quinta-feira, 9 de abril de 2015

MANUAL DE PROCESSO PENAL – NOÇÕES PRELIMINARES – PRINCÍPIO DO “FAVOR REI” (BENEFÍCIO DO RÉU) – PRINCÍPIO DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO - VARGAS DIGITADOR

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – NOÇÕES PRELIMINARES – PRINCÍPIO DO “FAVOR REI” (BENEFÍCIO DO RÉU) – PRINCÍPIO DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO - VARGAS DIGITADOR

Princípio do “favor rei” (benefício do réu)

Como bem diz Giuseppe Bettiol, numa determinada ótica, o princípio do favor rei é o princípio base de toda a legislação processual penal de um Estado, inspirado na sua vida política e no seu ordenamento jurídico por um critério superior de liberdade (cf. Instituições de direito e processo penal, trad. Manuel da Costa Andrade, Coimbra, Coimbra Ed., 1974, p. 295).

No Processo Penal, várias são as disposições que consagram o princípio do favor innocentiae, favor libertatis ou favor rei. Assim, a proibição da reformatio in pejus – reforma para pior (art. 617): os recursos privativos da Defesa, como o protesto por novo júri e os embargos infringentes ou de nulidade (arts. 607 e 609 e ss.); a regra do art. 615, § 1º; e, por fim, como coroamento desse princípio, o da presunção de inocência, hoje erigido à categoria de dogma constitucional. Alguns autores incluem como exemplo do favor rei a regra do art. 386, VI, do CPP, que impõe a absolvição por insuficiência de prova. Parece-nos, contudo, que a razão esteja com Santiago Sentís Melendo: “Quando se di in dubio pro reo se está dizendo que, ante a falta de provas, o Juiz deve absolver o réu; y esto parece que no necesita justificación”. E acrescenta: “O juiz não duvida quando absolve. Está firmemente seguro, tem a plena certeza. De quê? De que lhe faltam provas para condenar. No se trata de ‘favor’ sino de justicia” (In dubio pro reo, Buenos Aires, EJEA, 1971, p. 158).

Princípio do duplo grau de jurisdição

Trata-se de princípio da mais alta importância. Todos sabemos que os Juízes, como homens que são, estão sujeitos a erro. Por isso mesmo o Estado criou órgãos jurisdicionais a eles superiores, precipuamente para reverem, em grau de recurso, suas decisões. O que se infere do nosso ordenamento é que o duplo grau de jurisdição é uma realidade incontrastável. Sempre foi assim entre nós. Isso mesmo se infere do art. 92 da CF, ao falar em Tribunais e Juízes Federais, Tribunais e Juízes Eleitorais. Observe-se que o art. 93, III, da CF faz alusão ao “acesso aos tribunais de segundo grau”, numa demonstração de que há órgãos jurisdicionais de primeiro e segundo grau. O art. 108, II, da Magna Carta diz competir aos Tribunais Regionais Federais julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos juízes federais e pelos juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição... Evidente, também, competir aos Tribunais estaduais julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos Juízes estaduais no exercício da sua competência própria... E, nessa ordem de ideias, compete aos Tribunais Regionais Eleitorais, aos Tribunais Militares, aos Tribunais Regionais do Trabalho julgar as causas decididas pelos órgãos de primeiro grau dessas Justiças. Observe-se, ainda, que o art. 5º, LV, da CF, dispõe que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Por derradeiro: o art. 93, XV, da CF, introduzido pela EC n. 45/2004, determina seja imediata a distribuição de processos em todos os graus de jurisdição.

Por outro lado, como o § 2º do art. 5º da Lei Maior dispõe que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais de que o Brasil seja parte, e considerando que a República Federativa do Brasil, pelo Decreto n. 678, de 6-11-1992, fez o depósito da Carta de Adesão ao ato internacional da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), considerando que o art. 8º, 2, h, daquela Convenção dispõe que durante o processo toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma série de garantias mínimas, dentre estas a de recorrer da sentença para Juiz ou Tribunal Superior, pode-se concluir que o duplo grau de jurisdição é garantia constitucional. Evidente, contudo, que nas ações penais originárias não há o duplo grau, embora fosse possível (v. nosso Processo penal, 28ª ed. 2006, v. 1, p. 74).


Nada impede determine o legislador que as pessoas subordinadas à jurisdição privativa dos Tribunais sejam processadas e julgadas pelas Câmaras ou Turmas e eventual apelo dirigido ao Órgão Especial, onde houver, ou ao Pleno. Em alguns estados, como os de São Paulo e Paraná, os Prefeitos são processados e julgados por uma Câmara Criminal... E por que não estender essa regra às demais pessoas sujeitas ao foro pela prerrogativa de função e, ao mesmo tempo, fazer respeitado o princípio do duplo grau? Cumpre observar, por derradeiros, que o fato de as partes poderem interpor recurso extraordinário das decisões de quaisquer Tribunais Estaduais ou Federais, não ilide a afirmação de que realmente não temos o duplo grau nos processos da competência privativa dos Tribunais, mesmo porque, quando se interpõe o recurso extraordinário, a Suprema Corte cinge-se ao exame da possibilidade de a decisão recorrida afrontar a Constituição, e quando se interpõe recurso especial para o STJ objetiva-se o respeito à lei federal ou tratado. Não se apreciam as questiones facti (questões de fato). Procura-se simplesmente constatar se a Constituição foi desautorada, se a lei federal ou tratado foi negada vigência, se houve desrespeito a este ou àquela, ou se a respeito há dissídio jurisprudencial, quando, então, o STJ procura manter a uniformidade da interpretação. Assim, se as questões fáticas, as provas colhidas, não podem ser objeto daqueles recursos, logo, podemos afirmar que entre nós não há o duplo grau nas hipóteses de foro pela prerrogativa de função, embora devesse haver. Por outro lado, tratando-se de foro sem prerrogativa, quando a parte recorre ao Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal e, insatisfeita, dirige-se, mercê de recurso especial ou extraordinário, ao STJ ou ao STF, não se pode falar em triplo grau de jurisdição, isto é, o mérito da causa não será reexaminado pela terceira vez...

MANUAL DE PROCESSO PENAL – NOÇÕES PRELIMINARES – PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA - VARGAS DIGITADOR

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – NOÇÕES PRELIMINARES – PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA - VARGAS DIGITADOR

Este princípio nada mais representa que o coroamento do due process of law. É um ato de fé no valor ético da pessoa, próprio de toda sociedade livre, como bem o disse A. Castanheira Neves (Sumários de processo penal, Coimbra, 1967, p. 26). Assenta no reconhecimento dos princípios do direito natural como fundamento da sociedade, princípios que, aliados à soberania do povo e ao culto da liberdade, constituem os elementos essenciais da democracia (Antônio Ferreira Gomes, A sociedade e o trabalho: democracia, sindicalismo, justiça e paz, in Direito e justiça. Coimbra, 1980, v. 1, n. 1, p, 7).

O princípio remonta ao art. 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamada em Paris em 26-8-1789 e que, por sua vez, deita raízes no movimento filosófico humanitário chamado “Iluminismo”, ou Século das Luzes, que teve à frente, dentre outros, o Marquês de Beccaria, Voltaire, Montesquieu, Rousseau. Foi um movimento de ruptura com a mentalidade da época, em que, além das acusações secretas e torturas, o acusado era tido como objeto do processo e não tinha nenhuma garantia. Dizia Beccaria que “a perda da liberdade sendo já uma pena, esta só deve preceder a condenação na estrita medida que a necessidade o exige” (Dos delitos e das penas, São Paulo, Atena Ed., 1954, p. 106.).

Há mais de duzentos anos, ou, precisamente, no dia 26-8-1789, os franceses, inspirados naquele movimento, dispuseram na referida Declaração que: “Tout homme étant presume innocent jusqu’à ce qu’il ait été déclaré coupable; s’il est jugé indispensable de l’arrêter, toute rigueur qui ne serait nécessaire pour s’assurer de sa personne, doi être sévèrement reprimée par la loi” (Todo homem sendo presumidamente inocente até que seja declarado culpado, se for indispensável prendê-lo, todo rigor que não seja necessário para assegurar sua pessoa deve ser severamente reprimido pela lei).

Mais tarde, em 10-12-1948, a Assembleia das Nações Unidas, reunida em Paris, repetia essa mesma proclamação.


Aí está o princípio: enquanto não definitivamente condenado, presume-se o réu inocente. Claro que a expressão “presunção de inocência” não pode ser interpretada ao pé da letra, literalmente, do contrário os inquéritos e os processos não seriam toleráveis, posto não ser possível inquérito ou processo em relação a uma pessoa inocente. Sendo o homem presumidamente inocente, sua prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória implicaria antecipação da pena, e ninguém pode ser punido antecipadamente, antes de ser definitivamente condenado, a menos que a prisão seja indispensável a título de cautela. Assim, p. ex., condenado o réu, seja ele primário, seja ele reincidente, tenha ou não tenha bons antecedentes, se estiver se desfazendo de seus bens, numa evidente demonstração de que pretende fugir à eventual sanção, justifica-se sua prisão provisória. Do contrário, não. Se o réu estiver perturbando a instrução criminal, justifica-se a prisão, senão, não. Esse o real sentido do princípio. Daí se conclui, a nosso ver, que a exigência de o réu não poder apelar em liberdade quando reincidente ou portador de maus antecedentes (sem se recolher à prisão) ou de o réu não fazer jus à liberdade provisória, em face da exclusiva gravidade do crime, tudo constitui violência e desrespeito ao princípio constitucional da presunção de inocência, por implicar antecipação da pena. Antecipação de pena também existe quando se decreta a prisão preventiva como garantia da ordem pública e da ordem econômica, mesmo porque nessas duas hipóteses a privação da liberdade do acusado não acarreta nenhum benefício para o processo. E para que prender o réu na fase de pronúncia? Para aguardar o julgamento na cadeia se ele é presumidamente inocente? Não estaria o Juiz presumindo a sua culpa ou a sua fuga? E isso não afrontaria o princípio da presunção de inocência, dogma constitucional? Ademais, se toda prisão cautelar reclama, ao lado do fumus boni juris (fumaça do bom direito), o periculum libertatis (perigo de estar em liberdade havendo um processo em andamento), onde a necessidade dessa prisão para assegurar a realização do processo? Como justificar a medida extrema? Onde a cautelaridade?