terça-feira, 22 de janeiro de 2019

DIREITO CIVIL COMENTADO - Arts. 156, 157 - Do Estado de Perigo e Da Lesão - VARGAS, Paulo S. R.


DIREITO CIVIL COMENTADO - Arts. 156, 157 -
Do Estado de Perigo e Da Lesão - VARGAS, Paulo S. R. 

Livro III – Dos Fatos Jurídicos (art. 104 a 184)
Título I – Do Negócio Jurídico – Capítulo IV –
Dos Defeitos do Negócio Jurídico – Seção IV e V–
Do Estado de Perigo e Da Lesão- vargasdigitador.blogspot.com

Art 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, o a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa. 1, 2, 3

Parágrafo único. Tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias.

1.        Estado de perigo

Não havia no Código de 1916 menção ao estado de perigo como defeito do negócio jurídico. À sua falta, doutrina e jurisprudência buscavam amoldar as hipóteses de estado de perigo ao conceito de coação. Na coação, contudo, a vítima age influenciada pela premente necessidade de afastar um dano dolosamente ameaçado pelo coator. No estado de perigo, por sua vez, o perigo não é causado ou ameaçado por ninguém, ocorrendo espontaneamente, sendo apenas aproveitado por quem dele tenha tido conhecimento. É o que ocorre, por exemplo, com alguém que vende um imóvel a preço muito abaixo de seu valor para conseguir custear tratamento médico do filho. Enquanto que a coação é caracterizada pela vontade de coagir (elemento subjetivo) no estado de perigo a ameaça de dano é objetiva e não foi causada por ninguém (objetiva). Da mesma forma como ocorre com a coação, contudo, o declarante não manifesta sua vontade livremente, e sim premido pela urgente necessidade de afastar um grave dano a própria pessoa u a pessoa de sua família ou a ela próxima (parágrafo único).

2.        O estado de perigo como defeito do negócio jurídico

Para que o estado de perigo possa se caracterizar como um vício de consentimento, levando à anulação do negócio jurídico é necessário que concorram alguns requisitos. Primeiramente, é necessário que o negócio jurídico celebrado tenha levado o declarante a assumir uma obrigação excessivamente onerosa. A obrigação assumida deve ser de tamanha onerosidade que jamais teria sido assumida em situações normais. Além disso, é necessário que o negócio jurídico tenha sido celebrado para afastar o estado de perigo em que o declarante, seu familiar ou pessoa a ele próxima se encontrava. Em outras palavras, é necessário que a necessidade de afastar esse estado de perigo tenha sido a causa, a razão determinante da celebração do negócio jurídico. Por fim, mantendo a mesma baliza utilizada em todos os demais defeitos do negócio jurídico, nos basta o simples vício subjetivo, íntimo e interior de quem manifesta a vontade para caracterizar o defeito do negócio jurídico. O legislador protege sempre aquele que contrata de boa-fé, sem conhecer o vício que limita ou condiciona a vontade do outro contratante. Por essa razão, apenas haverá defeito do negócio jurídico se a outra parte conhecer souber que a declaração de vontade a ele dirigida foi feita para que o declarante possa afastar um perigo iminente a ele próprio ou a alguém de sua família. Sem que essa outra pessoa conheça esse estado de perigo do declarante, o negócio não poderá ser anulado.

3.        Consequência do estado de perigo

Uma vez caracterizado o estado de perigo como vício de consentimento de um negócio jurídico, prevê o Código Civil expressamente apenas a possibilidade de que o contratante prejudicado busque a anulação do negócio (CC, art 156 e 177). Contudo, apesar do silêncio do Código, nada impede que se preserve a validade do negócio jurídico mediante o reequilíbrio da prestação excessivamente onerosa a que se obrigou aquele que realizou o negócio premido pela necessidade de afastar um perigo iminente. É a essa conclusão que chegou a III Jornada de Direito Civil, resultando na edição do Enunciado n. 148: “ao estado de perigo (art 156) aplica-se, por analogia, o disposto no § 2º do art 157”. Por sua vez, diz o § 2º do art 157 que: “não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito”. (Direito Civil Comentado apud Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalina. Material coletado no site Direito.com em 19.01.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações (VD)).

O estado de perigo – conceito

O Código Civil de 2002 apresenta dois institutos, no capítulo concernente aos defeitos do negócio jurídico, que não constavam do Código de 1916: o estado de perigo e a lesão.

Constitui o estado de perigo, a situação de extrema necessidade que conduz uma pessoa a celebra negócio jurídico em que assume obrigação desproporcional e excessiva. Ou, segundo Moacyr de Oliveira, constitui “o fato necessário que compele à conclusão de negócio jurídico, mediante prestação exorbitante” (Estado de Perigo, in Enciclopédia Saraiva do Direito, p. 504, apud Direito Civil Comentado – Parte Geral, Roberto Gonçalves, V. I, p. 430, 2010 Saraiva – São Paulo).

Exemplos clássicos de situação dessa espécie são os do náufrago, que promete a outrem extraordinária recompensa pelo seu salvamento, e o de Ricardo III, em Bosworth, ao exclamar: “A horse, a horse, my kingdom for a horse”.

A doutrina menciona, ainda, outras hipóteses, como a daquele que, assaltado por bandidos, em lugar ermo, se dispõe a pagar alta cifra a quem venha livrá-lo da violência; a do comandante de embarcação às portas do naufrágio, que propõe pagar qualquer preço a quem venha socorrê-lo; a do doente que, no agudo da moléstia, concorda com os altos honorários exigidos pelo cirurgião; a da mãe que promete toda a sua fortuna para quem lhe venha salvar o filho, ameaçado pelas ondas ou de ser devorado pelo fogo; a do pai que, no caso de sequestro, realiza maus negócios pra levantar a quantia do resgate etc. (Sílvio Rodrigues, Direito civil, cit., v. 1, p. 218; Washington de Barros Monteiro, Curso, cit., v. 1, p. 212; Caio Mário da silva Pereira, Instituições, cit., p. 338; Moacyr de Oliveira, Estado, cit., p. 506; Jean Charles Florent Demolombe, Traité, cit., p. 141, apud, Roberto Gonçalves, Direito civil comentado, 2010 – p. 431 - pdf – parte geral).

Merece ser também citado exemplo de inegável atualidade e característico de estado de perigo, que é o da pessoa que se vê compelida a efetuar depósito ou a prestar garantia sob a forma de emissão de cambial ou de prestação de fiança, exigidos por hospital, para conseguir internação ou atendimento de urgência de cônjuge ou de parente em perigo de vida. Há no direito civil outras situações em que a necessidade atua como fundamento jurídico da solução do problema: passagem forçada, gestão de negócios, casamento nuncupativo, testamento marítimo, depósito necessário, pedido de alimentos etc. A anulabilidade do negócio jurídico celebrado em estado de perigo encontra justificativa em diversos dispositivos do CC/2002, principalmente naqueles que consagram os princípios da boa-fé, e da probidade e condicionam o exercício da liberdade de contratar à função social do contrato (arts 421 e 422). A propósito, preleciona Teresa Ancona Lopez: Evidentemente se o declarante se aproveitar da situação de perigo para fazer um negócio vantajoso para ele e muito oneroso para a outra parte não há como se agasalhar tal negócio. Há uma frontal ofensa à justiça comutativa que deve estar presente em todos os contratos. Ou, no dizer de Betti, deve haver uma equidade na cooperação”.  (O estado de perigo como defeito do negócio jurídico, Revista do Advogado, n. 68, p. 56, apud, Roberto Gonçalves, Direito civil comentado, 2010 – p. 431 - pdf – parte geral).

A necessidade, pode gerar e servir de fundamento a diversas situações e a institutos jurídicos que, por terem a mesma fonte, apresentam certa similitude. Podem, assim ser considerados institutos afins do estado de perito a lesão, o estado de necessidade e a coação, dentre outros.

Art 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta. 1, 2, 3

§ 1º Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico.

§ 2º Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.

1.        Lesão

Diferentemente do que ocorre no estado de perigo, em que a onerosidade excessiva da prestação é aferida de modo absoluto, o prejuízo que caracteriza a lesão deve ser aferido em comparação com a contraprestação a que a pessoa lesada irá receber. Com o reconhecimento de que a foça normativa do contrato encontra seu fundamento também na realização da operação econômica subjacente, a própria noção de justiça contratual deslocou seu foco para os aspectos materiais do contrato, sendo inconteste atualmente que, ao lado da liberdade contratual e da autonomia da vontade, o contrato além de formalmente legítimo deve também ser materialmente justo. Isso significa que nos contratos deve haver um necessário equilíbrio, proporcionalidade ou equivalência entre prestação e contraprestação. A partir da ideia de equivalência material do contrato, a justiça contratual deixa de ser apenas formalmente considerada, impedindo-se que a liberdade contratual seja exercida de modo a tornar-se demasiadamente onerosa ou excessivamente vantajosa a uma das partes em detrimento da outra. Não se pretende, com isso, afirmar que deve haver verdadeira paridade entre as prestações. O que deve haver é um “equilíbrio aproximado” entre as prestações, de modo que cada um possa encontrar uma vantagem na celebração do contrato. Ocorrendo quebra desse equilíbrio material entre as prestações dos contratos bilaterais por premente necessidade, ou por inexperiência de um dos contratantes, ocorrerá a lesão.

2.        Requisitos de caracterização da lesão

Não basta a simples desproporção entre as prestações de um negócio jurídico bilateral para caracterizar a lesão. Vício de vontade que é, é necessário que essa desproporção seja fruto de uma equivocada apreensão da realidade do lesado, seja ela causada por simples inexperiência ou por premente necessidade. É justamente esse elemento subjetivo que caracteriza a lesão como vício de consentimento. A lesão se caracteriza quando a pessoa, por inexperiência, celebra um negócio jurídico sem ter consciência de que faz um negócio que lhe é prejudicial. Essa fala apreensão da realidade econômica do negócio em muito se assemelha ao erro, mas dele difere porque na lesão, o inexperiente conhece a desproporção, mas com ela concorda por não conseguir dimensionar precisamente suas consequências. Ou ainda quando, mesmo tendo essa consciência, se sente determinantemente compelida a realizar o negócio por estar sob premente necessidade. É o que ocorre, por exemplo, com a pessoa que vende seus bens a preços irrisórios por estar desempregada e ter dificuldades de sustentar a si própria e a seus dependentes. Neste ponto, a lesão difere do estado de perigo na medida em que tem de reconhecer com muito mais abrangência as circunstâncias que podem dirigir a vontade do lesado. Não é só a necessidade de afastar um perigo à própria pessoa ou aos familiares e pessoas próximas. Na lesão, o perigo pode ser até mesmo puramente patrimonial (vender bens para levantar o dinheiro necessário para pagar o aluguel e evitar o despejo). Além disso, não exige o código que a contraparte que recebe prestação desproporcionalmente vantajosa tenha conhecimento da inexperiência ou da premente necessidade do lesado. Tal conhecimento é presumido pela enorme e injustificada vantagem que recebeu do lesado. Todavia, tal presunção é relativa, levando apenas a uma inversão no ônus da prova. Provado pelo lesado sua condição de inexperiente ou de que agiu sob premente necessidade, inverte-se o ônus da prova dispensando-o de provar que o beneficiado contratou com a manifesta intenção de se aproveitar dessa fragilidade do lesado. De todo modo; não fica o lesado dispensado de provar sua inexperiência ou sua condição de premente necessidade.

3.        Lesão nos contratos empresariais

Dizia o artigo 220, do revogado Código Comercial que “a rescisão por lesão não tem lugar nas compras e vendas celebradas entre pessoas todas comerciantes; salvo provando-se erro, fraude ou simulação”. O espírito que permeava esse dispositivo é o de que não se pode admitir ou presumir que os empresários desconheçam as particularidades da atividade que exploram. Se desconhecem, são maus empresários e, por imposição constitucional da livre concorrência, o direito não pode socorrê-los neste ponto. Segundo Antônio Junqueira de Azevedo, “uma entidade jurídica empresarial ineficiente pode – ou até mesmo deve – ser expulsa do mercado, ao contrário da pessoa humana que merece proteção, por não ser “descartável”. (1) Diante de tais princípios, a doutrina tem recusado aplicação do instituto da lesão por inexperiência aos contratos empresariais. É exatamente isso o que diz o enunciado 28 da I Jornada de Direito Comercial: “Em razão do profissionalismo com que os empresários devem exercer sua atividade, os contratos empresariais não podem ser anulados pelo vício da lesão fundada na inexperiência”. (Direito Civil Comentado apud Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalina. Material coletado no site Direito.com em 20.01.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações (VD)).

(1)       Antônio Junqueira de Azevedo, Novos estudos e pareceres de direito privado, São Paulo, Saraiva, 2009, p. 185
Segundo Roberto Gonçalves, as diferenças entre estado de perito e lesão são tão sutis que alguns doutrinadores sugerem a sua fusão num único instituto. Ainda durante a tramitação do Projeto de Código Civil ao Congresso Nacional duas emendas, as de n 183 e 187, propunham a supressão do atual art 156, relativo ao estado de perigo, por entender que esse instituto, em última análise, se confundia com a lesão.

A elas respondeu o relatório da Comissão Revisora que os “dois institutos – o do estado de perigo e o da lesão – não se confundem. O estado de perigo ocorre quando alguém se encontra em perigo, e, por isso, assume obrigação excessivamente onerosa. Aludindo a ele, Espínola (Manual do Código Civil Brasileiro, Vol. III, parte primeira, pp. 396/397) dá este exemplo: “Será alguma vez um indivíduo prestes a se afogar que promete toda a sua fortuna a quem o salve de morte iminente””.

Prossegue o aludido relatório: “A lesão ocorre quando não há estado de perigo, por necessidade de salvar-se; a ‘premente necessidade’ é, por exemplo, a de obter recursos. Por outro lado, admitindo o § 2º do art 155 (atual 157) a suplementação da contraprestação, isso indica que ela só ocorre em contratos cumulativos, em que a contraprestação é um dar (e não um fazer). A lesão ocorre quando há usura real. Não há lesão, ao contrário do que ocorre com o estado de perigo, que vicie a simples oferta. Ademais, na lesão não é preciso que a outra parte saiba da necessidade ou da inexperiência; a lesão é objetiva. Já no estado de perigo é preciso que a parte beneficiada saiba que a obrigação foi assumida pela parte contrária para que esta se salve de grave dano (leva-se em conta, pois, elemento subjetivo)”.

Conclui, então, o mencionado relatório: “Por isso, a existência dos dois institutos, pois só o estado de perigo ou só a lesão não bastam para coibir todas as hipóteses que se podem configurar. E a disciplina deles, conforme as hipóteses em que incidem, é diversa, como se viu acima. (José Carlos Moreira Alves, A Parte Geral, cit., p. 143-145, apud Direito Civil Comentado – Parte Geral, Roberto Gonçalves, V. I, p. 432, 2010, Saraiva – São Paulo).