quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Direito Civil Comentado - Art. 529, 530, 531, 532 - Da Venda Sobre Documentos – VARGAS, Paulo S. R.


Direito Civil Comentado - Art. 529, 530, 531, 532
- Da Venda Sobre Documentos
VARGAS, Paulo S. R.

Parte Especial - Livro I – Do Direito das Obrigações
Título VI – Das Várias Espécies de Contrato
 (art. 481 a 853) Capítulo I – Da Compra e Venda
Seção II – Das Cláusulas Especiais à Compra e Venda –
Subseção V – Da Venda Sobre Documentos
 - vargasdigitador.blogspot.com

Art. 529. Na venda sobre documentos, a tradição da coisa é substituída pela entrega do seu título representativo e dos outros documentos exigidos pelo contrato ou, no silencia deste, pelos usos.

Parágrafo único. Achando-se a documentação em ordem, não pode o comprador recusar o pagamento, a pretexto de defeito de qualidade ou do estado da coisa vendida, salvo se o defeito já houver sido comprovado.

No ritmo de Nelson Rosenvald, a venda sobre documentos, também chamada de venda contra documentos, é uma espécie de tradição simbólica (v.g., entrega de chaves a venda do apartamento). Com efeito, substitui-se a entrega do objeto pela tradição de documentos que representem a coisa.

Pelo fato de o vendedor cumprir a obrigação com a entrega da documentação representativa da mercadoria, já poderia exigir do comprador o pagamento. Cuida-se de modalidade de compra e venda que não estava elencada no Código de 1916, pelo simples fato de estar associada a uma fase mais recente de celeridade na circulação de créditos, sobretudo em sede de relações internacionais, as mercadorias são transportadas entre Estados diversos, submetendo-se a leis uniformes, contratos de adesão e formulários com terminologia própria (como as cláusulas CIF e FOB). O desenvolvimento do contrato demanda não só a expedição de documentação como a emissão de guias e vistos de autoridades. Não se olvide da realização de um contrato de câmbio, além do recolhimento de tributos e emolumentos, promovendo-se assim o embarque e transporte das mercadorias.

Como explica o parágrafo único, se o comprador verificar a exatidão dos documentos, presume-se a adequação entre a descrição dos objetos e as suas reais características. O cuidado com a correção da documentação se explica pela considerável redução da abrangência da teoria dos vícios redibitórios, sendo em regra inviável a discussão sobre a qualidade da coisa, exceto no tocante a vícios aparentes, ostensivos. (ROSENVALD Nelson, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 586 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 24/09/2019. Revista e atualizada nesta data por VD).

Na trilha de Ricardo Fiuza, também cláusula especial, a venda sobre documentos, de intenso uso na vida hodierna, tem seu relevo jurídico adotado pelo CC/2002, coerente com a modernidade e, no particular, com a globalização da economia. Essa modalidade contratual é indispensável em consecução eficiente de negócios com o comércio exterior Munir Karam aponta sua importância fundamental: “O vendedor se libera da obrigação de entregar a coisa, remetendo ao comprador o título representativo da mercadoria e dos outros elementos exigidos pelo contrato (duplicata etc.). (...) Quanto à recusa, a pretexto de defeito de qualidade ou do estado da coisa vendida, lembra o eminente magistrado possuir o Código Civil italiano dispositivo ‘pelo qual o prazo para denúncia de vício ou defeito aparente de qualidade decorre do dia do recebimento’ (Art. 1.511)” (Munir Karam. O processo de codificação do direito civil – inovações da parte geral e do livro das obrigações, RT, São Paulo, Revista dos Tribunais, 757/11-28, nov.1998. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 282 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 24/09/2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Seguindo na trilha de Marco Túlio de Carvalho Rocha, o contrato de compra e venda de coisa móvel visa à transferência da propriedade mediante a entrega da posse da coisa vendida. A cláusula especial da venda sobre documentos visa a modificar esse efeito tradicional do contrato. Ela determina que a tradição possa se dar fictamente mediante a entrega de documento que represente a coisa. O dispositivo esclarece que a cláusula pode ser expressa ou tácita, uma vez que decorra dos usos e costumes comerciais. São exemplos de venda sobre documentos a venda da coisa transportada ou depositada mediante a transferência da “nota de conhecimento de transporte” ou da “nota de conhecimento de depósito”, que transportadores e armazéns gerais estão legalmente habilitados a expedir.

Uma vez que o documento representa a coisa vendida, não pode o comprador recusar o pagamento do preço mediante a alegação de descumprimento da obrigação contratual pelo vendedor por defeito ou desconformidade da coisa vendida apenas à vista dos documentos que a representam a menos que o defeito ou desconformidade encontrem-se provados. (Marco Túlio de Carvalho Rocha apud Direito.com acesso em 24.09.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 530. Não havendo estipulação em contrário, o pagamento deve ser efetuado na data e no lugar da entrega dos documentos.

Na sobriedade de Nelson Rosenvald, quando estudamos a teoria do pagamento no direito das obrigações, aprendemos que a regra geral torna as dívidas quesíveis, ou seja, o pagamento se realiza no domicilio do devedor (CC 347). Contudo, a regra é derrogada quando as partes convencionam diversamente (dívidas portáveis), ou quando as circunstâncias do caso e a própria lei indicarem outro local de adimplemento.

Na espécie, a lei concebe uma regra supletiva acerca do local do pagamento, como aquele em que são entregues os documentos. Segue a norma do art. 9º da LICC, que estabelece o locus regis actum. Porém, a regra é suprível desde que as partes estabeleçam local diverso, como o domicilio de qualquer uma das partes.

Mas não é isso. A mesma regra também estabelece como tempo de pagamento aquele que coincida com a entrega dos documentos. Por isso é adequada a denominação de venda contra documentos. Mas também se cuida de norma dispositiva, pois é lícito que as partes convencionem outro momento para o pagamento. (ROSENVALD Nelson, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 586 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 24/09/2019. Revista e atualizada nesta data por VD).

Perseguindo a doutrina de Ricardo Fiuza, o tempo e o local de pagamento são os previstos em lei, caso não determinados no contrato, reportando-se ao evento da entrega dos documentos para o cumprimento da obrigação primacial do comprador.

A venda sobre documentos tem sua vocação para operar com o comércio exterior. Assim, não poderia ser de outro modo, segundo o art. 99, caput, da Lei de Introdução ao Código Civil. A regra tocus regit actum, de direito material, aponta a aplicação da lei do lugar em que a obrigação se constituiu. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 282 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 24/09/2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Confrontando Marco Túlio de Carvalho Rocha, na compra e venda, a menos que haja estipulação em sentido diverso, o preço deve ser pago imediatamente, no momento da entrega da coisa. Uma vez que na venda sobre documentos a entrega destes representa a entrega da coisa, nesse mesmo momento e local deve ocorrer o pagamento do preço. (Marco Túlio de Carvalho Rocha apud Direito.com acesso em 24.09.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 531. Se entre os documentos entregues ao comprador figurar apólice de seguro que cubra os riscos do transporte, correm estes à conta do comprador, salvo se, ao ser concluído o contrato, tivesse o vendedor ciência da perda ou avaria da coisa.

Espancando o comentário de Nelson Rosenvald, em princípio, na compra e venda os riscos pela perda ou destruição da coisa pertencem ao vendedor, antes da tradição (CC 492). Mesmo tendo havido a entrega dos documentos, o vendedor só se escusa de responsabilidade quando a coisa for entregue ao comprador. Nos contratos de venda internacionais, há um necessário intercambio com contratos de transporte e seguro. Assim, se houver apólice de seguro, o risco recairá sobre o comprador, devendo arcar com o pagamento do prêmio, como interessado imediato nas mercadorias e beneficiário do seguro (sub-rogação) em caso de sinistro.

Contudo, os riscos incidirão sobre o vendedor se agiu de má-fé quando já conhecia a perda ou avaria da coisa. É uma aplicação da regra de ouro do tu quoque, pois quem viola uma norma não pode por ela ser beneficiado. (ROSENVALD Nelson, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 586-587 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 24/09/2019. Revista e atualizada nesta data por VD).

Desliza-se na Doutrina apresentada por Fiuza, quando somente subsistirá a obrigação ao alienante se, ao tempo da conclusão do contrato, este tinha ciência da perda ou avaria da coisa, prevalecendo o princípio da boa-fé em favor do adquirente. Caso incluída no documentário apólice de seguro em cobertura dos riscos do transporte, libera-se o vendedor, correndo os riscos à conta do comprador. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 282 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 24/09/2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Na interpretação de Marco Túlio de Carvalho Rocha, uma vez entregue o documento representativo da coisa, opera-se a tradição ficta, o comprador adquire a propriedade e, segundo a regra res perit domino¸ ele terá de arcar com os prejuízos resultantes da perda da coisa por caso fortuito ou por força maior a partir desse momento. A primeira parte do dispositivo é, em razão disso, redundante, pois mesmo que não haja contrato de seguro de transporte os riscos correm por conta do comprador a partir da tradição ficta, salvo se o vendedor tivesse ciência da perda ou avaria da coisa, conforme a parte final do dispositivo. (Marco Túlio de Carvalho Rocha apud Direito.com acesso em 24.09.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 532. Estipulado o pagamento por intermédio de estabelecimento bancário, caberá a este efetuá-lo contra a entrega dos documentos, sem obrigação de verificar a coisa vendida, pela qual não responde.

Parágrafo único. Nesse caso, somente após a recusa do estabelecimento bancário a efetuar o pagamento, poderá o vendedor pretende-lo, diretamente do comprador.

Acompanhando a lucidez de Nelson Rosenvald, o pagamento através de estabelecimento bancário é uma constante em matéria de contatos internacionais de compra e venda. A instituição financeira intermedeia o negócio jurídico e realiza o pagamento contra a entrega da documentação. O contrato de crédito documentário é um pacto acessório à compra e venda por documentos. Vale dizer que a tarefa do banco é verificar a regularidade da documentação que lhe foi confiada pelo vendedor para, em seguida, pagar o preço, pois o comprador confiará na exatidão dos papéis.

Aliás, o contrato de crédito documentário é definido como o acordo pela qual o banco (nomeado emissor), a requerimento e de conformidade com as instruções do seu cliente (ordenante), compromete-se a efetuar o pagamento a um terceiro (beneficiário) contra a entrega de documentos representativos das mercadorias objeto da operação concluída entre eles.

Todavia, não incumbe ao banco examinar ou mesmo garantir a qualidade das mercadorias, pois sua responsabilidade perante o comprador se limita à autenticação da correção da documentação, na qualidade de mero intermediário que garantirá o bom termo da negociação.

Ocasionalmente, se o banco se negar a efetuar o pagamento, independentemente da motivação, poderá o vendedor se dirigir diretamente ao comprador. Claro que essa exigência só vingará após a tradição e aprovação da documentação. (ROSENVALD Nelson, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 587 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 24/09/2019. Revista e atualizada nesta data por VD).

Existe um histórico acompanhando a doutrina de Ricardo Fiuza, onde, originalmente, este era o texto apresentado para o dispositivo tanto no anteprojeto como no projeto proposto pela Câmara: “Estipulado o pagamento por intermédio de banco, caberá a este efetuá-lo contra a entrega dos documentos, sem obrigação de verificar a cosa vendida, pela qual não responde. Parágrafo único. Nesse caso, somente após a recusa do banco a efetuar o pagamento, poderá o vendedor pretende-lo, diretamente do comprador?”. A partir das modificações implementadas pelo eminente Senador Josaphat Marinho, passou a apresentar a atual composição. Com o mister de tornar o texto mais abrangente, a emenda apenas substituiu a palavra banco pela expressão “estabelecimento bancário”. Efetivamente, como bem justificou o Senador Josaphat Marinho, “o vocábulo ‘banco’ tem significado limitado em face das leis. Mais prudente é usar a expressão mais ampla  “estabelecimento bancário, abrangente de situações como a da Caixa Econômica”. Pelas mesmas razões e acordes, também, com o relatório parcial do ilustre Deputado Arruda, foi acolhida a emenda.

Seguindo a doutrina, a operação cogitada pela norma, típica de contrato internacional, tem um fim específico: contra a entrega do documentário da venda das mercadorias, o estabelecimento bancário efetua o pagamento, sem verificar a coisa vendida ou por ela responder. Como a tradição da coisa é substituída pela entrega de seu título representativo, é nele que se funda a obrigação do pagamento. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 283 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 24/09/2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Na balada de Marco Túlio de Carvalho Rocha, o dispositivo confirma a regra do parágrafo único do artigo 529: o pagamento não pode ser recusado por defeito ou desconformidade da coisa vendida. O parágrafo único é, igualmente, redundante, pois qualquer que seja a forma de pagamento estabelecida no contrato deve ser observada. O vendedor não pode ser obrigado a buscar o pagamento por outro meio diferente daquele estipulado, configurando-se o descumprimento contratual a recusa do estabelecimento bancário a pagar o preço se esse meio tiver sido o estabelecido. (Marco Túlio de Carvalho Rocha apud Direito.com acesso em 24.09.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).