quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Direito Civil Comentado – Art. 1.428, 1.429, 1.430 Do Penhor, Da Hipoteca e da Anticrese – VARGAS, Paulo S. R.

 

Direito Civil Comentado – Art. 1.428, 1.429, 1.430

Do Penhor, Da Hipoteca e da Anticrese – VARGAS, Paulo S. R.

- Parte Especial –  Livro III – Capítulo I – Disposições Gerais

Título X - Do Penhor, Da Hipoteca e da Anticrese – (Art. 1.419 a 1.430) - digitadorvargas@outlook.com - vargasdigitador.blogspot.com

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 Art. 1.428. É nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento.

Parágrafo único. Após o vencimento, poderá o devedor dar a coisa em pagamento da dívida. 

Em sua retrospectiva como aponta Francisco Eduardo Loureiro o artigo em estudo corresponde ao art. 765 do CC/1916. O caput manteve-se sem qualquer alteração. A inovação está no acréscimo do parágrafo único, que trata da possibilidade do devedor contratar com o credor a dação em pagamento do bem objeto da garantia real.

Veda o preceito a cláusula comissória, também denominada lex comissoria ou pacto comissório. Na lição de Clóvis Bevilaqua, consiste na estipulação de que o credor ficará com a coisa dada em garantia real se a dívida não for paga no vencimento (Direito das coisas, 3. ed. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1951,1.1, p. 40). Deve ser evitada a utilização do termo pacto comissório, com duplo sentido, pois significa também pacto adjeto da compra e venda por cláusula resolutiva expressa no regime do Código Civil de 1916.

A proibição é de ordem pública e prevalece sobre a vontade das partes em todos os direitos reais de garantia, inclusive a propriedade fiduciária. Abrange tanto o ato constitutivo da garantia como convenção posterior (ex intervallo). Admite o parágrafo único apenas a dação em pagamento após vencimento da obrigação.

A sanção cominada pelo legislador é a nulidade, que pode ser conhecida ex officio tão logo chegue a conhecimento do juiz e não convalesce pelo decurso do tempo. A invalidade alcança apenas a cláusula comissória, de natureza acessória, mas mantém íntegras a garantia real e a obrigação, cabendo ao credor o direito à excussão.

A cláusula comissória é condenada pela maioria das legislações ocidentais por duas razões: por proteger o devedor fraco da exploração gananciosa do credor e por evitar o bem dado em garantia ser apropriado sem correspondência com seu valor de mercado.

A invalidade alcança os negócios jurídicos indiretos, que mascaram a cláusula comissória sob a aparência de convenção lícita, por fraude à lei, nos termos do CC 166, VI. Os exemplos mais comuns são contratos de venda e compra com pacto de retrovenda, ou compromissos de compra e venda com objetivo de garantia a contrato de mútuo. O negócio indireto se verifica “quando as partes recorrem, concretamente, a um negócio determinado, para obter, através do mesmo, resultado diverso daquele típico da estrutura do próprio negócio; as partes visam, assim, um escopo que não é típico do próprio negócio” (Lima, Alvino. A fraude no direito civil. São Paulo, Saraiva, 1965, p. 80).

O negócio em fraude à lei tem dois requisitos cumulativos: existência de norma imperativa no ordenamento jurídico, necessariamente incidente quando presente determinada situação jurídica; e realização de negócio jurídico suscetível de produzir, por meio indireto, exatamente o resultado previsto como indesejado pela norma jurídica imperativa, ou que seja atingido resultado a ele equivalente (Pereira, Regis Velasco Fichtner. Fraude à lei. Rio de Janeiro, Renovar, 1994, p. 93). Em suma, feita a prova de que negócios aparentemente lícitos se prestam à apropriação pelo credor de bens dados em garantia, há fraude à lei e nulidade absoluta.

O parágrafo único deste artigo disciplina a possibilidade, admitida de modo tranquilo por doutrina e tribunais, do devedor, no vencimento do crédito ou após, dar o bem objeto da garantia real em pagamento ao credor. A dação em pagamento está prevista nos CC 356 e ss do Código Civil e exige o consentimento do devedor nunca ser contemporâneo à constituição da garantia real. O consentimento necessário à dação somente pode ser dado no momento do vencimento da obrigação ou após. A promessa de dação, manifestada no momento da constituição da garantia real, ofende a vedação de cláusula comissória, como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.523-24.  Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 06/01/2021. Revista e atualizada nesta data por VD).

Para a doutrina do relator Ricardo Fiuza, trata o artigo da proibição do pacto comissório, vedação que está difundida universalmente. Teve origem no direito romano, em que era chamado de lar commissoria, que autorizava o credor a adjudicar a própria coisa dada em garantia caso o devedor não solvesse a obrigação. Não é outro o entendimento jurisprudencial (RT, 690/173, 665/85, 687/69, 704/ 133 e 614/179).

Equipara-se este ao art. 765 do Código Civil de 1916, com considerável melhora de redação. Inova ao introduzir em seu parágrafo único a hipótese de devolução da coisa para pagamento da dívida. No mais, deve ser aplicado à matéria o mesmo tratamento doutrinário dado ao dispositivo apontado. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 729-30, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 06/01/2021, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Seguindo com Raphael Manhães Martins, adv. e prof. da UERJ, em artigo intitulado “O inadimplemento antecipado da prestação do Direito brasileiro”, da mesma forma como se excluem os efeitos do inadimplemento nos casos em que o incumprimento não pode ser imputável ao devedor, não se configura o inadimplemento antecipado diante de situações de não imputação dos efeitos do inadimplemento. desta forma, não será possível considerar inadimplido um contrato quando o devedor possuir fundada justificativa para não tencionar continuar, ou mesmo começar a cumprir o que fora previamente acordado.

Tal fato ocorre, por exemplo, quando: i) as especificações do contato não permitem a sua execução (v.g., por erro no projeto ou falta de dados, que deveriam ser fornecidos pelo contratante); ii) são necessárias autorizações governamentais para continuar executando parte da obra; iii) entende-se, justificadamente, necessário obter esclarecimentos do contratante, que se recusa ou demora em fornecer; iv) o contratante impõe mudanças substanciais no projeto original de uma obra, sem que haja previsão para tanto no contrato; v) a recusa em cumprir decorre de um inadimplemento anterior por parte do contratante (aplicando-se o princípio exceptio non adimpleti contractus), ou vi) no caso de o próprio credor violar um dever de cooperação, decorrente da boa-fé, quando esta cooperação for necessária à realização de sua prestação etc.

Da mesma forma, ainda que ocorra uma situação de impossibilidade, se esta decorrer de caso fortuito ou força maior, não será possível considerar como um inadimplemento antecipado, por força do disposto no CC 393. Isso, é claro, salvo se o risco por uma dessas situações tenha sido assumido pela parte. Nestes casos, mesmo tendo se materializado o risco de caso fortuito ou força maior, será possível a aplicação do inadimplemento antecipado quando implicar a impossibilidade de cumprir, ou mesmo pelo fato de a parte recusar-se a cumprir, diante da ocorrência de uma dessas situações. (Raphael Manhães Martins, adv. e prof. da UERJ, em artigo intitulado “O inadimplemento antecipado da prestação do Direito brasileiro”, Revista da Emerj, v. 11, nº 42, de 2008, p. 213, acessado em 05.01.2021, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD). 

No entendimento de Guimarães e Mezzalira, o Código Civil proíbe a cláusula comissória, que consiste na previsão contratual que autoriza o credor a se apropriar da coisa dada em garantia, nos casos em que a dívida não for paga.

Embora seja proibida cláusula autorizando o credor a ficar com o objeto da garantia (cláusula comissória), o legislador permitiu ao devedor, após o vencimento da dívida, entregar a coisa para o seu pagamento, que liberará o devedor na hipótese de aceitação do credor. Trata-se declaração  em pagamento, uma faculdade do devedor e contemplada no sistema jurídico. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira  apud  Direito.com, comentários ao CC 1.428, acessado em 06.01.2021, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 1.429. Os sucessores do devedor não podem remir parcialmente o penhor ou a hipoteca na proporção dos seus quinhões; qualquer deles, porém, pode fazê-lo no todo.

Parágrafo único. O herdeiro ou sucessor que fizer a remição fica sub-rogado nos direitos do credor pelas quotas que houver satisfeito.

Dizem Guimarães e Mezzalira que, em consequência do princípio da indivisibilidade do direito real de garantia, previsto no CC 1.421, o sucessor do devedor não pode liberar o seu quinhão mediante o pagamento proporcional da dívida. Deverá pagar a totalidade do débito, sub-rogando-se nos direitos do credor.

Remição é a liberação da coisa gravada. O devedor tem o direito de efetuá-la, embora não possa realizar a remição parcial, pois a liberação ocorrerá apenas se o pagamento for total. 

A jurisprudência tem admitido a divisão da garantia hipotecária, conforme se verifica do entendimento consolidado na Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira  apud  Direito.com, comentários ao CC 1.429, acessado em 06.01.2021, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD). 

No mesmo sentido Ricardo Fiuza em sua doutrina, não ser admitida a remição (ato de libertar-se o bem do ônus que o grava, pagando-se-lhe o preço ao credor) parcial do penhor e da hipoteca por herdeiros na proporção de seus quinhões, pois o vínculo da garantia é indivisível. Só é possível que a remição seja feita no todo. Havendo a remição, o herdeiro ou sucessor se sub-roga nos direitos do credor. O artigo é idêntico ao 766 do Código Civil de 1916, devendo a ele ser dado o mesmo tratamento doutrinário. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 730, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 06/01/2021, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Na continuidade de Raphael Manhães Martins, adv. e prof. da UERJ, em artigo intitulado “O inadimplemento antecipado da prestação do Direito brasileiro”, Revista da Emerj, v. 11, nº 42, de 2008, p. 214, tem-se os fundamentos jurídico-dogmáticos da aplicação do instituto no direito brasileiro – Breve panorama do inadimplemento antecipado no Direito Brasileiro – Uma vez caracterizado o inadimplemento antecipado, torna-se necessário verificar as possibilidades de sua aplicação. Tal estudo esbarra em duas dificuldades iniciais: a um, nosso arcabouço legislativo, que, a despeito de recente promulgação de um novo Código Civil, ainda encontra-se fortemente influenciado pelo modelo dicotômico de inadimplemento, que desconhece a possibilidade de um inadimplemento antes do termo da obrigação (Sobre o tema, o autor remete-se ao estudo: MARTINS, Raphael Manhães. “A teoria do inadimplemento e transformações no direito das obrigações”). No prelo.

Nesse sentido, tem-se o CC 333, que estabelece que o credor poderá cobrar dívida antes do vencimento quando: i) houver a falência do devedor ou concurso de credores; ii) se os bens, hipotecados ou empenhados, forem penhorados em execução por outro credor; ou iii) se cessarem ou se tornarem insuficientes as garantias de débito fidejussórias ou reais, e o devedor se negar a reforça-las.

Também são exemplos os CC 1.425 e 1.426, que tratam do vencimento antecipado de dívidas garantidas por hipoteca, penhor ou anticrese: i) se a deterioração ou depreciação do bem dado em segurança desfalcar a garantia, e o devedor, intimado, não a reforçar; ii) se o devedor cair em insolvência; iii) se as prestações não forem pontualmente pagas, toda vez que deste modo se achar estipulado o pagamento; iv) se perecer o bem dado em garantia e não for substituído; ou v) se desapropriar o bem dado e garantia, hipótese na qual se depositará a parte do preço que for necessária para o pagamento integral do credor. 

Mas, embora o inadimplemento antes do vencimento da prestação não seja de todo estranho no nosso ordenamento, não há acolhida expressa do instituto do inadimplemento antecipado, enquanto categoria de inadimplemento, ao lado da mora e da impossibilidade. Muito pelo contrário, considerando-se o dispositivo do CC 939, parece mesmo haver uma certa predisposição contrária à aplicação do inadimplemento antecipado.

A predisposição contrária à aplicação do inadimplemento antecipado no ordenamento brasileiro é apenas ilusória, ou melhor, uma primeira impressão de um leitor afoito. Esta máscara cai quando o intérprete deixa de lado a literalidade da norma e perquire seus fundamentos e princípios, em busca de sua ratio, afinal, é importante notar que os princípios gerais do direito, enquanto manifestação da ideia de Justiça material, ocasionam e funcionam como fundamento de validade de diversas proposições jurídicas, substituindo eventuais lacunas legislativas (ou a falta de uma controvertida força legiferante das decisões reiteradas de nossos tribunais), por regras bastante específicas. 

Essas proposições jurídicas, derivadas dos princípios gerais de nosso ordenamento, embora estejam além da norma formal e de uma intenção explícita do legislador, encontram respaldo e extraem sua força cogente de uma natureza substancialmente superior, i.é, da própria ideia de Direito. Ideia que, para se materializar em nosso espaço-tempo contemporâneo, necessita construir estas preposições, sempre mais concretas e objetivas, e com uma aplicação mais precisa que os princípios. 

Nas palavras de Claus-Wilhelm Canaris, “a partir delas [os princípios gerais do direito], e através de um processo de concretização inteiramente material e muito complicado, desenvolvem-se proposições jurídicas de conteúdo claro e de alto poder convincente”. (CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Trad. A. Menezes Cordeiro, 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002, p. 120-121).

Note-se que, para que estas proposições jurídicas tenham validade no sistema brasileiro, é necessário que, entre estas e os princípios que as fundamentam, exista uma relação de interdependência. Em outras palavras, enquanto o principio serve de fundamento para a proposição, esta deve ser um pressuposto necessário à concretização do principio nos casos concretos. De outra forma, não há que se falar na inserção de uma proposição alienígena ao ordenamento jurídico.

Em relação ao inadimplemento antecipado, não restam dúvidas de que tal relação existe com os princípios gerais da proteção à confiança legítima e da boa-fé objetiva (Sobre a proximidade e distinções entre os princípios da Boa-Fé e da Confiança, remete-se o autor a seu trabalho anterior: “MARTINS, Raphael Manhães. “Apontamentos sobre o principio da Confiança Legítima no Direito Brasileiro”. Revista da EMERJ, v. 10, n. 40, 2007, p. 177-190). Nesse sentido, tem-se o leading case do STJ, em matéria de responsabilidade por violação de deveres impostos pela boa-fé: “Recurso especial. Civil. Indenização. Aplicação do principio da boa-fé contratual. Deveres anexos ao contrato – O principio da boa-fé se aplica às relações contratuais regidas pelo CDC, impondo, por conseguinte, a obediência aos deveres anexos ao contrato, que são decorrência lógica deste princípio. O dever anexo de cooperação pressupõe ações recíprocas de lealdade dentro da relação contratual. A violação a qualquer dos deveres anexos implica em inadimplemento contratual de quem lhe tenha dado causa”. 

O inadimplemento antecipado, dependendo do comportamento do obrigado, pode conduzir ou a uma violação ao princípio da boa-fé objetiva, e/ou a uma violação da confiança da outra parte. Nesse sentido, estar-se-á diante de uma violação ao princípio da boa-fé objetiva quando o devedor violar algum dos deveres impostos pelo principio, como ocorre: i) quando o obrigado coloca-se em posição de impossibilidade de adimplir com a prestação; ii) quando o devedor se recusa tacitamente a realizar o cumprimento da obrigação. Por outro lado, há uma violação do principio de proteção da confiança legítima quando o devedor iii) recusa-se a cumprir a obrigação que lhe é imposta. 

É evidente que esta distinção entre violação da confiança e violação da boa-fé objetiva não é, nem poderia ser, uma divisão absoluta, em que as hipóteses de violação de um dos princípios não atingem o outro. isto seria incogitável, tendo em vista a ausência de limites horizontais, a priori para a aplicação desses princípios. CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit., p. 79 e ss.

Por outro lado, é importante, através dessa separação, compreender de que forma cada um dos referidos princípios é violado, pois, se a própria justificativa do inadimplemento antecipado do contrato é a violação destes, não parece aceitável satisfazer-se com justificativas genéricas. Em outras palavras, a única maneira de fortalecer e embasar este instituto no sistema jurídico brasileiro é demonstrando como ele serve para a concretização dos princípios da boa-fé e da proteção da confiança legítima. e, através dessa compreensão, fica evidente a função do inadimplemento antecipado como uma maneira de concretizar os princípios da boa-fé e da confiança. Afinal, nas situações em que algumas das hipóteses fáticas do inadimplemento antecipado ocorrem, como não seria possível invocar nem a mora, nem o inadimplemento absoluta, fica patente que o não reconhecimento do instituto gerará uma situação de violação da Justiça material naquele caso concreto.

Assim, diante da evidência do caráter instrumental e necessário do inadimplemento antecipado para garantir a concretização dos referidos princípios da proteção da confiança legítima e da boa-fé, é inequívoco que o instituto possui guarida no ordenamento civilístico brasileiro. E, a fortiori, não há óbices à consideração do inadimplemento antecipado como um preceito presente – ainda que implícito – no ordenamento jurídico nacional, eis que aquele possui a força normativa necessária para tanto. (Raphael Manhães Martins, adv. e prof. da UERJ, em artigo intitulado “O inadimplemento antecipado da prestação do Direito brasileiro”, Revista da Emerj, v. 11, nº 42, de 2008, p. 213-17, acessado em 05.01.2021, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

No lecionar de Francisco Eduardo Loureiro, o preceito é desdobramento da indivisibilidade da garantia real, que recai sobre o bem por inteiro e beneficia cada parcela da dívida. A norma é dispositiva, cabendo convenção das partes em sentido contrário. 

O artigo em exame dispõe que se houver sucessão subjetiva, com substituição do devedor - ou de terceiro prestador da garantia real - por terceiros, em razão de ato inter vivos ou causa mortis, a remição do bem objeto da garantia real está subordinada ao pagamento integral da dívida. Dizendo de outro modo, ainda que o sucessor receba parte ideal do bem dado em garantia, somente pode obter a liberação mediante solução integral da obrigação, pois não pode o sucessor ter direitos superiores ao do devedor originário.

Como anota Gladston Mamede, este artigo não se aplica somente ao sucessor hereditário, mas a toda e qualquer hipótese de “sucessão subjetiva na qual se tenha substituição do proprietário do bem gravado por ônus real por uma multiplicidade de proprietários, haja compropriedade ou não” (Código Civil comentado. São Paulo, Atlas, 2003, v. XIV, p. 119). Lembre-se, porém, que o CC 1.488 em análise, adiante comentado, cria importante exceção ao princípio da indivisibilidade, nos casos de imóvel loteado ou em condomínio edilício.

Explica Carvalho Santos o seguinte, a respeito do preceito: se um dos herdeiros ou sucessores do devedor pagar sua parte da dívida, não pode pretender a liberação de sua parte na coisa dada em garantia enquanto a dívida não estiver inteiramente quitada; e, ainda que esse herdeiro pague sua parte da dívida, seu quinhão continua a responder por ela até seu integral pagamento (Código civil brasileiro interpretado, 5. ed. Rio de janeiro, Freitas Bastos, 1953, v. X, p. 97).

Nada impede um dos sucessores pagar integralmente a dívida e obter a liberação da garantia, sub-rogando-se em todos os direitos que competiam ao credor originário, de modo automático, sem necessidade de qualquer interpelação. Pode cobrar dos demais devedores a totalidade da dívida, excluída apenas sua quota-parte, que se extinguiu pela confusão. A garantia real onerará inteiramente a coisa, até a solução da obrigação. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.526-27.  Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 06/01/2021. Revista e atualizada nesta data por VD). 

Art. 1.430. Quando, excutido o penhor, ou executada a hipoteca, o produto não bastar para pagamento da dívida e despesas judiciais, continuará o devedor obrigado pessoalmente pelo restante.

Segundo o escrutínio de Francisco Eduardo Loureiro, O dispositivo regula a responsabilidade do devedor pelo remanescente da dívida, caso o produto da excussão não baste pela solução integral da obrigação, que abrange juros, encargos contratuais, custas processuais e honorários advocatícios.

O devedor continua obrigado pessoalmente pelo saldo. Esgotada a garantia, o credor preferencial se converte em quirografário. Pode executar o saldo, sem necessidade, a princípio, de ajuizar ação de conhecimento. Em determinados casos, quando permite a lei a alienação extrajudicial do bem dado em garantia, como na propriedade fiduciária, o devedor deve ser intimado a acompanhar a venda, sem o que eventual saldo devedor não comporta execução sem prévio acertamento em ação monitória ou de conhecimento. É evidente que, se a garantia real for prestada por terceiro, não há obrigação pessoal pelo saldo, pois o terceiro não é devedor, mas apenas vincula determinado bem de seu patrimônio à solução da obrigação. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.527.  Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 06/01/2021. Revista e atualizada nesta data por VD).

Na ciência de Guimarães e Mezzalira, a garanti real não exclui a garantia pessoal. Se o produto da garantia real não for suficiente para o pagamento da dívida, a execução prosseguirá pelo valor que resta, ou seja, o credor prosseguirá na condição de credor do saldo remanescentes, tratando-se, contudo, de crédito quirografário. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira  apud  Direito.com, comentários ao CC 1.430, acessado em 06.01.2021, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD). 

Dando  sequência à lição de Raphael Manhães Martins, adv. e prof. da UERJ, em artigo intitulado “O inadimplemento antecipado da prestação do Direito brasileiro”, depois de estabelecidos os contornos do inadimplemento antecipado no ordenamento brasileiro e estudado seus fundamentos, tem-se como passo final averiguar quais os efeitos atribuíveis ao inadimplemento antecipado.

Nesse sentido e trilhando o caminho seguido pela doutrina brasileira, deve-se compreender como o inadimplemento antecipado coloca-se em relação às duas figuras chaves do inadimplemento, quais sejam, a mora e a impossibilidade, a fim de traçar quais seriam sua s consequências. Para tanto, a referência obrigatória é o primeiro – e, até onde se sabe, único – debate travado na doutrina nacional, sobre o enquadramento dos efeitos de situações de inadimplemento antecipado. Tal fato, que já data de quase um século, teve como participantes Francisco de Paula Lacerda de Almeida e, fundamentalmente, Agostinho Alvim. 

Lacerda de Almeida – sem entrar na discussão sobre o inadimplemento antecipado propriamente (Tanto Lacerda de almeida quanto Agostinho Alvim trataram, em seus trabalhos, apenas da hipótese em que o devedor recusa explicitamente o cumprimento de uma obrigação), ao tecer seus comentários sobre a distinção entre mora e inadimplemento absoluto, concluiu, em nota de rodapé, que: “Há de ser difícil distinguir, salvo por recusa explícita e formal do devedor, entre a mora e o inadimplemento” (ALMEIDA, Francisco de Paula Lacerda de. “Obrigações. Exposição systematica desta parte do direito civil pátrio segundo o methodo dos ‘direitos de família’ e ‘direito das cousas’” do conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Revista dos tribunais, 1916, p. 166, grifou-se), dando a entender que seria inegavelmente o caso de inadimplemento absoluto.

Em seu magnifico estudo sobre o inadimplemento das obrigações, Da inexecução das obrigações e suas consequências, Agostinho Alvim divergiu de Lacerda de Almeida. Segundo Agostinho Alvim, atribuir tamanha importância ao “elemento volicional” do devedor, ‘que se recusa a cumprir, não encontra amparo no direito positivo. (Vê-se da aludida nota que o seu ilustre autor Lacerda de Almeida, pretende diagnosticar, como inadimplemento absoluto, todo caso em que tenha havido recusa explícita e formal do devedor. Mas o elemento volicional não tem aqui, como também não tem em outros pontos do direito obrigacional, a importância que amiúde lhe atribuem. Para estremar mora de inadimplemento absoluto é mister haja critério de ordem econômica” (Da inexecução das obrigações e suas consequências. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 39). 

Para pôr termo a tal controvérsia, Agostinho Alvim busca um critério misto, ou melhor, um critério que leve em conta não apenas a vontade das partes, mas as circunstâncias do caso concreto (“Se se trata de um fato pessoal, obrigação dita infungível, a recusa do devedor equivale ao inadimplemento absoluto [...] Mas se a obrigação é fungível, podendo o credor mandar realizar o trabalho por outrem, neste caso o inadimplemento tem o caráter demora” – idem, ibidem, p. 43). Nesse sentido, caberia, em cada caso, averiguar o interesse socioeconômico do credor para decidir se tratar-se-ia de mora ou de impossibilidade (“Ora, o que precipuamente interessa ao credor, economicamente falando, é saber se há meios de receber a prestação prometida, i.é, se a execução direta é possível. Se ele obtém a prestação, seja porque o devedor cumpriu a obrigação, seja porque ele, credor, a houve por outros meios, a sua situação é sempre a de credor que obteve o que tinha em vista, diversa da daquele que somente poderá obter o sucedâneo, i.é, as perdas e danos. Logo, o fato de haver recusa do devedor não altera a situação do credor, economicamente falando, quando possível lhe seja a execução direta. [...] Diante do exposto, pode-se justificar a fórmula aventada para caracterizar o inadimplemento absoluto e a mora, a saber: ‘Há inadimplemento absoluto quando não mais subsiste para o credor a possibilidade de receber a prestação; há mora quando persiste essa possibilidade’” – idem, ibidem, p. 43-44).

Dessa forma, conclui o indigitado autor, não seria previamente possível determinar que, em todas as situações de recusa do devedor, estar-se-ia diante do inadimplemento absoluto. Ao contrário, caberia em cada caso averiguar se o credor ainda teria interesse socioeconômico na prestação e, assim procedendo, decidir em qual das modalidades de inadimplemento a situação se encaixaria.

Após este profícuo debate, aparentemente a doutrina esmoreceu o ânimo de resolver a intrincada questão.

Para o desenvolvimento da temática proposta, não é possível passar ao largo deste tema. E, para tanto, propõem-se utilizar o velho método leninista de “dar um passo para trás, para poder caminhar dois para frente.

O inadimplemento antecipado, ao contrário das posições encabeçadas pelos aludidos autores, não permite a remissão às figuras clássicas da mora e do inadimplemento absoluto, eis que estas duas figuras tratam de hipóteses de quebra da obrigação principal, o que não é, propriamente, o caso.

O instituto requer uma tutela própria para seus efeitos, em comparação com o inadimplemento após o vencimento do termo, de forma: a um, não sujeitar à vontade do devedor os efeitos de seu inadimplemento, a dois, seja tecnicamente correta, e a três, se adapte aos contornos do nosso ordenamento jurídico. As soluções até então apresentadas não parecem satisfatórias para tanto.

Afinal, como Agostinho Alvim bem observou, não se pode deixar a cargo do devedor a escolha sobre quais as consequências de seu não cumprimento e, a partir disto, concluir pelo inadimplemento absoluto como a consequência natural. 

Por outro, a solução apresentada por Agostinho Alvim não parece de todo correta. Isto porque, como existe um prazo para o cumprimento da prestação, apenas poderia ocorrer a figura da mora quando houvesse o transcurso desse prazo e, portanto, a dívida seria exigível. (Sobre as exigências para a configuração da mora, Cf. Buarque, Sidney Hartung. Da demanda por dano moral na inexecução das obrigações. Rio de Janeiro: forense, 2005, p. 51).

Tal exigência implica, consequentemente, a impossibilidade de o credor propor ação direta contra o devedor para obriga-lo ao cumprimento da obrigação, em caso de inadimplemento antecipado. Isso porque, conforme já aludido, a processualística nacional possui previsão expressa contrária à realização do procedimento executivo sem fundamento em dívida líquida, certa e exigível, conforme os arts. 786 e 803, I, do CPC, o que não seria o caso. (Raphael Manhães Martins, adv. e prof. da UERJ, em artigo intitulado “O inadimplemento antecipado da prestação do Direito brasileiro”, Revista da Emerj, v. 11, nº 42, de 2008, p. 217-20, acessado em 06.01.2021, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).