliana

Como regra geral, toda ação deve ser movida contra as pessoas que potencialmente terão sua esfera de direitos afetada pelo provimento jurisdicional pleiteado. A ação pauliana não escapa dessa regra. Tendo em vista que a declaração de ineficácia pleiteada pelo credor terá aptidão de fazer com que o bem alienado em fraude responda pelo adimplemento de seu crédito, tanto o devedor alienante quanto o adquirente, bem como eventuais outros terceiros que tenham concorrido com a fraude serão afetados por essa sentença, tendo, pois, legitimidade passiva para figurarem como réus da ação pauliana. Note-se, inclusive, que segundo já reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência, a hipótese é de litisconsórcio passivo necessário, o   que significa que a ação deverá ser necessariamente movida contra o devedor e o adquirente em fraude. (Direito Civil Comentado, Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalina. Material coletado no site Direito.com em 21.01.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações (VD)).

Da legitimidade passiva

De acordo com o art 161, do Código Civil, a ação pauliana, (ação anulatória), deve, pois, ser intentada (legitimação passiva) contra o devedor insolvente e também contra a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, bem como, se o bem alienado pelo devedor já houver sido transmitido a outrem, contra os terceiros adquirentes que hajam procedido de má-fé.

Embora o supratranscrito dispositivo legal use o verbo poderá, que dá a impressão de ser uma faculdade de o credor propor ação contra todos, na verdade ele assim deverá proceder para que a sentença produza efeitos em relação também aos adquirentes. De nada adianta acionar somente o alienante se o bem se encontra em poder dos adquirentes.

O art 472 do Código de Processo Civil de 1973, estabelece, com efeito, que “a sentença faz coisa julgada ás partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros”, replicada em sua versão no CPC/2015, com o art 506, com a   mesma redação.

A doutrina em geral consolidou-se no sentido de que o devedor e o terceiro adquirente ou beneficiário devem figurar necessariamente no polo passivo da relação processual na revocatória, estabelecendo-se entre eles o litisconsórcio necessário de que trata o art 47 do Código de Processo Civil/1973, Correspondendo ao art 115 no CPC/2015 “Art. 115. ... Parágrafo único. Nos casos de litisconsórcio passivo necessário, o juiz determinará ao autor que requeira a citação de todos que devam ser litisconsortes, dentro do prazo que assinar, sob pena de extinção do processo. No mesmo sentido desenvolveu-se, em termos incontroversos, a jurisprudência de nossos tribunais. (RT, 498/183, 511/161, 559/113(Washington de Barros Monteiro, Curso, cit., v. 1, p.223; Yussef Said Cabali, Fraudes, cit., p. 358; Ferdinando Puglia, Dell’azione pauliana, 1886, p. 47, apud, Roberto Gonçalves, Direito civil comentado, 2010 – p. 461 - pdf – parte geral, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Desde que, pela natureza da relação jurídica, instaura-se um litisconsórcio necessário, envolvendo alienantes-devedores e adquirentes, considera-se que, quando o credor não tiver chamado a juízo o devedor ou o adquirente, deve o juiz, de ofício, ordenar a integração da lide, pois é nulo o processo em que não foi citado litisconsorte necessário. (RTJ, 80/611, 95/742; RT, 508,202, apud, Roberto Gonçalves, Direito civil comentado, 2010 – p. 461 - pdf – parte geral).

Art 162. O credor quirografário, que receber do devedor insolvente o pagamento da dívida ainda não vencida, ficará obrigado a repor, em proveito do acervo sobre que se tenha de efetuar o concurso de credores, aquilo que recebeu. 1, 2

1.        Concurso universal de credores do devedor insolvente

Entrando o devedor em estado de insolvência, todos os seus bens devem ser arrecadados e instaura-se um concurso entre seus credores (CPC/1973, art 741, III; CPC/2015, art 910). Declarada a insolvência, o juiz mandará expedir edital, convocando todos os credores para apresentar a declaração do crédito, acompanhada do respectivo título (CPC/1973, art 761, II; sem correspondência no   CPC/2015). Finda a fase de impugnações, e verificada a regularidade dos créditos apresentados, o juiz remeterá os autos ao contador judicial para organizar o quadro geral dos credores, que deverá observar a classificação dos créditos e dos títulos legais de preferência (CPC/1973, art 769, sem correspondência no CPC/2015). Organizado o quadro geral de credores, proceder-se-á ao rateio do patrimônio do devedor para quitação de seus débitos.

2.        Fraude contra a sistemática do concurso universal de credores do devedor insolvente

Visando a fraudar a sistemática legal instituída para o rateio e pagamento dos credores do devedor insolvente, usualmente ocorre que o devedor queira privilegiar um ou uns de seus credores com o pagamento antecipado da dívida, livrando-o do concurso universal em detrimento dos demais credores. Para evitar tal tipo de fraude aos demais credores, dispõe o artigo 162 do Código civil que: “o credor quirografário, que receber do devedor insolvente o pagamento da dívida ainda não vencida, ficará obrigado a repor, em proveito do acervo sobre que se tenha de efetuar o concurso de credores, aquilo que recebeu”. DIREITO CIVIL COMENTADO (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalina. Material coletado no site DIREITO.COM em 22.12.2018, corrigido e aplicadas as devidas atualizações (VD)).


Do pagamento antecipado de dívida

Como sustenta Roberto Gonçalves, credor quirografário, etimologicamente, é o que tem seu crédito decorrente de um título ou documento escrito. A ele se refere o estatuto civil como aquele que tem como única garantia o patrimônio geral do devedor, ao contrário do credor privilegiado, que possui garantia especial.

O objetivo da lei é colocar em situação de igualdade todos os credores quirografários. Todos devem ter as mesmas oportunidades de receber seus créditos e de serem aquinhoados proporcionalmente. Se a dívida já estiver vencida, o pagamento não é mais do que uma obrigação do devedor e será considerado normal e válido, desde que não tenha sido instaurado o concurso de credores.

Se o devedor, todavia, salda débitos vincendos, comporta-se de maneira anormal.  Presume-se, na hipótese, o intuito fraudulento e o credor beneficiado ficará obrigado a repor, em proveito do acervo, o que recebeu, instaurado o concurso de credores. (Sílvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 234; Francisco Amaral, Direito civil, cit., p. 502-503, apud, Roberto Gonçalves, Direito civil comentado, 2010 – p. 455 - pdf – parte geral).

Essa regra não se aplica ao credor privilegiado, que tem o seu direito assegurado em virtude da garantia especial de que é titular. Como o seu direito estaria sempre a salvo, o pagamento antecipado não causa prejuízo aos demais credores, desde que limitado ao valor da garantia (Roberto Gonçalves, Direito civil comentado, 2010 – p. 455 - pdf – parte geral).

Art 163. Presumem-se fraudatórias dos direitos dos outros credores as garantias de dívidas que o devedor insolvente tiver dado a algum credor. 1

1.        Outorga de garantia real em fraude

Além de efetuar o pagamento antecipado da dívida, livrando determinado credor do concurso universal, a outorga de garantias reais pelo devedor insolvente a um credor, criando-lhe um privilégio em relação aos demais credores quirografários é outra forma usual de fraudar a sistemática do concurso universal. Trata-se, contudo, de uma presunção apenas relativa, podendo o devedor e o credor beneficiado pela outorga da garantia provar a ausência da fraude. DIREITO CIVIL COMENTADO (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalina. Material coletado no site DIREITO.COM em 22.12.2018, corrigido e aplicadas as devidas atualizações (VD)).

Segundo Washington de Barros Monteiro, as garantias a que se refere o dispositivo do CC, art 163, são as reais, pois a fidejussória não prejudica os credores em concurso. A paridade que deve reinar entre os credores ficará irremediavelmente comprometida se houver outorga, a um deles, de penhor, anticrese ou hipoteca. A constituição da garantia vem situar o credor favorecido numa posição privilegiada, ao mesmo tempo que agrava a dos demais, tornando problemática a solução do passivo pelo devedor. (Washington de Barros Monteiro, Curso, cit., v. 1, p. 230, apud, Roberto Gonçalves, Direito civil comentado, 2010 – p. 455 - pdf – parte geral).

A garantia dada de certo modo sai parcialmente do patrimônio do devedor, para assegurar a liquidação do crédito hipotecário, pignoratício ou anticrético. Os demais credores, em consequência, receberão menos, para que o beneficiário da garantia receba mais. É essa desigualdade que a lei quer evitar, presumindo fraudulento o procedimento do devedor. A presunção, in casu, resulta do próprio ato, uma vez demonstrada a insolvência do devedor, sendo juris et de jure. (Silvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 235, apud, Roberto Gonçalves, Direito civil comentado, 2010 – p. 455 - pdf – parte geral).

O que se anula, na hipótese, é somente a garantia, a preferência concedida a um dos credores. Continua ele, porém, como credor, retornando à condição de quirografário. Preceitua, com efeito, o parágrafo único do art 165 do Código Civil que, se os negócios fraudulentos anulados “tinham por único objeto atribuir direitos preferenciais, mediante hipoteca, penhor ou anticrese, sua invalidade importará somente na anulação da preferência ajustada”.

Anote-se que somente na fraude cometida nas alienações onerosas se exige o requisito do consilium fraudis ou má-fé do terceiro adquirente, sendo presumido ex vi legis nos demais casos, ou seja, nos de alienação a título gratuito e remissão de dívidas, de pagamento antecipado de dívida e de concessão fraudulenta de garantia. (Roberto Gonçalves, Direito civil comentado, 2010 – p. 455 - pdf – parte geral).

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

DIREITO CIVIL COMENTADO - Arts. 158, 159, 160 - Da Fraude Contra Credores - VARGAS, Paulo S. R.


DIREITO CIVIL COMENTADO - Arts. 158, 159, 160 -
Da Fraude Contra Credores - VARGAS, Paulo S. R. 

Livro III – Dos Fatos Jurídicos (art. 104 a 184)
Título I – Do Negócio Jurídico – Capítulo IV –
Dos Defeitos do Negócio Jurídico – Seção VI–
Da Fraude Contra Credores - vargasdigitador.blogspot.com

Art 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos. 1, 2, 3, 4

§ 1º.  Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente.

§ 2º. Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles.

1.        Fraude contra credores

Requisitos gerais. Caracteriza-se a fraude contra credores quando o devedor maliciosamente pratica atos voltados s desfalcar seu patrimônio, frustrando a possibilidade de seus credores terem de excutir tais bens para satisfazer seu crédito. Não havendo nenhuma garantia especial que assegure a satisfação do crédito em caso de inadimplemento (crédito quirografário), o patrimônio do devedor será essa única garantia. O mesmo ocorre para os credores cuja garantia se tornar insuficiente (CC, art 158, § 2º). Isso porque, como é até mesmo intuitivo, na parte do crédito que não puder ser satisfeita pela garantia especial, o patrimônio do devedor também será essa única garantia. A partir do momento em que o patrimônio do devedor torna-se inferior às suas dívidas (estado de insolvência – CPC/1973, art 748, correspondência no CPC/2015, art 1.052, que diz: Até a edição de lei específica, as execuções contra devedor insolvente, em curso ou que venham a ser propostas, permanecem reguladas pelo Livro II, Título IV, da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973.), não há absolutamente nada que assegure aos credores ter seus respectivos créditos satisfeitos. Quando alguém contrata com uma pessoa que já se encontra em estado de insolvência, assume conscientemente esse risco de não ter seu crédito satisfeito em caso de inadimplemento do devedor. Nesse caso, socorro algum pode ser buscado no Judiciário. Todavia, quando esse estado de insolvência é posterior à existência do crédito, há evidente prejuízo ao credor que vê frustrada essa inicial e legítima expectativa de ter seu crédito garantido pelo patrimônio do devedor. Daí a exigência da anterioridade do crédito em relação ao estado de insolvência (CC, art 158, § 3º). Tendo tal prejuízo ao credor sido maliciosamente arquitetado pelo devedor, caracterizada estará a fraude. Eis, portanto, os requisitos gerais caracterizadores da fraude contra credores: (a) a existência de um crédito quirografário, (b) a insolvência do devedor e (c) a anterioridade do crédito em relação ao ato fraudulento.

2.        Atos onerosos e atos gratuitos

Todo e qualquer ato, em si mesmo lícito e válido, pode ser deturpado pelas engenhosidades humanas e empregado de moro torpe para frustrar a satisfação do crédito de terceiros. Acertadamente, entretanto, preferiu o legislador tratar separadamente os atos gratuitos e os atos onerosos que podem vir a ser utilizados com essa finalidade fraudulenta. A doutrina costuma separar os requisitos da fraude contra credores em objetivos (eventos damni), que é justamente a redução patrimonial do devedor ao estado de insolvência, e subjetivos (consilium fraudis) que é a intenção comum do devedor e do terceiro que com ele pratica o ato fraudulento com vistas a prejudicar os credores do devedor insolvente. O artigo 158 cuida dos negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, presumindo de modo absoluto a existência desse elemento subjetivo da intenção de fraudar os credores. Para a caracterização da fraude, bastará a realização de negócio gratuito pelo devedor que  o reduza à insolvência, pouco importando que o devedor tenha consciência de que com isso estará lesando o direito de seus credores. Tratamento diverso é dado pelo legislador aos negócios fraudulentos onerosos, dos quais cuida o artigo 159, adiante.

3.        Ineficácia ou anulabilidade

O Código Civil explicitamente trata a fraude contra credores como um vício social do negócio jurídico passível, pois, de anulação. Essa era também a posição adotada pelo Código Civil anterior, o de 1916 e, já naquela época, tal opção era duramente criticada. Isso porque, na fraude contra credores o negócio jurídico é indiscutivelmente válido quando analisado fora de seu contexto fraudulento. É apenas quando analisado sob a perspectiva do credor lesado que esse vício pode ser percebido. Por essa razão, a doutrina moderna tem procurado analisar a questão sob o enfoque da responsabilidade patrimonial, segundo o qual o patrimônio do devedor deve responder pela satisfação de seus credores. Para a preservação desse escopo, entretanto, não é necessário anular o negócio jurídico, bastando apenas reconhecer a ineficácia dos atos que importem em redução da capacidade do patrimônio de responder pelas obrigações do devedor em relação a seus credores. Segundo os adeptos da teoria da ineficácia dos negócios jurídicos, o ato praticado pelo devedor insolvente permanece válido, produzindo regularmente seus efeitos jurídicos de transmissão da propriedade. Reconhece-se apenas, sua invalidade perante os credores, tolhendo os efeitos desse ato em relação a eles, de modo a fazer com que esse bem alienado em prejuízo da higidez de seu patrimônio não produza efeitos em relação a esses credores. Inspirados em tais considerações, gradativamente a doutrina parece caminhar no sentido de reconhecer a ineficácia do ato, e não sua anulabilidade (Cândido Rangel Dinamarco, Humberto Theodoro Júnior). No mesmo sentido tem sido a posição adotada pela jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça: “A fraude contra credores, proclamada em ação pauliana, não acarreta a anulação do ato de alienação, mas, sim, a invalidade com relação ao credor vencedor da ação pauliana, e nos limites do débito de devedor para com este” (STJ, REsp n. 971.884-PR, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 22.03.11). No mesmo sentido: “Dessa forma, tendo restado caracterizado nas instâncias ordinárias o conluio fraudatório e o prejuízo com a prática do ato – ao contrário do que querem fazer crer os recorrentes – e mais, tendo sido comprovado que os atos fraudulentos foram predeterminados para lesarem futuros credores, tenho que se deve reconhecer a fraude contra credores e declarar a ineficácia dos negócios jurídicos” (STJ, REsp n. 1.092.134-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 5.8.10). Ainda assim, contudo, parte da doutrina insiste em defender a opção legislativa que explicitamente atribuiu à fraude contra credores a consequência da anulabilidade (Nelson Nery Júnior e rosa Maria de Andrade Nery).

4.        Ação pauliana

É a ação pauliana a via adequada para alegar a fraude contra credores, não os embargos de terceiro. Nesse sentido: “Em embargos de terceiro não se anula ato jurídico, por fraude contra credores” (STJ, Súmula 195). Além disso, pendente ação de execução, não se cogitará mais de fraude contra credores, e sim de fraude à execução (CPC/1973, art 593, correspondência no CPC/2015, art 792. (Direito Civil Comentado apud Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalina. Material coletado no site Direito.com em 20.01.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações (VD)).

Art 159. Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante. 1

1.        Negócios jurídicos onerosos fraudulentos

Na prática, é a situação mais comum com que se deparam os tribunais ao analisar as situações de fraude contra credores. Diferentemente do que ocorre com os negócio s jurídicos gratuitos, cuja intenção de fraudar os credores é absolutamente presumida, nos negócios onerosos diz o legislador que a caracterização do consilium fraudis depende da notoriedade da insolvência do devedor ou que o outro contratante devesse conhecer esse estado de insolvência. É o que ocorre, por exemplo, quando o alienante tenha diversos títulos protestados em seu nome, exista relação de parentesco entre os contratantes, existir diversas ações judiciais contra o alienante etc. Como perfeitamente pontuado por Sílvio Rodrigues, “a notoriedade e a ciência da insolvência do outro contratante dependem, exclusivamente, do caso concreto, podendo, no entanto ser traçadas balizas para essa prova, mas nunca de forma inflexível. Importa lembrar, também faz Jorge americano (1932, p. 56), que a alienação é o meio de converter os bens imóveis ou móveis de difícil ocultação, em moeda corrente, facilmente ocultável. Mas, outras vezes, é o meio procurado pelo devedor para obter fundos com que manter o seu crédito e desembaraçar-se da má situação que considera passageira”. (1) (Direito Civil Comentado, Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalina. Material coletado no site Direito.com em 20.01.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações (VD)).

(1)      Silvio de Salvo Venosa, Código Civil Interpretado, São Paulo, Atlas, 2010, p. 176.

Nas palavras de Roberto Gonçalves, temos que o Código Civil coloca no rol dos defeitos do negócio jurídico a fraude contra credores, não como vício do consentimento, mas como vício social. A simulação, que assim também é considerada e figurava ao lado da fraude contra credores no Código de 1916, foi deslocada para o capítulo da invalidade dos negócios jurídicos, como causa de nulidade absoluta.

A fraude contra credores ao conduz a um descompasso entre o íntimo querer do agente e a sua declaração. A vontade manifestada corresponde exatamente ao seu desejo. Mas é exteriorizada com a intenção de prejudicar terceiros, ou seja, os credores. Por essa razão é considerada vício social.

A regulamentação jurídica desse instituto assenta-se no princípio do direito das obrigações segundo o qual o patrimônio do devedor responde por suas obrigações. Segundo Francisco Amaral, a “fraude contra credor é pertinente à matéria das obrigações na parte referente às medidas conservatórias do patrimônio do devedor, com garantia do pagamento de suas dívidas” (Direito civil, cit., p. 501, nota 48, apud Direito Civil Comentado – Parte Geral, Roberto Gonçalves, V. I, p. 448, 2010, Saraiva – São Paulo), é o princípio da responsabilidade patrimonial, previsto no art 957 do CC/2002, nesses temos: “Não havendo título legal à preferência, terão os credores igual direito sobre os bens do devedor comum”.

O patrimônio do devedor constitui a garantia geral dos credores. Se ele o desfalca maliciosa e substancialmente, a ponto de não garantir mais o pagamento de todas as dívidas, tornando-se assim insolvente, com o seu passivo superando o ativo, configura-se a fraude contra credores. Esta só se caracteriza, porém, se o devedor já for insolvente, ou tornar-se insolvente em razão do desfalque patrimonial promovido. Se for solvente, ou tronar-se insolvente em razão do desfalque patrimonial promovido. Se for solvente, i.é, se o seu patrimônio bastar, com sobra, para o pagamento de suas dívidas, ampla é a sua liberdade de dispor de seus bens.

Fraude contra credores é, portanto, todo ato suscetível de diminuir ou onerar seu patrimônio, reduzindo ou eliminando a garantia que este representa para pagamento de suas dívidas, praticado por devedor insolvente, ou por ele reduzido à insolvência. Como conclui Marcos Bernardes de Mello, que conceitua fraude contra credores como “todo o ato de disposição e oneração de bens, créditos e direitos, a título gratuito ou oneroso, praticado por devedor insolvente, ou por ele tornado insolvente, que acarrete redução de seu patrimônio, em prejuízo de credor preexistente (Teoria, cit., p. 163, apud Direito Civil Comentado – Parte Geral, Roberto Gonçalves, V. I, p. 449, 2010, pdf, Saraiva – São Paulo).

Tendo em conta que o patrimônio do devedor responde por suas dívidas, pode-se concluir que, desfalcando-o a ponto de ser suplantado por seu passivo, o devedor insolvente, de certo modo, está dispondo de valores que não mais lhe pertencem, pois tais valores se encontram vinculados ao resgate de seus débitos. Daí permitir o Código Civil que os credores possam desfazer os atos fraudulentos praticados pelo devedor, em detrimento de seus interesses. (Sílvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 229, apud, Roberto Gonçalves, Direito civil comentado, 2010 – p. 449 - pdf – parte geral).

Art 160. Se o adquirente dos bens do devedor insolvente ainda não tiver pago o preço e este for, aproximadamente, o corrente, desobrigar-se-á depositando-o em juízo, com a citação de todos os interessados. 1

Parágrafo único. Se inferior, o adquirente, para conservar os bens, poderá depositar o preço que lhes corresponda ao valor real.

1.        Convalidação do negócio jurídico oneroso fraudulento

Requisito indispensável para a caracterização da fraude contra credores é que o negócio jurídico leve o devedor ao estado de insolvência. Sem que haja essa redução patrimonial, não haverá fraude contra credores. Além disso, é usual que o devedor movido pela intenção de fraudar seus credores queira se desfazer de seu patrimônio imóvel, difícil de ser ocultado convertendo-o em dinheiro, muito mais difícil de ser encontrado pelos credores. Ciente desses dois aspectos mais comuns da fraude contra credores, o legislador acertadamente buscou proteger o adquirente dos bens do devedor, facultando-lhe preservar a eficácia irrestrita dessa aquisição quando ainda ano tiver pago o respectivo preço. Para tanto, deverá o adquirente depositar o preço justo do bem em juízo, citando todos os interessados. Note-se que para preservar a eficácia do negócio é necessário que o adquirente deposite o preço justo em juízo. Daí o porquê de o parágrafo único do artigo 160 expressamente afirmar que se o preço avençado for inferior ao valor real do bem, deverá o adquirente complementá-lo até que se chegue ao seu justo valor. Evitando-se, com isso, a ocultação do dinheiro e a diminuição do patrimônio do devedor, razão alguma há para que se reconheça a ineficácia dos negócios jurídicos. (Direito Civil Comentado, Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalina. Material coletado no site Direito.com em 21.01.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações (VD)).

O estado de insolvência, segundo Clóvis Beviláqua, é objetivo – existe, ou não, independentemente do conhecimento, ou não, do insolvente. .Tendo de optar entre o direito dos credores, que procuram evitar um prejuízo, qui certant de damno vitando, e dos donatários (em geral, filhos ou parentes próximos do doador insolvente) que procuram assegurar um lucro, qui certant de lucro captando, o legislador desta vez preferiu proteger os primeiros, que buscam evitar um prejuízo.

Atos de transmissão gratuita de bens são de diversas espécies: doações; renúncia de herança; atribuições gratuitas de direitos reais e de retenção; renúncia de usufruto; o que não é correspectivo nas doações remuneratórias, nas transações e nos reconhecimento de dívidas; aval de favor; promessa de doação; deixa testamentária e qualquer direito já adquirido que, por esse fato, vá beneficiar determinada pessoa.

O Código Civil menciona expressamente a remissão ou perdão de dívida como liberalidade que também reduz o patrimônio do devedor, sujeita à mesma consequência dos demais atos de transmissão: a anulabilidade. Os créditos ou dívidas ativas que o devedor tem a receber de terceiros constituem parte de seu patrimônio. Se ele os perdoa, esse patrimônio, que é garantia dos credores, se reduz proporcionalmente. Por essa razão, seus credores têm legítimo interesse em invalidar a liberalidade, para que os créditos perdoados se reincorporem no ativo do devedor. (Clóvis Beviláqua, Código, cit., p. 288; Pontes de Miranda, Tratado, cit., 1. 4, § 494, p. 460, apud, Roberto Gonçalves, Direito civil comentado, 2010 – p. 453 - pdf – parte geral).

V. a jurisprudência: Ação pauliana. Doação de um único imóvel remanescente a descendente com reserva de usufruto. Solvabilidade não demonstrada pelo devedor. Consciência de que tal ato acarretaria prejuízo ao credor. Ação procedente” (RT. 698/180). “Fraude contra credores. Doação aos filhos menores com reserva de usufruto e administração. Assim agindo, os apelantes-réus deixaram patenteado o próprio estado de insolvência, já que, dos bens que lhes restaram, um constitui-se em moradia da família e não poderá ser objeto de constrição judicial, e outro, adquirido posteriormente, foi alienado” (JTJ, Lex, 185/9).

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

DIREITO CIVIL COMENTADO - Arts. 156, 157 - Do Estado de Perigo e Da Lesão - VARGAS, Paulo S. R.


DIREITO CIVIL COMENTADO - Arts. 156, 157 -
Do Estado de Perigo e Da Lesão - VARGAS, Paulo S. R. 

Livro III – Dos Fatos Jurídicos (art. 104 a 184)
Título I – Do Negócio Jurídico – Capítulo IV –
Dos Defeitos do Negócio Jurídico – Seção IV e V–
Do Estado de Perigo e Da Lesão- vargasdigitador.blogspot.com

Art 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, o a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa. 1, 2, 3

Parágrafo único. Tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias.

1.        Estado de perigo

Não havia no Código de 1916 menção ao estado de perigo como defeito do negócio jurídico. À sua falta, doutrina e jurisprudência buscavam amoldar as hipóteses de estado de perigo ao conceito de coação. Na coação, contudo, a vítima age influenciada pela premente necessidade de afastar um dano dolosamente ameaçado pelo coator. No estado de perigo, por sua vez, o perigo não é causado ou ameaçado por ninguém, ocorrendo espontaneamente, sendo apenas aproveitado por quem dele tenha tido conhecimento. É o que ocorre, por exemplo, com alguém que vende um imóvel a preço muito abaixo de seu valor para conseguir custear tratamento médico do filho. Enquanto que a coação é caracterizada pela vontade de coagir (elemento subjetivo) no estado de perigo a ameaça de dano é objetiva e não foi causada por ninguém (objetiva). Da mesma forma como ocorre com a coação, contudo, o declarante não manifesta sua vontade livremente, e sim premido pela urgente necessidade de afastar um grave dano a própria pessoa u a pessoa de sua família ou a ela próxima (parágrafo único).

2.        O estado de perigo como defeito do negócio jurídico

Para que o estado de perigo possa se caracterizar como um vício de consentimento, levando à anulação do negócio jurídico é necessário que concorram alguns requisitos. Primeiramente, é necessário que o negócio jurídico celebrado tenha levado o declarante a assumir uma obrigação excessivamente onerosa. A obrigação assumida deve ser de tamanha onerosidade que jamais teria sido assumida em situações normais. Além disso, é necessário que o negócio jurídico tenha sido celebrado para afastar o estado de perigo em que o declarante, seu familiar ou pessoa a ele próxima se encontrava. Em outras palavras, é necessário que a necessidade de afastar esse estado de perigo tenha sido a causa, a razão determinante da celebração do negócio jurídico. Por fim, mantendo a mesma baliza utilizada em todos os demais defeitos do negócio jurídico, nos basta o simples vício subjetivo, íntimo e interior de quem manifesta a vontade para caracterizar o defeito do negócio jurídico. O legislador protege sempre aquele que contrata de boa-fé, sem conhecer o vício que limita ou condiciona a vontade do outro contratante. Por essa razão, apenas haverá defeito do negócio jurídico se a outra parte conhecer souber que a declaração de vontade a ele dirigida foi feita para que o declarante possa afastar um perigo iminente a ele próprio ou a alguém de sua família. Sem que essa outra pessoa conheça esse estado de perigo do declarante, o negócio não poderá ser anulado.

3.        Consequência do estado de perigo

Uma vez caracterizado o estado de perigo como vício de consentimento de um negócio jurídico, prevê o Código Civil expressamente apenas a possibilidade de que o contratante prejudicado busque a anulação do negócio (CC, art 156 e 177). Contudo, apesar do silêncio do Código, nada impede que se preserve a validade do negócio jurídico mediante o reequilíbrio da prestação excessivamente onerosa a que se obrigou aquele que realizou o negócio premido pela necessidade de afastar um perigo iminente. É a essa conclusão que chegou a III Jornada de Direito Civil, resultando na edição do Enunciado n. 148: “ao estado de perigo (art 156) aplica-se, por analogia, o disposto no § 2º do art 157”. Por sua vez, diz o § 2º do art 157 que: “não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito”. (Direito Civil Comentado apud Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalina. Material coletado no site Direito.com em 19.01.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações (VD)).

O estado de perigo – conceito

O Código Civil de 2002 apresenta dois institutos, no capítulo concernente aos defeitos do negócio jurídico, que não constavam do Código de 1916: o estado de perigo e a lesão.

Constitui o estado de perigo, a situação de extrema necessidade que conduz uma pessoa a celebra negócio jurídico em que assume obrigação desproporcional e excessiva. Ou, segundo Moacyr de Oliveira, constitui “o fato necessário que compele à conclusão de negócio jurídico, mediante prestação exorbitante” (Estado de Perigo, in Enciclopédia Saraiva do Direito, p. 504, apud Direito Civil Comentado – Parte Geral, Roberto Gonçalves, V. I, p. 430, 2010 Saraiva – São Paulo).

Exemplos clássicos de situação dessa espécie são os do náufrago, que promete a outrem extraordinária recompensa pelo seu salvamento, e o de Ricardo III, em Bosworth, ao exclamar: “A horse, a horse, my kingdom for a horse”.

A doutrina menciona, ainda, outras hipóteses, como a daquele que, assaltado por bandidos, em lugar ermo, se dispõe a pagar alta cifra a quem venha livrá-lo da violência; a do comandante de embarcação às portas do naufrágio, que propõe pagar qualquer preço a quem venha socorrê-lo; a do doente que, no agudo da moléstia, concorda com os altos honorários exigidos pelo cirurgião; a da mãe que promete toda a sua fortuna para quem lhe venha salvar o filho, ameaçado pelas ondas ou de ser devorado pelo fogo; a do pai que, no caso de sequestro, realiza maus negócios pra levantar a quantia do resgate etc. (Sílvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 218; Washington de Barros Monteiro, Curso, cit., v. 1, p. 212; Caio Mário da silva Pereira, Instituições, cit., p. 338; Moacyr de Oliveira, Estado, cit., p. 506; Jean Charles Florent Demolombe, Traité, cit., p. 141, apud, Roberto Gonçalves, Direito civil comentado, 2010 – p. 431 - pdf – parte geral).

Merece ser também citado exemplo de inegável atualidade e característico de estado de perigo, que é o da pessoa que se vê compelida a efetuar depósito ou a prestar garantia sob a forma de emissão de cambial ou de prestação de fiança, exigidos por hospital, para conseguir internação ou atendimento de urgência de cônjuge ou de parente em perigo de vida. Há no direito civil outras situações em que a necessidade atua como fundamento jurídico da solução do problema: passagem forçada, gestão de negócios, casamento nuncupativo, testamento marítimo, depósito necessário, pedido de alimentos etc. A anulabilidade do negócio jurídico celebrado em estado de perigo encontra justificativa em diversos dispositivos do CC/2002, principalmente naqueles que consagram os princípios da boa-fé, e da probidade e condicionam o exercício da liberdade de contratar à função social do contrato (arts 421 e 422). A propósito, preleciona Teresa Ancona Lopez: Evidentemente se o declarante se aproveitar da situação de perigo para fazer um negócio vantajoso para ele e muito oneroso para a outra parte não há como se agasalhar tal negócio. Há uma frontal ofensa à justiça comutativa que deve estar presente em todos os contratos. Ou, no dizer de Betti, deve haver uma equidade na cooperação”.  (O estado de perigo como defeito do negócio jurídico, Revista do Advogado, n. 68, p. 56, apud, Roberto Gonçalves, Direito civil comentado, 2010 – p. 431 - pdf – parte geral).

A necessidade, pode gerar e servir de fundamento a diversas situações e a institutos jurídicos que, por terem a mesma fonte, apresentam certa similitude. Podem, assim ser considerados institutos afins do estado de perito a lesão, o estado de necessidade e a coação, dentre outros.

Art 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta. 1, 2, 3

§ 1º Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico.

§ 2º Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.

1.        Lesão

Diferentemente do que ocorre no estado de perigo, em que a onerosidade excessiva da prestação é aferida de modo absoluto, o prejuízo que caracteriza a lesão deve ser aferido em comparação com a contraprestação a que a pessoa lesada irá receber. Com o reconhecimento de que a foça normativa do contrato encontra seu fundamento também na realização da operação econômica subjacente, a própria noção de justiça contratual deslocou seu foco para os aspectos materiais do contrato, sendo inconteste atualmente que, ao lado da liberdade contratual e da autonomia da vontade, o contrato além de formalmente legítimo deve também ser materialmente justo. Isso significa que nos contratos deve haver um necessário equilíbrio, proporcionalidade ou equivalência entre prestação e contraprestação. A partir da ideia de equivalência material do contrato, a justiça contratual deixa de ser apenas formalmente considerada, impedindo-se que a liberdade contratual seja exercida de modo a tornar-se demasiadamente onerosa ou excessivamente vantajosa a uma das partes em detrimento da outra. Não se pretende, com isso, afirmar que deve haver verdadeira paridade entre as prestações. O que deve haver é um “equilíbrio aproximado” entre as prestações, de modo que cada um possa encontrar uma vantagem na celebração do contrato. Ocorrendo quebra desse equilíbrio material entre as prestações dos contratos bilaterais por premente necessidade, ou por inexperiência de um dos contratantes, ocorrerá a lesão.

2.        Requisitos de caracterização da lesão

Não basta a simples desproporção entre as prestações de um negócio jurídico bilateral para caracterizar a lesão. Vício de vontade que é, é necessário que essa desproporção seja fruto de uma equivocada apreensão da realidade do lesado, seja ela causada por simples inexperiência ou por premente necessidade. É justamente esse elemento subjetivo que caracteriza a lesão como vício de consentimento. A lesão se caracteriza quando a pessoa, por inexperiência, celebra um negócio jurídico sem ter consciência de que faz um negócio que lhe é prejudicial. Essa fala apreensão da realidade econômica do negócio em muito se assemelha ao erro, mas dele difere porque na lesão, o inexperiente conhece a desproporção, mas com ela concorda por não conseguir dimensionar precisamente suas consequências. Ou ainda quando, mesmo tendo essa consciência, se sente determinantemente compelida a realizar o negócio por estar sob premente necessidade. É o que ocorre, por exemplo, com a pessoa que vende seus bens a preços irrisórios por estar desempregada e ter dificuldades de sustentar a si própria e a seus dependentes. Neste ponto, a lesão difere do estado de perigo na medida em que tem de reconhecer com muito mais abrangência as circunstâncias que podem dirigir a vontade do lesado. Não é só a necessidade de afastar um perigo à própria pessoa ou aos familiares e pessoas próximas. Na lesão, o perigo pode ser até mesmo puramente patrimonial (vender bens para levantar o dinheiro necessário para pagar o aluguel e evitar o despejo). Além disso, não exige o código que a contraparte que recebe prestação desproporcionalmente vantajosa tenha conhecimento da inexperiência ou da premente necessidade do lesado. Tal conhecimento é presumido pela enorme e injustificada vantagem que recebeu do lesado. Todavia, tal presunção é relativa, levando apenas a uma inversão no ônus da prova. Provado pelo lesado sua condição de inexperiente ou de que agiu sob premente necessidade, inverte-se o ônus da prova dispensando-o de provar que o beneficiado contratou com a manifesta intenção de se aproveitar dessa fragilidade do lesado. De todo modo; não fica o lesado dispensado de provar sua inexperiência ou sua condição de premente necessidade.

3.        Lesão nos contratos empresariais

Dizia o artigo 220, do revogado Código Comercial que “a rescisão por lesão não tem lugar nas compras e vendas celebradas entre pessoas todas comerciantes; salvo provando-se erro, fraude ou simulação”. O espírito que permeava esse dispositivo é o de que não se pode admitir ou presumir que os empresários desconheçam as particularidades da atividade que exploram. Se desconhecem, são maus empresários e, por imposição constitucional da livre concorrência, o direito não pode socorrê-los neste ponto. Segundo Antônio Junqueira de Azevedo, “uma entidade jurídica empresarial ineficiente pode – ou até mesmo deve – ser expulsa do mercado, ao contrário da pessoa humana que merece proteção, por não ser “descartável”. (1) Diante de tais princípios, a doutrina tem recusado aplicação do instituto da lesão por inexperiência aos contratos empresariais. É exatamente isso o que diz o enunciado 28 da I Jornada de Direito Comercial: “Em razão do profissionalismo com que os empresários devem exercer sua atividade, os contratos empresariais não podem ser anulados pelo vício da lesão fundada na inexperiência”. (Direito Civil Comentado apud Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalina. Material coletado no site Direito.com em 20.01.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações (VD)).

(1)       Antônio Junqueira de Azevedo, Novos estudos e pareceres de direito privado, São Paulo, Saraiva, 2009, p. 185
Segundo Roberto Gonçalves, as diferenças entre estado de perito e lesão são tão sutis que alguns doutrinadores sugerem a sua fusão num único instituto. Ainda durante a tramitação do Projeto de Código Civil ao Congresso Nacional duas emendas, as de n 183 e 187, propunham a supressão do atual art 156, relativo ao estado de perigo, por entender que esse instituto, em última análise, se confundia com a lesão.

A elas respondeu o relatório da Comissão Revisora que os “dois institutos – o do estado de perigo e o da lesão – não se confundem. O estado de perigo ocorre quando alguém se encontra em perigo, e, por isso, assume obrigação excessivamente onerosa. Aludindo a ele, Espínola (Manual do Código Civil Brasileiro, Vol. III, parte primeira, pp. 396/397) dá este exemplo: “Será alguma vez um indivíduo prestes a se afogar que promete toda a sua fortuna a quem o salve de morte iminente””.

Prossegue o aludido relatório: “A lesão ocorre quando não há estado de perigo, por necessidade de salvar-se; a ‘premente necessidade’ é, por exemplo, a de obter recursos. Por outro lado, admitindo o § 2º do art 155 (atual 157) a suplementação da contraprestação, isso indica que ela só ocorre em contratos cumulativos, em que a contraprestação é um dar (e não um fazer). A lesão ocorre quando há usura real. Não há lesão, ao contrário do que ocorre com o estado de perigo, que vicie a simples oferta. Ademais, na lesão não é preciso que a outra parte saiba da necessidade ou da inexperiência; a lesão é objetiva. Já no estado de perigo é preciso que a parte beneficiada saiba que a obrigação foi assumida pela parte contrária para que esta se salve de grave dano (leva-se em conta, pois, elemento subjetivo)”.

Conclui, então, o mencionado relatório: “Por isso, a existência dos dois institutos, pois só o estado de perigo ou só a lesão não bastam para coibir todas as hipóteses que se podem configurar. E a disciplina deles, conforme as hipóteses em que incidem, é diversa, como se viu acima. (José Carlos Moreira Alves, A Parte Geral, cit., p. 143-145, apud Direito Civil Comentado – Parte Geral, Roberto Gonçalves, V. I, p. 432, 2010, Saraiva – São Paulo).