sexta-feira, 3 de abril de 2015

MANUAL DE PROCESSO PENAL – O PROCESSO ABSORVEU AS DEMAIS FORMAS COMPOSITIVAS DO LITÍGIO? – O “JUS PUNIENDI” - VARGAS DIGITADOR

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – NOÇÕES PRELIMINARES – O PROCESSO ABSORVEU AS DEMAIS FORMAS COMPOSITIVAS DO LITÍGIO? – O “JUS PUNIENDI” - VARGAS DIGITADOR

O processo absorveu as demais formas compositivas do litígio?

Insta acentuar que, embora a composição dos litígios se opere por meio do processo, este não absorveu por completo as demais formas compositivas da lide. Excepcionalmente, permite a lei ao indivíduo prover a conservação ou a obtenção de um bem jurídico com a execução de atos que regra geral lhe são defesos. Vejam-se, a propósito, as normas que se contêm nos arts. 1.210, 1283 e 644 do Código Civil. Trata-se de casos de verdadeira “autodefesa”, consentida e moderada pelo Estado. Por outro lado, proclamam os arts. 188 do Código Civil e 24 e 25 do CP serem lícitos os atos praticados em legítima defesa ou em estado de necessidade.

Quanto à autocomposição, ainda se mantém, quando em jogo interesses disponíveis. As transações são muito comuns na esfera extrapenal. Atualmente, com a criação dos Juizados Especiais Criminais, nas causas penais de menor potencial ofensivo, a “transação” não passa de verdadeira “autocomposição”.

O “jus puniendi”

Dos bens ou interesses tutelados pelo Estado (por meio das normas), uns existem cuja violação afeta sobremodo as condições de vida em sociedade. O direito à vida, à honra, à integridade física são exemplos. Tais bens e muitos outros são tutelados pelas normas penais, e sua violação é o que se chama ilícito penal ou infração penal. O ilícito penal atenta pois, contra os bens mais caros e importantes de quantos possua o homem, e, por isso mesmo, os mais importantes da vida social! Cabe ao legislador dizer quais são esses bens.

Como esses bens ou interesses são tutelados em função da vida social, como são eminentemente sociais, o Estado, então, não permite que a aplicação do preceito sancionador ao transgressor da norma de comportamento, inserta na lei penal, cabe ao próprio Estado, por meio dos seus órgãos, tomar a iniciativa motu proprio, para garantir, com sua atividade, a observância da lei.

Porque os bens tutelados pelas normas penais são eminentemente públicos, o direito de punir os infratores corresponde à sociedade. Ninguém desconhece que a prática de infrações penais transtorna a ordem pública, e a sociedade é a principal vítima, por isso mesmo, tem o direito de prevenir e reprimir aqueles atos que são lesivos à sua existência e conservação.

Como a sociedade, assim entendida, é uma entidade abstrata, a função que lhe cabe, de reprimir as infrações penais, permanece em mãos do Estado, que a realiza por meio dos seus órgãos competentes.

O jus puniendi pertence, pois, ao Estado, como uma das expressões mais características da sua soberania. Observe-se, contudo, que o jus puniendi existe in abstracto  e in concreto. Com efeito. Quando o Estado, por meio do Poder Legislativo, elabora as leis penais, cominando sanções àqueles que vierem a transgredir o mandamento proibitivo que se contém na norma penal, surge para ele o jus puniendi num plano abstrato e, para o particular, surge o dever de abster-se de realizar a conduta punível. Todavia, no instante em que alguém realiza a conduta proibida pela norma penal, aquele jus puniendi desce do plano abstrato para o concreto, pois, já agora, o Estado tem o dever de infligir a pena ao autor da conduta proibida. Surge, assim, com a prática da infração penal, a “pretensão punitiva”.

Desse modo, o Estado pode exigir que o interesse do autor da conduta punível em conservar a sua liberdade se subordine ao seu, que é o de restringi-la com a inflição da pena.

A pretensão punitiva surge, pois, no momento em que o “jus puniendi” in abstracto se transfigura no “jus puniendi” in concreto.

E de que maneira consegue o Estado tornar efetivo o seu direito de punir, infligindo a pena ao culpado? Também por intermédio do processo.

Da mesma forma que não haveria equilíbrio estável no meio social se se permitisse, no campo extrapenal, às próprias partes litigantes decidirem, pelo uso da força, seus litígios, também e principalmente no campo penal, na esfera repressiva, os abusos indescritíveis se multiplicariam em número sempre crescente, em virtude dos desmandos que o titular do direito de punir, cego e desenfreado, passaria a cometer.

Pondo os olhos nessa realidade incontrastável, o Estado, então, autolimitou o seu poder repressivo.

Assim, pelo respeito à dignidade humana e à liberdade individual é que o Estado fixa a manifestação do seu poder repressivo não só em pressupostos jurídico-penais materiais  (nullum crimen, nulla poena sine lege – não há crime sem prévia definição, nem pena sem anterior cominação legal), como também assegura a aplicação da lei penal ao caso concreto, de acordo com as formalidades prescritas previamente em lei, e sempre por meio dos órgãos jurisdicionais (nulla poena sine judice, nulla poena sine judicio – nenhum pena pode ser imposta senão pelo Juiz, nenhuma pena pode ser aplicada senão por meio do processo).

Daí as regras previstas no art. 5º, XXXIX, XXXV, LIII, e LIV, da Magna Carta: “não há crime sem lei anterior que o defina”; “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito”; “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”; e, finalmente, “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Desse modo, o Estado somente poderá infligir pena ao violador da norma penal após a comprovação de sua responsabilidade (por meio do processo) e mediante decisão do órgão jurisdicional.

Assim, quando alguém comete uma infração penal, o Estado, como titular do direito de punir, impossibilitado, pelas razões expostas, de autoexecutar seu direito, vai a juízo (tal qual o particular que teve seu interesse atingido pelo comportamento ilícito de outrem) por meio do órgão próprio (o Ministério Público) e deduz a sua pretensão, isto é, esclarece o que deseja, o que pretende. O Juiz, então, procura ouvir o pretenso culpado. Colhe as provas que lhe forem apresentadas por ambas as  (Ministério Público e réu), recebe as suas razões e, após o estudo do material de cognição recolhido, procura ver se prevaleceu o interesse do Estado em punir o culpado, ou se o interesse do réu, em não sofrer restrição no seu jus libertatis. Em suma: o Juiz dirá qual dos dois tem razão. Se o Estado, aplica a sanctio juris ao culpado. Se o réu, absolve-o. isso é processo.

Se o direito de punir pertence ao Estado, se a pena somente poderá ser imposta pelo órgão jurisdicional por meio de regular o processo, se este se instaura com a propositura da ação, é óbvio que o Estado necessita de órgãos para desenvolverem a necessária atividade, visando a obter a aplicação da sanctio juris ao culpado. Essa atividade é denominada persecutio criminis. E tal direito à persecução penal (investigar o fato infringente da norma e pedir o julgamento da pretensão punitiva) é uma obrigação funcional do Estado para lograr um dos fins essenciais para os quais o próprio Estado para lograr um dos fins essenciais para os quais o próprio Estado foi constituído (segurança e reintegração da ordem jurídica).

Para que o Ministério Público, como órgão do Estado, possa exercer o direito de ação penal, levando ao conhecimento do Juiz a notícia sobre um fato que se reveste de aparência criminosa, apontando-lhe, também, o autor, é curial deva ele ter em mãos os dados indispensáveis. Tais informações preliminares são colhidas, no primeiro momento da persecução, pela Polícia Judiciária, ou Polícia Civil, como diz a Constituição, outro órgão do Estado incumbido de investigar o fato típico e sua respectiva autoria, a fim de possibilitar a propositura da ação penal. Assim, a persecutio criminis apresenta dois momentos distintos: o da investigação e o da ação penal. Esta consiste no pedido de julgamento da pretensão punitiva, enquanto a primeira é atividade preparatória da ação penal, de caráter preliminar e informativo.

Cumpre observar não ser pacífico falar em “lide” no campo processual penal. Se a lide é caracterizada por uma pretensão resistida ou insatisfeita, diz-se não se pode conceber lide no Processo Penal, à semelhança do que ocorre no cível. Sendo o Estado o titular do direito de punir e o do bem-estar social, e sedo este a maior das suas finalidades, quando alguém comete uma infração penal, não é vontade dele infligir a pena ao criminoso, mas, simplesmente, querer que o Juiz aprecie aquele fato e diga se o seu autor merece ou não ser punido. Sustenta-se, então, não haver conflito de interesses, e sim, tão-somente, um único interesse: interesse em apurar se o réu merece ou não receber a reprimenda.

Sem embargo, a doutrina majoritária fala de “lide penal”.


O Estado é titular único e exclusivo do direito de punir. Poderia reprimir os delitos pelos seus órgãos administrativo, ou pelos seus Juízes, como acontecia no processo inquisitivo, mas como ninguém suportaria viver num Estado em que o titular do direito de punir pudesse exercê-lo desenfreadamente, ele autolimitou o seu poder repressivo, preferindo, tal como se dá no cível, o uso das vias judiciárias para julgar o seu interesse na repressão, e, ao mesmo tempo, tutelando o direito de liberdade, de maneira bem significativa, exigindo a paridade de armas, o contraditório e a ampla defesa, não admitindo que o autor da conduta punível se submeta à pena sem reação, criou um verdadeiro processo de partes. Sua pretensão punitiva, nascida no instante mesmo em que se verifica a infração, deve ser resistida. Daí por que ninguém poderá ser processado sem defensor ainda que ausente ou foragido. Daí por que o Estado não pode, em nenhuma hipótese, deixar de oferecer ao acusado a oportunidade de defender-se. Queira ou não, o acusado é obrigado a defender-se. Nada impede que ele reconheça a sua culpa (pleas guilty – submissão) ou abdique dos seus direitos, como na transação. E não basta a defesa material, ou autodefesa. Exige-se, sob pena de nulidade absoluta, a defesa técnica. Não é pelo fato de o Estado desejar um julgamento justo, imparcial, que deixa de existir a lide penal. O interesse do réu em não sofrer restrição na sua liberdade, tenha ou não razão, contrapõe-se ao interesse do Estado, que é o de puni-lo, se culpado for, contudo, embora não haja absoluta identidade entre lide civil e lide penal, não será possível negar a existência de uma lide penal. Pouco importa se ela é artificial ou não. Nem por isso deixa de ser lide. Se a lide civil pode ser solucionada amigavelmente, se no processo civil, quando em jogo interesses disponíveis há sempre a fase de conciliação e no processo penal, de regra, a pretensão deve ser obrigatoriamente resistida, o mínimo que se poderá dizer é que a lide penal é sui generis. Ademais, cumpre observar que em face da Lei n. 11.313, de 28-6-2006, aumentou, consideravelmente, o número de infrações de menor potencial ofensivo e que por isso mesmo, coo no cível, comportam acordos, transações... Sobre o tema v: o excelente trabalho do Prof. José Carlos Teixeira Giorgis. A lide como categoria comum do processo, Porto Alegre, LeJur, 1991, em especial p. 89 e ss.).