sábado, 25 de abril de 2015

CÓDIGO PENAL (...) PARTE ESPECIAL - DOS CRIMES CONTRA A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO, CONTRA O SENTIMENTO RELIGIOSO E CONTRA O RESPEITO AOS MORTOS, CONTRA OS COSTUMES, CONTRA A FAMÍLIA, CONTRA A INCOLUMIDADE PÚBLICA, CONTRA A PAZ PÚBLICA E CONTRA A FÉ PÚBLICA. CONCLUSÃO. VARGAS DIGITADOR




CÓDIGO PENAL (...) PARTE ESPECIAL -  DOS CRIMES CONTRA A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO, CONTRA O SENTIMENTO RELIGIOSO E CONTRA O RESPEITO AOS MORTOS, CONTRA OS COSTUMES, CONTRA A FAMÍLIA, CONTRA A INCOLUMIDADE PÚBLICA, CONTRA A PAZ PÚBLICA E CONTRA A FÉ PÚBLICA. CONCLUSÃO. VARGAS DIGITADOR – DECRETO-LEI N 2.848, DE 07 DE DEZEMBR0 DE 1940 – EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS DA NOVA PARTE ESPECIAL DO CÓDIGO PENAL - VARGAS DIGITADOR

DOS CRIMES CONTRA A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO

66. O projeto consagra um título especial aos “crimes contra a organização do trabalho”, que é Código atual do , sob o título de “crimes contra a liberdade do trabalho”, classifica entre os “crimes contra a liberdade do trabalho”, classifica entre os “crimes contra o livre gozo e exercício dos direitos individuais” (isto é, contra a liberdade individual). Este critério de classificação, enjeitado pelo projeto, afeiçoa-se a um postulado da economia liberal, atualmente desacreditado, que Zanardelli, ao tempo da elaboração do Código Penal italiano de 1889, assim fixava: “A lei deve deixar que cada um proveja aos próprios interesses pelo modo que melhor lhe pareça, e não pode intervir senão quando a livre ação de uns seja lesiva do direito de outros. Não pode ela vedar aos operários a combinada abstenção de trabalho para atender a um objetivo econômico, e não ode impedir um industrial que feche, quando lhe aprouver, a sua fábrica ou oficina. O trabalho é uma mercadoria, da qual, como de qualquer outra, se pode dispor à vontade, quando se faça uso do próprio direito sem prejudicar o direito de outrem”. A tutela exclusivista da liberdade individual abstraía, assim, ou deixava em pleno secundário interesse da coletividade, o bem geral. A greve, o lockout, todos os meios incruentos e pacíficos na luta entre o proletariado e o capitalismo eram permitidos e constituíam mesmo o exercício de líquidos direitos individuais. O que cumpria assegurar, antes de tudo, na esfera econômica, era o livre jogo das iniciativas individuais. O que cumpria assegurar, antes de tudo, na esfera econômica, era o livre jogo das iniciativas individuais.ora, semelhante programa, que uma longa experiência demonstrou errôneo e desastroso,já não é mais viável em face da constituição de 37. Proclamou esta a legitimidade da intervenção do Estado no domínio econômico, “para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento do interesse da Nação”. Para dirimir as contendas entre o trabalho e o capital, foi instituída a Justiça do trabalho, tornando-se incompatível com a nova ordem política o exercício arbitrário das próprias razões por parte de empregados e empregadores.

67. A greve e o lockout (isto é, a paralisação ou suspensão arbitrária do trabalho pelos operários ou patrões) foram declarados “recursos antissociais, nocivos ao trabalho e ao capital, e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional”. Já não é admissível uma liberdade do trabalho entendida como liberdade de iniciativa de uns sem outro limite que igual liberdade de iniciativa de outros. A proteção jurídica já não é concedida à liberdade do trabalho, inspirada não somente na defesa e no ajustamento dos direitos e interesses individuais em jogo, mas também, e principalmente, no sentido superior do bem comum de todos. Atentatória, ou não da liberdade individual, toda ação perturbadora da ordem jurídica, no que concerne ao trabalho, é lícita e está sujeita a sanções repressivas, sejam de direito administrativo, sejam de direito penal. Daí, o novo critério adotado pelo projeto, isto é, a transladação dos crimes contra o trabalho, do setor dos crimes contra a liberdade in0dividual para uma classe autônoma, sob a já referida rubrica. Não foram, porém, trazidos para o campo do ilícito penal todos os fatos contrários à organização do trabalho: são incriminados, de regra, somente aqueles que se fazem acompanhar da violência ou da fraude. Se falta qualquer desse elemento, não passará o fato, salvo poucas exceções, de ilícito administrativo. É o ponto de vista já fixado em recente legislação trabalhista. Assim, incidirão em sanção penal o cerceamento do trabalho pela força ou intimidação (artigo 197, I), a coação para o fim de greve ou de lockout (artigo 197, II), a boicotagem violenta (artigo 198), o atentado violento contra a liberdade da associação profissional (artigo 199), a greve seguida de violência contra a pessoa ou contra a coisa (artigo 200), a invasão e arbitrária posse de estabelecimento de trabalho (artigo 202, in fine), a frustração, mediante violência ou fraude, de direitos assegurados por lei trabalhista ou de nacionalização do trabalho (artigos 203 e 204). Os demais crimes contra o trabalho, previstos no projeto, dispensam o elemento violência  ou fraude (artigos 201, 205, 206, 207), mas explica-se a exceção: é que eles, ou atentam imediatamente contra o interesse público, ou imediatamente ocasionam uma grave perturbação da ordem econômica. É de notar-se que a suspensão ou abandono coletivo de obra pública ou serviço de interesse coletivo somente constituirá o crime previsto no artigo 201 quando praticado por “motivos pertinentes às condições do trabalho”, pois, de outro modo, o fato importará o crime definido no artigo 18 da Lei de Segurança, que continua em pleno vigor.

DOS CRIMES CONTRA O SENTIMENTO RELIGIOSO E CONTRA O RESPEITO AOS MORTOS

68. São classificados como species do mesmo genus os “crimes contra o sentimento religioso” e os “crimes contra o respeito aos mortos”. É incontestável a afinidade entre uns e outros. O sentimento religioso e o respeito aos mortos são valores eticossociais que se assemelham. O tributo que se rende aos mortos tem um fundo religioso, idêntico, em ambos os casos, é a ratio assendi da tutela penal.

O projeto divorcia-se da lei atual,não só quando deixa de considerar os crimes referentes aos cultos religiosos como subclasse dos crimes contra a liberdade individual (pois o que passa a ser, precipuamente, objeto da proteção penal é a religião como um bem em si mesmo), como quando traz para o catálogo dos crimes (lesivos  do respeito aos mortos) certos fatos que o Código vigente considera simples contravenções, como o violatio sepulchri e a profanação de cadáver. Entidades criminais desconhecidas da lei vigente são as previstas nos artigos 209 e 211 do projeto: impedimento ou perturbação de enterro ou cerimônia fúnebre e supressão de cadáver ou de alguma de suas partes.

DOS CRMES CONTRA OS COSTUMES

69. Sob esta epígrafe, cuida o projeto dos crimes que, de modo geral, podem ser também denominados sexuais. São os mesmos crimes que a lei vigente conhece sob a extensa rubrica “Dos crimes contra a segurança, da honra e honestidades das famílias e do ultraje público ao pudor”. Fugiram eles com cinco subclasses, assim intitulados: “Dos crimes contra a liberdade sexual”. “Da sedução e da corrupção de menores”, “Do rapto”, “Do lenocínio e do tráfico de mulheres” e “Do ultraje público ao pudor”.

O crime de adultério, que o Código em vigor contempla entre os crimes sexuais, passa a figurar no setor dos crimes contra a família.

70. Entre os crimes contra a liberdade sexual, de par com as figuras clássicas do estupro e do atentado violento ao pudor, são incluídas a “posse sexual mediante fraude” e o “atentado ao pudor mediante fraude”. Estas duas entidades criminais, na amplitude com que as conceitua o projeto, são estranhas à lei atual. Perante esta, a fraude é um dos meios morais  do crime de defloramento, de que só a mulher menor de 21 (vinte e um) anos e maior de 16 (dezesseis) pode ser sujeito passivo. Segundo o projeto, entretanto, existe crime sempre que, sendo a vítima mulher honesta, haja emprego de meio fraudulento (v.g., simular casamento, substituir-se ao marido na escuridão da alcova). Não importa, para a existência do crime, que a ofendida seja, ou não maior ou virgo intacta. Se da cópula resulta o desvirginamento da ofendida, e esta é menor de 18 (dezoito) anos e maior de 14 (quatorze), a pena é especialmente aumentada.

Na identificação dos crimes contra a liberdade sexual é presumida a violência (artigo 224) quando a vítima: a) não é maior de 14 (quatorze) anos; b) é afenada ou débil mental conhecendo o agente esta circunstância, ou c) acha-se em estado de inconsciência (provocado, ou não, pelo agente), ou, por doença ou outra causa, impossibilitada de oferecer  resistência. Como se vê, o projeto diverge substancialmente da lei atual: reduz, para o efeito de presunção de violência, o limite de idade  da vítima e amplia os casos de tal presunção (a lei vigente presume a violência no caso único de ser a vítima menor de dezesseis anos). Com a redução do limite de idade, o projeto atende à evidência de um fato social contemporâneo dos fatos sexuais. O fundamento da ficção legal de violência, no caso dos adolescentes, é a innocentia consilli do sujeito passivo, ou seja, a sua completa insciência em relação aos fatos sexuais, de modo que não se pode dar valor algum ao seu consentimento. Ora, na época atual, seria abstrair hipocritamente a realidade o negar-se que uma pessoa de 14 (quatorze) anos completos já tem uma noção teórica, bastante exata, dos segredos da vida sexual e do risco que corre se prestar-se à lascívia de outrem. Estendendo a presunção da violência aos casos em que o sujeito passivo é alienado ou débil mental, o projeto obedece ao raciocínio de que, também aqui, há ausência de consentimento válido e ubi eadem ratio, ibi eadem dispositio.

Por outro lado, se a incapacidade de consentimento faz presumir a violência, com maioria de razão dever ter o mesmo efeito e estado de inconsciência da vítima ou sua incapacidade de resistência, seja esta resultante de causas mórbidas (enfermidade, grande debilidade orgânica, paralisia etc.), ou de especiais condições físicas (como quando o sujeito passivo é um indefeso aleijado, ou se encontra acidentalmente tolhido de movimentos).

71. Sedução é o nomen juris que o projeto dá ao crime atualmente denominado defloramento. Foi repudiado este título, porque faz supor como imprescindível condição material do crime a ruptura do hímen (fios virgineum), quando,na realidade, basta que a cópula seja realizada com mulher virgem, ainda que não resulte essa ruptura, como nos casos de complacência himenal.

O sujeito passivo da sedução é a mulher virgem,maior de 14 (quatorze) e menor de 18 (dezoito) anos. No sistema do projeto, a menoridade, do ponto de vista da proteção penal, termina aos 18 (dezoito) anos. Fica, assim, dirimido o ilogismo em que incide a legislação vigente, que, não obstante reconhecer a maioridade política e a capacidade penal aos 18 (dezoito) anos completos (Constituição, artigo 117, e Código Penal, modificado pelo Código de Menores), continua a pressupor a imaturidade psíquica, em matéria de crimes sexuais, até os 21 (vinte e um) anos.

Para que se identifique o crime de sedução é necessário que seja praticado “com abuso da inexperiência ou justificável confiança” da ofendia. O projeto não protege a moça que se convencionou chamar emancipada, nem tampouco aquela que, não sendo de todo ingênua, se deixa iludir por promessas evidentemente insinceras.

Ao ser fixada a fórmula relativa ao crime em questão, partiu-se do pressuposto de que os fatos relativos à vida sexual não constituem na nossa época matéria que esteja subtraída, como no passado,ao conhecimento dos adolescentes de 18 (dezoito) anos completos. A vida, nosso tempo, pelos seus costumes e pelo seu estilo, permite aos indivíduos surpreender, ainda bem não atingida a maturidade, o que antes era o grande e insondável mistério, cujo conhecimento se reservava apenas aos adultos.

Certamente, o direito penal não pode abdicar de sua função ética, para acomodar-se ao afrouxamento dos costumes, mas, no caso de que ora se trata, muito mais eficiente que a ameaça da pena aos sedutores, será retirada da tutela penal à moça maior de 18 (dezoito) anos, que, assim, se fará mais cautelosa ou menos acessível.

Em abono do critério do projeto, acresce que, hoje em dia, dados os nossos costumes e formas de vida, não são raros os casos em que a mulher não é a única vítima da sedução.

Já foi dito, com acerto, que “nos crimes sexuais, nunca o homem é tão algoz que não possa ser, também, um pouco vítima, e a mulher nem sempre é a maior e a única vítima dos seus pretendidos infortúnios sexuais” (Filipo Manci, Dellitti sessuali).

72. Ao configurar o crime de corrupção de menores, o projeto não distingue como faz a lei atual, entre corrupção efetiva e corrupção potencial: engloba as duas species e comina a mesma pena. O meio executivo do crime tanto pode ser a prática do ato libidinoso com a vítima (pessoa maior de quatorze e menor de dezoito anos, como o induzimento deste à prática - ainda que com outrem, mas para a satisfação da lascívia do agente), ou a presenciar ato dessa natureza.

73. O rapto para fim libidinoso, é conservado entre os crimes sexuais, rejeitado o critério do projeto Sá Pereira, que o transladava para a classe dos crimes contra a liberdade. Nem sempre o meio executivo do rapto é a violência. Ainda mesmo se tratando de rapto violento, deve-se atender a que, segundo a melhor técnica, o que especializa um crime não é o meio, mas o fim. No rapto, seja violento, fraudulento ou consensual, o fim do agente é a posse da vítima para fim sexual ou libidinoso. Trata-se de um crime dirigido contra o interesse da organização ético-social da família – interesse que sobreleva o da liberdade pessoal seu justo lugar, portanto, é entre os crimes contra os costumes.

O projeto não se distancia muito da lei atual, no tocante aos dispositivos sobre o rapto. Ao rapto violento ou próprio (vi aut minis) é equiparado o rapto per fraudem (compreensivo do rapto per insidias). No rapto consensual (com ou sem sedução), menos severamente punido,a paciente só pode ser a mulher entre os 14 (quatorze) e 21 (vinte e um) anos (se a raptada é menor de quatorze anos, o rapto se presume violento), conservando-se, aqui, o limite da menoridade civil, de vez que essa modalidade do crime é, principalmente, uma ofensa ao pátrio poder ou autoridade tutelar (in parentes vel tutores).

A pena, em qualquer caso, é diminuída de um terço, se o crime é praticado para fim de casamento, e da metade, se dá-se a resolutio in integrum da vítima e sua reposição in loco tuto ac libero.

Se ao rapto se segue outro crime contra a raptada, aplica-se a regra do concurso material. Fica, assim, modificada a lei vigente, segundo a qual, se o crime subsequente é o defloramento ou estupro (omitida referência a qualquer outro crime sexual), a pena do rapto é aumentada da sexta parte.

74. O projeto reserva um capítulo especial às disposições comuns aos crimes sexuais até aqui mencionados. A primeira delas se refere às formas qualificadas  de tais crimes, isto é, aos casos em que, tanto havido emprego de violência, resulta lesão corporal grave ou a morte da vítima: no primeiro caso, a pena será reclusão por 4 (quatro) a 12 (doze) anos; no segundo, a mesma pena, de 8 (oito) a 20 (vinte) anos.

A seguir, vêm os preceitos sobre a violência ficta, de que acima já se tratou, sobre a disciplina da ação penal na espécie e sobre agravantes especiais. Cumpre notar que uma disposição comum aos crimes em questão não figura na “parte especial”, pois se achou que ficaria melhor colocada no título sobre a extinção da punibilidade da “parte geral”: é o que diz respeito ao subsequens matrimonium (art. 108, VIII), que, antes ou depois da condenação, exclui a imposição da pena.

75. Ao definir as diversas modalidades do lenocínio, o projeto não faz depender o crime de especial meio executivo, nem da habitualidade nem do fim de lucro. Se há emprego de violência, intimidação ou fraude, ou se o agente procede lucri faciendi causa, a pena é especialmente agravada. Tal como na lei atual, o lenocínio qualificado ou familiar é mais severamente punido que o lenocínio simples. Na prestação de local a encontros para fim libidinoso, é taxativamente declarado que o crime existe independentemente de mediação direta do agente para esses encontros ou de fim de lucro.

São especialmente previsto o rufianismo (alphonsisme, dos franceses, mantenufismo, dos italianos; Zuhalterei, dos alemães) e o tráfico de mulheres.

Na configuração do ultraje público ao pudor, o projeto excede de muito em providência à lei atual.

DOS CRIMES CONTRA A FAMÍLIA

76. O título consagrado aos crimes contra a família divide-se em quatro capítulos, que correspondem, respectivamente, aos “crimes contra o casamento”, “crimes contra o estado de filiação”, “crimes contra a assistência familiar” e “crimes contra o pátrio poder, tutela ou curatela”. O primeiro entre os crimes contra o casamento é a bigamia – nomen juris que o projeto substitui ao de poligamia, usado pela lei atual. Seguindo-se o mesmo critério desta, distingue-se, para o efeito de pena, entre aquele que, sendo casado, contrai novo casamento e aquele que, sendo solteiro, se casa com pessoa que sabe casada. Conforme expressamente dispõe o projeto, o crime bigamia existe desde que, ao tempo do segundo casamento, estava vigente o primeiro, mas, se o crime se extingue, pois que a declaração de nulidade retroage ex tunc. Igualmente não subsistirá o crime se vier a ser anulado o segundo casamento, por motivo outro que não o próprio impedimento do matrimônio anterior (pois a bigamia não pode excluir-se a si mesma). Releva advertir que na “parte geral” (artigo 111, e) se determina, com inovação da lei atual, que, no crime de bigamia, o prazo de prescrição da ação penal se conta da data em que o fato se tornou conhecido.

77. O projeto mantém a incriminação do adultério, que passa, porém, a figurar entre os crimes contra a família, na subclasse dos crimes contra o casamento. Nãohá razão convincente para qe se deixe tal fato à margem da lei penal. É incontestável que o adultério ofende um indeclinável interesse de ordem social, qual seja o que diz com a organização ético-jurídica da vida familiar. O exclusivismo da recíproca posse sexual dos cônjuges é condição de disciplina, harmonia e continuidade do núcleo familiar. Se deixasse impune o adultério, o projeto teria mesmo contrariado o preceito constitucional que coloca a família “sob a proteção especial do Estado”. Uma notável inovação contém o projeto: para que se configure o adultério do marido, não é necessário que este tenha e mantenha concubina, bastando, tal como no adultério da mulher, a simples infidelidade conjugal.

Outra inovação apresenta o projeto, no tocante ao crime em questão: a pena é sensivelmente diminuída, passando a ser de detenção por 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses; é de 1 (um) mês, apenas,o prazo de decadência do direito de queixa (e não prescrição da ação penal), e este não pode ser exercido pelo cônjuge desquitado ou que consentiu no adultério ou o perdoou expressa ou tacitamente. Além disso, o juiz pode deixar de aplicar a pena, se havia cessado a vida em comum dos cônjuges ou se o querelante avia praticado qualquer dos atos previstos no artigo 317 do Código Civil. De par com a bigamia e o adultério, são previstas, no mesmo capítulo, entidades criminais que a lei atual ignora. Passam a constituir ilícito penal os seguinte fatos, até agora deixados impunes ou sujeitos a meras sanções civis: contrair casamento, induzindo em erro essencial o outro contraente, ou ocultando-lhe impedimento que não seja o resultante de casamento anterior (pois,neste caso, o crime será o de bigamia); contrair casamento, conhecendo a existência de impedimento que acarrete sua nulidade absoluta, fingir de autoridade para celebração do casamento e simular casamento. Nestas duas últimas hipóteses, trata-se de crimes subsidiários; só serão punidos por si mesmos quando não constituam participação em crime mais grave ou elemento de outro crime.

78. Ao definir os crimes contra o estado de filiação, adota o projeto fórmulas substancialmente idênticas à do Código atual, que os conhece sob a rubrica de “parto suposto e outros fingimentos”.

79. É reservado um capítulo especial aos “crimes contra a assistência familiar”, quase totalmente ignorados da legislação vigente. Seguindo o  exemplo dos códigos e projetos de codificação mais recentes, o projeto faz incidir sob a sanção penal o abandono de família. O reconhecimento desta nova specie criminal é, atualmente, ponto incontroverso. Na “Semana Internacional de direito”, realizada em Paris, no ano de 1937, lonesco-Doly, o representante da Romênia, fixou, na espécie, com acerto e precisão, a ratio  da incriminação: “A instituição essencial que é a família atravessa atualmente uma crise bastante grave. Daí, a firme, embora recente, tendência no sentido de uma intervenção do legislador, para substituir as sanções civis, reconhecidamente ineficazes, por sanções penais contra a violação dos deveres jurídicos de assistência que a consciência jurídica universal considera como o assento básico do status famillie. Virá isso contribuir para, em complemento de medidas que se revelaram insuficientes par a proteção da família, conjurar um dos aspectos dolorosos da crise por que passa esse instituição. É, de todo em todo, necessário que desapareçam certos fatos profundamente lamentáveis, e desgraçadamente cada vez mais frequentes, como seja o dos maridos que abandonam suas esposas e  filhos, deixando-os sem meios de subsistência, ou o dos filhos que desamparam na miséria seus velhos pais enfermos ou inválidos”.

É certo que a vida social no Brasil não oferece, tão assustadoramente como em outros países, o fenômeno da desintegração  e desprestígio da família, mas a sanção penal contra o “abandono de família, inscrita no futuro Código, virá contribuir, entre nós, para atalhar ou prevenir o mal incipiente.

Para a conceituação do novo crime, a legislação comparada oferece dois modelos: o francês, demasiadamente restrito, e o italiano, excessivamente amplo. Segundo a lei francesa, o crime de abandono de família é constituído pelo fato de, durante um certo período (três meses consecutivos), deixar o agente de pagar a pensão alimentar decretada por um decisão judicial passada em julgado. é o chamado abandono pecuniário. Muito mais extensa, entretanto,é a fórmula do Código Penal italiano, que foi até a incriminação do abandono moral, sem critérios objetivos na delimitação deste. O projeto preferiu a fórmula transacional do chamado abandono material. Dois são os métodos adotados na incriminação: um direto, isto é, o crime pode ser identificado diretamente pelo juiz penal, que deverá verificar, ele próprio, se o agente deixou de prestar os recursos necessários; outro indireto, ,isto é, o crime existirá automaticamente se, reconhecida pelo juiz do cível a obrigação de alimentos e fixado seu quantum na sentença, deixar o agente de cumpri-la durante 3 (três) meses consecutivos. Não foi, porém, deixado inteiramente à margem o abandono moral. Deste cuida o projeto em casos especiais, precisamente definidos, como aliás, já fez o atual Código de Menores. É até mesmo incriminado o abandono intelectual, embora num caso único e restritíssimo (artigo 246), deixar, sem Just causa, de ministrar ou fazer ministrar instrução primária a filho em idade escolar.

Segundo o projeto, só é punível o abandono intencional ou doloso, embora não se indague do motivo determinante se por egoísmo, cupidez, avareza, ódio etc. foi rejeitado o critério de fazer depender a ação penal de prévia queixa da vítima, pois isso valeria, na prática, por tornar letra morta o preceito penal. Raro seria o caso de queixa de um cônjuge contra o outro, de um filho contra o pai ou de um pai contra o filho. Não se pode deixar de ter em atenção o que Marc Ancel chama pudor familliae, isto é, o sentimento que inibe o membro de uma família de revelar as faltas de outro, que, apesar dos pesares, continua a merecer o seu repeito e talvez o seu afeto. A pena cominada na espécie é alternativa: detenção ou multa. Além disso, ficará o agente sujeito, na conformidade da regra geral sobre as “penas acessórias” (Capítulo V do Título V da Parte Geral), à privação definitiva ou temporária de poderes que, em relação à vítima ou vítimas, lhe sejam atribuídos pela lei civil, em consequência do status familliae.

Cuidando dos crimes contra o pátrio poder, tutela ou curatela,  o projeto limita-se a reivindicar para o futuro Código Penal certos preceitos do atual Código de Menores, apenas ampliados no sentido de abranger na proteção penal, além dos menores de 18 (dezoito) anos, os interditos.

DOS CRIMES CONTRA A INCOLUMIDADE PÚBLICA

80. Sob este título, são catalogados, no projeto, os crimes que a lei atual determina contra a tranquilidade pública. Estão eles distribuídos em três subclasses: crimes de perigo comum (isto é, aqueles que, mais nítida ou imediatamente que os das outras subclasses, criam uma situação de perigo de dano a um indefinido número de pessoas), crimes contra a segurança dos meios de comunicação e transporte e outros serviços públicos e crimes contra a saúde pública. Além de reproduzir, com ligeiras modificações, a lei vigente, o projeto supre omissões desta, configurando novas entidades criminais, tais como “uso perigoso de gases tóxicos”, o “desabamento ou desmoronamento” (isto é, o fato de causar em prédio próprio ou alheio, desabamento total ou parcial de alguma construção, ou qualquer desmoronamento, expondo a perigo a vida, integridade física ou patrimônio de outrem), , “subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento”, difusão de doença ou praga”, “periclitação de qualquer meio de transporte público” (a lei atual somente cuida da periclitação de transportes ferroviários ou marítimos, não se referindo,sequer, à do transporte aéreo, que o projeto equipara àqueles), “atentado contra a segurança de serviços de utilidade pública”, “provocações de epidemia”, “violação de medidas preventivas contra doenças contagiosas” etc.

Relativamente às formas qualificadas dos crimes em questão, é adotada a seguinte regra geral (art. 256): no caso de dolo,se resulta a alguém lesão corporal de natureza grave, a pena privativa da liberdade é aumentada de metade,e, se resulta morte, é aplicada em dobro; no caso de culpa, se resulta lesão corporal (leve ou grave), as penas são aumentadas de metade e, se resulta morte, e aplicada de homicídio culposo, aumentada de um tempo.

DOS CRIMES CONTRA A PAZ PÚBLICA

81. É esta a denominação que o projeto atribui ao seguinte grupo de crimes: “incitação de crime”, “apologia de crime ou criminoso” e “quadrilha ou bando” (isto é, associação de mais de três pessoas para o fim de prática de crimes comuns). É bem de ver que os dispositivos sobre as duas primeiras entidades criminais citadas não abrangem a provocação ou apologia de crimes político-sociais, que continuarão sendo objeto de legislação especial, segundo dispõe o artigo 360.

DOS CRIMES CONTRA A FÉ PÚBLICA

82. O título reservado aos crimes contra a fé pública, divide-se  em quatro capítulos, com as seguintes epígrafes: “Da moeda falsa”, “Da falsidade de títulos e outros papéis públicos”, “Da falsidade documental” e “De outras falsidades”. Os crimes de testemunho falso e denunciação caluniosa, que no, no Código atual, figuram entre os crimes lesivos da fé pública, passam para o seu verdadeiro lugar, isto é, para o setor dos crimes contra a administração da justiça (subclasse dos crimes contra a administração pública).

83. Ao configurar as modalidades do crimen falsi, o projeto procurou simplificar a lei penal vigente, evitando superfluidades ou redundâncias,, no mesmo passo, suprir lacunas de que se ressente a mesma lei. À casuística do falsum são acrescentados os seguintes fatos: emissão de moeda com título ou peso inferior ao determinado em lei, desvio e antecipada circulação de moeda; reprodução ou adulteração de selos destinados à filatelia; supressão ou ocultação de documentos (que a lei atual prevê como modalidade de dano); falsificação do sinal empregado no contrate de metal precioso ou na fiscalização aduaneira ou sanitária, ou para autenticação ou encerramento de determinados objetos, u comprovação do cumprimento de formalidades legais; substituição de pessoa e falsa identidade (não constituindo tais fatos elemento de crime mais grave).

Para dirimir as incertezas que atualmente oferece a identificação da falsidade ideológica foi adotada uma fórmula suficientemente ampla e explícita: “Omitir, em documento público ou particular, declarações que dele deviam constar, ou inserir ou fazer inserir nele declarações falsas ou diversas das que deviam ser escritas, como fim de prejudicar um direito, criar uma obrigação, ou alterar a verdade de fatos juridicamente relevantes”.

DOS CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

84. Em último lugar, cuida o projeto dos crimes contra a administração pública repartidos em três subclasses: “crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral”, crimes praticados por particular contra a administração em geral”e “crimes contra a administração da justiça”. Várias são as inovações introduzidas, no sentido de suprir omissões ou retificar fórmulas da legislação vigente. Entre os fatos incriminados como lesivos do interesse da administração pública, figuram os seguintes, até agora, injustificadamente, deixados à margem da nossa lei penal: emprego irregular de verbas e rendas pública; advocacia administrativa (isto é, “patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado junto à administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário”); violação do sigilo funcional, violação do sigilo de proposta em concorrência pública; exploração de prestígio junto à autoridade administrativa ou judiciária (venditio fumi); obstáculo ou fraude contra concorrência ou hasta pública,inutilização de objetos; motim de presos; falsos avisos de crime ou contravenção; autoacusação  falsa; coação no curso de processo judicial, fraude processual; exercício arbitrário das próprias razões, favorecimento post factum a criminosos (o que a lei atual só parcialmente incrimina como forma de cumplicidade); tergiversação do procurador judicial; reingresso de estrangeiro expulso.

85. O artigo 327 do projeto fixa, para os efeitos penais, a noção de funcionário público: “Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública”. Ao funcionário público é equiparado o empregado de entidades paraestatais. Os conceitos da concussão, da corrupção (que a lei atual chama peita ou suborno), da resistência e do desacato são ampliados. A concussão não se limita, como na lei vigente, ao crimen superexactinis ( de que o projeto cuida em artigo especial), pos consiste, segundo o prjeto, em “exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, mesmo fora das funções, ou antes de assumi-las, mas em razão delas, qualquer retribuição indevida”.

A corrupção é reconhecível mesmo quando o funcionário não tenha ainda assumido o cargo. Na resistência, o sujeito passivo não é exclusivamente o funcionário público, mas também qualquer pessoa que lhe esteja, eventualmente, prestando assistência.

O desacato se verifica não só quando o funcionário se acha no exercício da função (seja, ou não, o ultraje infligido propter officium), senão também quando se acha extra officium, desde que a ofensa seja propter officium.

CONCLUSÃO

86. É este o projeto que tenho a satisfação e a honra de submeter à apreciação de Vossa Excelência.

O trabalho de revisão do projeto Alcântara Machado durou justamente 2 (dois) anos. Houve3 tempo suficiente para exame e meditação da matéria em todas as suas minúcias e complexidades. Da revisão resultou um novo projeto. Não foi este o propósito inicial. O novo projeto não resultou de plano preconcebido, nasceu, naturalmente, à medida que foi progredindo o trabalho de revisão. Isto em nada diminuiu o valor do projeto revisto. Esse constituiu uma etapa útil e necessária à construção do projeto definitivo.

A obra legislativa do Governo de Vossa Excelência é, assim, enriquecida com uma nova codificação, que nada fica a dever aos grandes monumentos legislativos promulgados recentemente em outros países. A Nação ficará a dever a Vossa Excelência, dentre tantos que já lhe deve, mais este inestimável serviço à sua cultura.

Acredito que, na perspectiva do tempo, a obra de codificação do Governo de Vossa Excelência há de ser lembrada como um dos mais importantes subsídios trazidos pelo seu Governo, que tem sido um governo de unificação nacional, à obra de unidade política e cultural do Brasil.

Não devo encerrar esta exposição, sem recomendar especialmente a Vossa Excelência todos quantos constituíram para que pudesse realizar-se a nova codificação penal no Brasil. Dr. Alcântara Machado, Ministro A. J. da Costa e Silva, Dr. Vieira Braga, Dr. Nelson Hungria, Dr. Roberto Lira, Dr. Narcélio de Queiroz. Não estaria, porém, completa a lista se não acrescentasse o nome do Dr. Abgar Renault, que me prestou os mais valiosos serviços da redação final do projeto.

Aproveito e ensejo, Senhor Presidente, para renovar a vossa Excelência os protestos do meu mais profundo respeito.


Francisco Campos.