sexta-feira, 19 de julho de 2019

Direito Civil Comentado - Art. 421, 422, 423 - Das Arras ou Sinal – VARGAS, Paulo S. R.


Direito Civil Comentado - Art. 421, 422, 423
- Das Arras ou Sinal – VARGAS, Paulo S. R.

Parte Especial - Livro I – Do Direito das Obrigações
Título V – DOS CONTRATOS EM GERAL
 (art. 421 a 480) Capítulo I – Disposições Gerais –
Seção I- Preliminares - vargasdigitador.blogspot.com

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

No diapasão de Nelson Rosenvald, a teoria contratual contemporânea contempla quatro grandes princípios: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual e função social do contrato.

O art. 421 inaugura o estudo dos contratos, demonstrando a imprescindível conjugação entre a liberdade contratual e o princípio constitucional da solidariedade (art. 3º, I, CF).

Remotamente, a função social do contrato prendia-se à própria função social da propriedade, eis que no liberalismo do século XIX o dogma da autonomia da vontade e a ampla liberdade contratual serviam de instrumento para que os indivíduos dessem efetividade ao direito de propriedade.

Atualmente, os contratos são instrumentos por excelência de circulação de riquezas, sendo que as trocas demandam utilidade e justiça, censurando-se assim o abuso da liberdade contratual.

A função social não coíbe a liberdade de contratar, como induz a dicção da norma, mas legitima a liberdade contratual. A liberdade de contratar é plena, pois não existem restrições ao ato de se relacionar. Porém, o ordenamento jurídico deve submeter a composição do conteúdo do contrato a um controle de merecimento, tendo em vista as finalidades eleitas pelos valores que estruturam a ordem constitucional.

Atendendo ao que havia muito já mencionava o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, a função social do contato objetiva conjugar o bem comum dos contratantes e da sociedade. Portanto, podemos cogitar uma função social interna e uma função social externa do contrato.

A função social interna concerne à indispensável relação de cooperação entre os contratantes, por toda a vida da relação. Implica a necessidade de os parceiros se identificarem como sujeitos de direitos fundamentais e titulares de igual dignidade. Assim, deverão colaborar mutuamente nos deveres de proteção, informação e lealdade contratual, pois a finalidade de ambos é idêntica: o adimplemento, da forma mais satisfatória ao credor e menos onerosa ao devedor.

Nesse plano, a função social se converte sem limite positivo e interno à estrutura contratual, impedindo a formação de uma relação de subordinação sobre a pessoa do devedor, o que implicaria a quebra de sua autonomia privada com reflexo em seus direitos de personalidade.

Em qualquer relação contratual, os partícipes cedem uma parcela de sua liberdade jurídica em prol do êxito do programa comum. A função social interna pretende acautelar os contratantes da recuperação dessa liberdade contratual ao término do empreendimento conjunto.

Por outro ângulo, é sabido que os contratos interessam à sociedade. É inconcebível crer que, no momento atual, possam-se plagiar os oitocentistas, alegando que a relação contratual é res inter alios acta (ou seja, que apenas concerne às partes, e não a terceiros).

Os bons e maus contratos repercutem socialmente. Ambos os gêneros produzem efeito cascata sobre toda a economia. Os bons contratos promovem a confiança nas relações sociais. Já os contratos inquinados por cláusulas abusivas resultam em desprestígio aos fundamentos da boa-fé e quebra de solidariedade social.

Daí a necessidade de oponibilidade externa dos contratos em desfavor dos interesses dos contratantes. Ou seja, é possível que os contratos satisfaçam aos desígnios particulares dos contratantes, mas ofendam interesses meta-individuais = coletivos ou difusos. Basta supor a realização de avenças que afetem o meio ambiente, direitos de consumidores ou a livre concorrência. Em tais casos, a sociedade poderá intervir sobre as cláusulas contratuais ofensivas a direitos fundamentais.

O grande debate que hoje se estabelece é pertinente a tutela externa do crédito. As relações creditícias escapam do controle de seus artífices, alcançando terceiros que, algumas vezes, podem ser ofendidos por elas e, em outras hipóteses, podem até mesmo se colocar em situação de violar a relação da qual não fazem parte.

Sem dúvida, não é raro que um terceiro seja atingido por um contrato que, em princípio, lhe seja completamente estranho. Seria o caso daquele que é vítima de um acidente de consumo, derivado de relação em que não participara como consumidor stricto sensu (art. 2º do CDC). De acordo com o art. 18 do Código de Defesa do Consumidor, o bystander possui ação de responsabilidade objetiva contra os fornecedores do produto ou serviço defeituoso, na qualidade de consumidor equiparado.

Poder-se-ia inserir ainda a situação daquele que é vítima de um acidente de trânsito com relação ao contrato entre o autor do ilícito – que se recusa a ressarcir o dano – e a seguradora. No mesmo sentido, a situação do promissário comprador que integralizou as prestações do imóvel, em face do contrato de mútuo hipotecário entre a instituição financeira e a construtora que não lhe repassou os créditos.

Porém, da mesma forma que podem ser afetados por contratos alheios, terceiros também podem agir de forma a violar uma relação contratual em andamento. A função externa do contrato é via de mão dupla. Ilustrativamente, há o parecer de Antônio Junqueira de Azevedo (RT750/113) acerca da atuação de distribuidoras de combustíveis que, ao promover a venda de produtos a postos de gasolina, quebram a exclusividade de fornecimento com outra distribuidora. A lesão ao contrato primitivo permite que se responsabilize a distribuidora, em solidariedade passiva com o posto de gasolina.

Em suma, a sociedade não pode se portar de modo a ignorar a existência de contratos firmados. Isso explica uma tendência de prestigiar a oponibilidade erga omnes das relações contratuais, com a imposição de um dever genérico de abstenção por parte de terceiros da prática de relações contratuais que possam afetar a segurança e a certeza dos contratos estabelecidos. Aliás, nesse mesmo sentido existe a regra do CC, 608.

Não se trata aqui de revogar a tradicional relatividade dos contratos, pois os seus efeitos obrigacionais compreendem apenas os seus protagonistas, mas de atenuar os seus efeitos perante a coletividade, prestigiando uma oponibilidade geral à maneira pela qual tradicionalmente vislumbramos nos direitos reais.

Em síntese, todo contrato é uma soma de seu tipo, sua estrutura e sua função. O tipo emana da conformação mínima do ordenamento jurídico sobre as relações econômicas mais comuns. A estrutura é dada pela vontade das partes no espaço reservado pela sociedade ao exercício da autonomia privada. A função social diz respeito às consequências objetivas da relação sobre a sociedade.

A função social do contrato é uma cláusula geral. Norma intencionalmente formulada de maneira vaga e imprecisa, a fim de que o magistrado possa densificar o seu conteúdo. A concretização da cláusula geral se dará em maior ou menor grau, conforme a concretude dos interesses envolvidos e as peculiaridades do caso. Diversamente do que ocorre com a função social da propriedade, sobre a qual a Constituição Federal (arts. 182 e 184) é explícita quanto às sanções pelo seu inadimplemento, descurou o legislador de qualificar a consequência da ofensa à função social do contrato.

Parece-nos que, em casos extremos, há que aplicar a invalidade do negócio jurídico, por nulidade, em razão da ofensa à norma de ordem pública, na dicção do parágrafo único do art. 2.035. contudo, prestigiando-se o princípio da conservação dos negócios jurídicos, sempre que possível, restringir-se-á a sanção ao plano da ineficácia da cláusula ofensiva à função social, preservando-se a relação jurídica no restante, como sugere o próprio artigo em comento, ao aludir a relação entre a função social e o exercício (e não a validade) da liberdade contratual.

Por último, não há similitude entre a declaração de invalidade do contrato por ilicitude do objeto e a ofensa à função social. Prende-se a ilicitude do objeto (art. 104, II, do CC) à investigação da causa do contrato e dos aspectos relacionados à vontade subjetiva das partes. Já a função social se prende às consequências sociais e objetivas do contrato, independentemente da sua origem. Por isso, é mesmo possível que o objeto contratual seja ilícito na formulação, sem que isso importe em quebra de sua função social. A recíproca é válida (NELSON  ROSENVALD, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 490 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 17/07/2019. Revista e atualizada nesta data por VD).

Em seu comentário, nos lembra Ricardo Fiuza que a “função social do contato” acentua a diretriz de “sociabilidade do direito”, de que nos fala percucientemente, o eminente prof. Miguel Reale, como princípio a ser observado pelo intérprete na aplicação dos contratos. Por identidade dialética guarda intimidade com o princípio da “função social da propriedade” previsto na Constituição Federal.

A concepção social do contrato apresenta-se, modernamente, como um dos pilares da teoria contratual. Defronta-se com o vetusto princípio pacta sunt servanda, exaltado, expressamente, pelos Códigos Civil francês (art. 1.134) e italiano (art. 1.372) para, atenuando a autonomia da vontade, promover a realização de uma justiça comutativa.

A moldura limitante do contrato tem o escopo de acautelar as desigualdades substanciais entre os contraentes, como adverte José Lourenço, valendo como exemplo os contratos de adesão. O negócio jurídico haverá de ser fixado em seu conteúdo, segundo a vontade das partes. Esta, todavia, apresenta-se auto-regrada em razão e nos limites da função social, princípio determinante e fundamental que, tendo origem na valoração da dignidade humana (Art. 1 ~ da CF), deve prescrever a ordem econômica e jurídica.

Por sua função social, o contrato é submetido a novos elementos integradores de relevância à sua formação, existência e execução, superando a esfera consensual. Mário Aguiar Moura afirma que, segundo a concepção moderna, “o contrato fica em condições de prestar relevantes serviços ao progresso social, desde que sobre as vontades individuais em confronto se assente o interesse coletivo, através de regras de ordem pública, inafastáveis pelo querer de ambos ou de qualquer dos contratantes, com o propósito maior de evitar o predomínio do economicamente fone sobre o economicamente fraco” (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 226, apud Maria Helena Diniz, Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 17/07/2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

No diapasão de Guimarães e Mezzalina, fala-se inicialmente do “Princípio na liberdade de contratar. O dispositivo cuida de dois dos princípios que regem os contratos: o princípio da liberdade contratual ou princípio da autonomia da vontade, de um lado; e o princípio da função social do contrato, de outro.

O princípio da liberdade contratual compõe-se da liberdade de contratar, propriamente dita, e da liberdade de estabelecer o conteúdo do contrato. A liberdade de contratar sujeita-se a limitações legais, como a obrigatoriedade de contratar do fornecedor nas relações de consumo (Código de Defesa do Consumidor, art. 39, II e IX) e a de contratar seguros obrigatórios. Sujeita-se, igualmente, a restrições de caráter negocial, como no caso de contrato preliminar que obriga os contratantes a realizar o contrato definitivo.

A liberdade de estabelecer o conteúdo do contrato é restringida por normas de ordem pública, de caráter cogente, inclusive as que concretizam a função social dos contratos. É também limitada pelos bons costumes. Em nome deles não se admite, por exemplo, a cobrança por prestação de serviços de natureza sexual.

Na sequência, Guimarães e Mezzalina citam o Princípio da função social do contrato, que consiste em abordar a liberdade contratual em seus reflexos sobre a sociedade (terceiros) e não apenas no campo das relações entre as partes que o estipulam contratantes.

Embora o princípio somente tenha sido positivado no ordenamento jurídico brasileiro com o Código Civil de 2002, institutos que concretizam o princípio da função social do contrato constituem o cerne do Direito Civil: simulação; fraude contra credores; fraude à execução; propaganda enganosa; concorrência desleal.

No âmbito da função social do contrato localiza-se o princípio da solidariedade, de fundamento constitucional (art. 3º, inciso I, da Constituição da República), estabelece a orientação solidarista do direito, e impõe a necessidade de se observar os reflexos da atuação individual perante a sociedade.

Exemplo de aplicação do princípio da solidariedade ocorreu em execução de hipoteca pelo inadimplemento do construtor. O STJ entendeu pela mitigação do direito do credor, em favos dos adquirentes, que haviam pago o preço de aquisição das unidades ao construtor (STJ, EDcl no REsp n. 573.059/RS, Rel. Min. Luiz Fux, j. 03.05.2005).

Para uma crítica ao “solidarismo jurídico” (SAMPAIO Jr., Rodolpho Barreto. Da liberdade ao controle: os riscos do novo direito civil brasileiro. Belo Horizonte: PUC Minas Virtual, 2009, p. 30-38 (Direito Civil Comentado, Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalina, apud Direito.com acesso em 17.07.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Segundo Anderson Schreiber há modificações no Código Civil de 2002, a partir da MP 881/2019. Já no capítulo do Código Civil dedicado aos contratos em geral, foram diversas as modificações realizadas. Primeiramente, a MP 881/2019 inseriu na parte final do Caput do artigo 421, que consagra o princípio da função social do contrato, a necessidade de observância ao disposto na chamada Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.

O acréscimo parece ter tentado prestigiar os princípios norteadores daquela Medida Provisória, quais sejam, a “proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica” (art. 1º). A função social, contudo, exerce justamente o papel de impor juízo de merecimento de tutela sobre o exercício da liberdade contratual, condicionando-a à promoção dos valores constitucionais. Determinar que a aplicação da noção de função social do contrato se dê com observância da liberdade econômica é uma contradição nos seus próprios termos e parece exprimir uma absoluta falta de conhecimento do próprio conceito de função social. O acréscimo somente não merece crítica mais aguda porque é inócuo: afirma, a rigor, que a liberdade de contratar deve ser exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observada a própria liberdade de contratar.

Embora tautológica, a nova redação do Caput do art. 421 não promete trazer qualquer transformação concreta no modo como nossa doutrina e jurisprudência aplicam a noção de função social do contrato – noção que, de resto, derivaria diretamente da Constituição, independentemente de atuação do legislador ordinário, na medida em que a funcionalização dos institutos jurídicos ao atendimento de valores sociais relevantes resulta da própria primazia que o Constituinte atribui a tais valores, mesmo quando tutela a livre iniciativa, não como liberdade vazia, mas em atenção ao seu “valor social” (CR, art. 1º, IV).

Indo além, a MP 881/2019, também introduziu no artigo 421, um parágrafo único, que estabelece a prevalência de um assim chamado “princípio da intervenção mínima do Estado” e reserva caráter “excepcional” à revisão contratual “determinada de forma externa às partes”. Mais uma vez, o equívoco salta aos olhos. Não existe um “princípio da intervenção mínima do Estado”; a intervenção do Estado nas relações contratuais de natureza privada é imprescindível, quer para assegurar a força vinculante dos contratos, quer para garantir a incidência das normas jurídicas, inclusive das normas constitucionais, de hierarquia superior à referida Medida Provisória. A MP 881/2019 parece ter se deixado levar aqui por uma certa ideologia que enxerga o Estado como inimigo da liberdade de contratar, quando, na verdade, a presença do Estado – e, por conseguinte, o próprio Direito – afigura-se necessária para assegura o exercício da referida liberdade.

No que tange à revisão contratual, também parece ter incorrido a Medida Provisória nessa falsa dicotomia entre atuação do Estado-juiz e liberdade de contratar, quando, ao contrário, a revisão contratual privilegia o exercício dessa liberdade ao preservar a relação contratual estabelecida livremente entra as partes, ao contrário do que ocorre com a resolução contratual, remédio a que já tem direito todo contratante nas mesmas situações em que a revisão é cabível, em conformidade com o art. 478. Se a intenção da MP foi evitar que revisões judiciais de contratos resultem em alterações excessivas do pacto estabelecido entre as partes, empregou meio inadequado: afirmar que a revisão contratual deve ser excepcional nada diz, porque não altera as hipóteses em que a revisão se aplica, hipóteses que são expressamente delimitadas no próprio Código Civil. O novo parágrafo único acrescentado pela MP tampouco indica parâmetros, critérios ou limite à revisão contratual, o que leva a crer, mais uma vez, que a alteração não produzirá qualquer efeito relevante  no modo como a revisão contratual é aplicada na prática jurisprudencial brasileira – aplicação que, de resto, já se dá com bastante cautela e parcimônia, sem interferências inusitadas no conteúdo contratual. (Artigo de Anderson Schreiber, publicado por Flávio Tartuce, aqui reproduzido 10.07.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações (VD)) existe uma Medida Provisória em Abril/2019 de MP 881/2019, com alterações ao Código Civil – Parte 1).

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

No diapasão de Nelson Rosenvald, a excepcional ascensão da boa-fé objetiva nas mais recentes legislações é fruto da superação de um modelo formalista e positivista que cominou os ordenamentos jurídicos no século XIX, sobrevivendo até o fim da II Guerra Mundial.

O dispositivo é a consagração do princípio da Treu und Glauben (lealdade & confiança), radicado no § 242 do BGB (Código Civil Alemão) de 1900: “o devedor está adstrito a realizar a prestação tal como exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego”.

Com a edição de conceitos abertos como o da boa-fé, é possível ao magistrado adequar a aplicação do direito aos influxos de valores sociais, pois os limites dos fatos preconizados nas cláusulas gerais são móveis e passíveis de concretização variável.

Há que salientar que existem duas acepções de boa-fé, uma subjetiva e outra objetiva. O princípio da boa-fé objetiva – circunscrito ao campo do direito das obrigações – é o objeto de nosso enfoque. Compreende ele um modelo de conduta social, verdadeiro standard jurídico ou regra de conduta, caracterizado por uma atuação de acordo com determinados padrões sociais de lisura, honestidade e correção de modo a não frustrar a legítima confiança da outra parte.

Em sentido diverso, a boa-fé subjetiva não é um princípio, e sim um estado psicológico em que a pessoa possui a crença de ser titular de um direito, que em verdade só existe na aparência. O indivíduo se encontra em escusável situação de ignorância acerca da realidade dos fatos e da lesão a direito alheio. Localiza-se como atributo qualificativo de posse (CC, 1201) e requisito da usucapião ordinária (CC, 1.242); também como elemento de apreciação de indenização de acessões e benfeitorias (CC, 1.219 e 1.255).

Esse dado distintivo é crucial: a boa-fé objetiva é examinada externamente, vale dizer que a aferição se dirige à correção da conduta do indivíduo, pouco importando a sua convicção. De fato, o princípio da boa-fé encontra a sua justificação no interesse coletivo de que as pessoas pautem seu agir pela cooperação e lealdade, incentivando-se o sentimento de justiça social, com repressão a todas as condutas que importem em desvio aos sedimentados parâmetros de honestidade e retidão.

Por isso, a boa-fé objetiva é fonte de obrigações, impondo comportamentos aos contratantes, segundo regras de correção, na conformidade do agir do homem comum daquele meio social.

O princípio da boa-fé atuará como modo de enquadramento constitucional do direito das obrigações, na medida em que a consideração pelos interesses que a parte contrária espera obter de uma dada relação contratual mais não é que o respeito à dignidade humana em atuação ao âmbito negocial.

Os três grandes paradigmas do Código Civil de 2002 são eticidade, socialidade e operabilidade. A boa-fé é a maior demonstração de eticidade da obra conduzida por Miguel Reale. No CC/2002, o neologismo eticidade se relaciona de forma mais próxima com uma noção de moralidade, que pode ser conceituada como uma forma de comportamento suportável, aceitável em determinado tempo e lugar. Destarte, a boa-fé servirá como um parâmetro objetivo para orientar o julgador na eleição das condutas que guardem adequação com o acordado pelas partes, com correlação objetiva entre meio e fins. O juiz terá de se portar como um “homem de seu meio e tempo” para buscar o agir de uma pessoa de bem como forma de valoração das relações sociais.

Note-se que a boa-fé sempre será concretizada em consonância com os dados fáticos que se revelarem na situação jurídica. A eficácia da boa-fé deverá variar conforme a maior ou menor igualdade das partes no contexto espacial e temporal, enfiam, a intensidade da aplicação do princípio será aferida nas circunstâncias, conforme a “ética da situação”.

A boa-fé é multifuncional. Para fins didáticos, é interessante delimitar as três áreas de operatividade da boa-fé no Código Civil de 2002. Desempenha papel de paradigma interpretativo na teoria dos negócios jurídicos (art. 113); assume caráter de controle, impedindo o abuso do direito subjetivo, qualificando-o como ato ilícito (art. 187); finalmente, desempenha atribuição integrativa, pois dela emanam deveres que serão catalogados pela reiteração de precedentes jurisprudenciais (art. 422).

A função integrativa da boa-fé resulta do CC, 422. Integrar traz a noção de criar, conceber. Ou seja, além de servir à interpretação do negócio jurídico, a boa-fé é uma fonte, um manancial criador de deveres jurídicos para as partes. Devem elas guardar, tanto nas negociações que antecedem o contrato como durante a execução deste, o princípio da boa-fé. Aqui, prosperam os deveres de proteção e cooperação com os interesses da outra parte – deveres anexos ou laterais -, propiciando a realização positiva do fim contratual na tutela aos bens e à pessoa da outra parte.

O conteúdo da relação obrigacional é dado pela vontade e integrado pela boa-fé. Com isso, estamos afirmando que a prestação principal do negócio jurídico (dar, fazer e não fazer) é um dado decorrente da vontade. Os deveres principais da prestação constituem o núcleo dominando, a alma da relação obrigacional. Daí que sejam eles que definem o tipo do contrato.

Todavia, outros deveres se impõem na relação obrigacional, completamente desvinculados da vontade de seus participantes. Trata-se dos deveres de conduta, também conhecidos na doutrina como deveres anexos, deveres instrumentais, deveres laterais, deveres acessórios, deveres de proteção e deveres de tutela.

Os deveres de conduta são conduzidos ao negócio jurídico pela boa-fé, destinando-se a resguardar o fiel processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra. Eles incidem tanto sobre o devedor quanto sobre o credor, mediante resguardo dos direitos fundamentais de ambos, a partir de uma ordem de cooperação, proteção e informação, em via de facilitação do adimplemento, tutelando-se a dignidade do devedor e o crédito do titular ativo.

Por fim, o grande influxo integrativo da boa-fé está localizado nas relações obrigacionais duradouras e não naquelas instantâneas em que há coincidência temporal entre a contratação e a execução. Nas obrigações duradouras, exige-se uma execução com confiança recíproca e especial observância de diligência no cumprimento da atividade assumida, pois em uma vinculação de grande período cada uma das partes depende, mais do que em nenhum outro caso, da boa-fé no cumprimento do convencionado.

Parece-nos que o art. 422 não se olvidou da responsabilidade pré-contratual, tampouco da responsabilidade post pactum finitum. Resta implícito no dispositivo que os deveres de conduta relacionados ao cumprimento honesto e leal da obrigação também se aplicam às negociações preliminares (tratativas) e sobre aquilo que se passa depois do contrato. Não se pode olvidar de que estamos diante de norma de textura aberta, que induz os operadores à sua colmatação com base em argumentações já desenvolvidas na doutrina.

Em verdade, mesmo antes de a relação obrigacional ser pactuada, já existe o contato social entre as partes. Os deveres de conduta emergem no momento das primeiras negociações, pois a boa-fé objetiva diz respeito à manutenção da palavra empenhada. Assim, a complexidade da relação obrigacional apanha todo o processo relacional construído pelas partes, não se podendo dissociar os acertos e as promessas inaugurais de tudo aquilo que se verificou após a subscrição do contrato.

O mesmo se entende da responsabilidade pós-contratual. A confiança recíproca – que permitiu a concretização da relação obrigacional – não termina no instante em que a prestação principal é satisfeita. Há uma enorme expectativa de que o outro contratante não frustrará os fins do pactuado. Isso explica a razão da corriqueira imposição de cláusulas de confidencialidade e de não concorrência no bojo de contratos negociados (NELSON  ROSENVALD, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 491-492 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 19/07/2019. Revista e atualizada nesta data por VD).

Segundo a doutrina apresentada por Ricardo Fiuza, referente ao CC, 422, cuida-se de dispositivo específico sobre os princípios da probidade e da boa-fé. O Código de 1916 não ofereceu tratamento objetivo a respeito.

O primeiro princípio versa sobre um conjunto de deveres, exigidos nas relações jurídicas, em especial os de veracidade, integridade, honradez e lealdade, deles resultando como corolário lógico o segundo.

O princípio da boa-fé não apenas reflete uma regra de conduta. Consubstancia a eticidade orientadora da construção jurídica do novo Código Civil. É, em verdade, o preceito paradigma na estrutura do negócio jurídico, da qual decorrem diversas teorias, dentre as quais a teoria da confiança tratada por Cláudia Lima Marques no alcance da certeza e segurança eu devem emprestar efetividade aos contratos.

O dispositivo apresenta, conforme aponta Antonio Junqueira de Azevedo, insuficiências e deficiências, na questão objetiva da boa-fé nos contratos. As principais insuficiências convergem às limitações fixadas (período da conclusão do contrato até a sua execução), não valorando a necessidade de aplicações da boa-fé às fases pré-contratual e pós-contratual, com a devida extensão do regramento. As deficiências decorrem da ausência de duas funções, do direito pretoriano, para a cláusula geral da boa-fé: a supplendi e a corrigendi, no que dizem respeito, fundamentalmente, aos deveres anexos ao vínculo principal, cláusulas faltantes e cláusulas abusivas.

Direito comparado: Código Civil italiano de 1942, art. 1.337; Código Civil português, art. 227; § 242 do BGB.

Sugestão legislativa: As reflexões do eminente jurista, em proeminente estudo, fornecem ponte suficiente para o aperfeiçoamento do dispositivo, sugerindo-se, por oportuno, ao Deputado Ricardo Fiuza, a seguinte redação:

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar: assim nas negociações preliminares e conclusão do contrato, como em sua execução e fase pós-contratual, os princípios da probidade e boa-fé e tudo mais que resulte da natureza do contrato, da lei, dos usos e das exigências da razão e da equidade (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 227, apud Maria Helena Diniz, Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 19/07/2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Na esteira de Guimarães e Mezzalina, são apresentados: caracterização, jurisprudência, origem histórica da boa-fé objetiva e tipos de atos abusivos que distinguem este artigo 422.

 A caracterização mostra o princípio da boa-fé objetiva representadas pela ampliação da responsabilidade civil às fases pré-contratual (culpa in contrahendo) e pós-contratual (culpa post pactum finitum) e aos deveres laterais.

Jurisprudência: Direito civil. Responsabilidade civil pré-contratual. A parte interessada em se tornar revendedora autorizada de veículos tem direito de ser ressarcida dos danos materiais decorrentes da conduta da fabricante no caso em que esta – após anunciar em jornal que estaria em busca de novos parceiros e depois de comunicar àquela a avaliação positiva que fizera da manifestação de seu interesse, obrigando-a, inclusive, a adiantar o pagamento de determinados valores – rompa, de forma injustificada, a negociação até então levada a efeito, abstendo-se de devolver as quantias adiantadas. A responsabilidade civil pré-negocial, ou se já, a verificada na fase preliminar do contrato, é tema oriundo da teoria da culpa in contrahendo, formulada pioneiramente por JHering, que influenciou a legislação de diversos países. No Brasil, o CC/1916 não trazia disposição específica a respeito do tema, tampouco sobre a cláusula geral de boa-fé objetiva. Todavia, já se ressaltava, com fundamento no art. 159 daquele diploma, a importância da tutela da confiança da necessidade de reparar o dano verificado no âmbito das tratativas pré-contratuais. Com o advento do CC/2002, da qual se extrai a necessidade de observância dos chamados deveres anexos ou de proteção. Com base nesse regramento, deve-se reconhecer a responsabilidade pela reparação de danos organizados na fase pré-contratual caso verificadas a ocorrência de consentimento prévio e mútuo no inicio das tratativas, a afronta à boa-fé objetiva com o rompimento ilegítimo destas, a existência de prejuízo e a relação de causalidade entre a ruptura das tratativas e o dano sofrido. Nesse contexto, o dever de reparação não decorre do simples fato de as tratativas terem sido rompidas e o contrato não ter sido concluído, mas da situação de uma das partes ter gerado à outra, além da expectativa legítima de que o contrato seria concluído, efetivo prejuízo material. REsp 1.051.065/AM, Rel. Min. Ricardo Vllas Bôas Cueva, julgado em 21/2/2013.

A doutrina distingue os deveres contratuais em primários, secundários e laterais (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: RT, 2000, p. 439) São estes: a) deveres de cuidado previdência e segurança; b) deveres de aviso de esclarecimento; c) deveres de informação (CDC, arts. 12, 14, 18, 20, 20, 31); d) dever de prestar contas; e) deveres de colaboração e de cooperação; f) deveres de proteção e de cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte (ex.: adimplemento substancial do contrato); g) deveres de omissão e de segredo.

Origem histórica da boa-fé objetiva. Exceptio doli: instituto de direito romano contra a utilização de particularidades formais das declarações de vontade ou do aproveitamento de incompletudes de regras jurídicas, absorvido, modernamente, pelos demais institutos que concretizam o princípio da boa-fé.

Tipos de atos abusivos:  Venire contra factum proprium: comportamento que contraria ato do próprio agente e agride a confiança gerada na parte contrária. A conduta contrária à lei e às cláusulas contratuais configura ilicitude e violação do contrato, não configura o venire... Para a aplicação do venire... é necessário um comportamento não previsto em regras primárias ou secundárias, que induza confiança da contraparte. Ex.: Trabalhador que pretende rescisão de contrato por atraso no pagamento de salários após aprovar plano de recuperação da empresa em que é acordada moratória; locador que requer o despejo por falta de pagamento após receber aluguel em local diverso do ajustado por três anos; locador que requer o despejo por ter o locatário alterado a estrutura do prédio após ter sido autorizado pelo mesmo locador a realizar as obras de responsabilidade deste; proprietário que exige a devolução de terreno após autorizar plantação; mulher casada que vive com terceiro e reclama do marido o pagamento de alimentos.

Supressio (Verwirkung): limitação do conteúdo contratual: ausência de exercício de direito subjetivo durante lapso de tempo suficiente para gerar a confiança na contraparte de que não mais será exercido.

A consagração dogmática da supressio ocorrer com a inflação na Alemanha após a I Guerra Mundial: “Em consequência dessas alterações econômicas, o exercício retardado de alguns direitos levava a situações de desequilíbrio inadmissível entre as partes” (MENEZES CORDEIRO, Antônio M. da R. Da boa fé no direito civil, p. 801).

 A supressio considera-se prejudicada pelos mesmos fatos que interrompem ou suspendem a prescrição (CORDEIRO, Antônio Menezes. Tratado de direito civil português, v. I, t. IV. Coimbra: Almedina, 2005, p. 322)

Requisitos: um não exercício prolongado; uma situação de confiança; uma justificação para essa confiança; um investimento de confiança; a imputação da confiança ao não-exercente. Ex.: Em contrato de fornecimento o comprador que alega defeitos da coisa vendida e deixa de comprová-los como solicitado pelo vendedor não pode requerer o cumprimento do contrato dois anos depois. Uma parte que deixa de cobrar certa quantia e é compensada pela contraparte como favores em razão do não exercício do direito, por longo tempo, perde o direito de cobrar o crédito. Parte que deixa de reajustar contrato para mantê-lo por 6 anos, não pode exigir, retroativamente a correção monetária (STJ. REsp 1.202.514/RS. Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 21.7.2011). O condomínio não pode reivindicar área originalmente comum, destinada a corredor, que veio a ser ocupada com exclusividade por um dos condôminos por mais de 20 anos, com a concordância dos demais e aprovação de projeto de alteração das partes comuns em assembleia (STJ. REsp 214.680/SP. Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 10/08/1999).

Surrectio (Erwirkung): é considerada “vantagem conferida à outra parte por efeito da supressio” (J. SCHMIDT apud MENEZES CORDEIRO, Antônio. Da boa fé no direito civil, p. 821). No mesmo sentido: FARIAS, Cristiano Chaves de: ROSENVALD, Nelson. Direito dos contratos, p. 192). Ex.: Deve-se manter a forma de distribuição de lucros conforme realizada durante mais de 20 anos apesar de em desconformidade com o contrato social.

Inalegabilidades formais: Abuso na alegação da falta de forma. O agente alega nulidade de um negócio por ausência de forma depois de ter incentivado a contratar e de ter recebido a parte que lhe cabia.

Requisitos: Boa-fé subjetiva; efeitos insuportáveis para a contraparte se a nulidade vier a ser declara; que o escopo da forma preterida não tenha sido defraudado; inexistência de regra que exclua a inalegabilidade; inexistência de outra solução para o caso. Ex.: Depois de receber os créditos de herança, o cessionário alega nulidade da cessão, por não ter sido feita mediante escritura pública, a fim de se esquivar do pagamento de débitos relativos à mesma herança; construtora que nega a validade de contrato e afirma ter sido firmado por quem não tinha poderes para tanto, embora realizado em seu escritório e com papel timbrado dela própria. Não pode o locador alegar nulidade de distrato, buscando manter o contrato rompido, e ainda obstar a devolução dos valores desembolsados pela locatária, ao argumento de que a lei exige forma para conferir validade à avença, se a posse do imóvel já lhe havia sido devolvida e o distrato, embora não assinado, já tivesse sido acertado. (STJ. REsp 1.040.606/ES. Rel. Min. Luís Felipe Salomão. J. 24.04.2012).

Tu quoque (Tu também): quem viola norma jurídica não pode prevalecer-se da situação decorrente; exercer a posição violada; ou exigir de outrem o acatamento da situação violada (turpitudinem suam allegans non auditur).

Concretizações: artigos 129, 180, 945, 1.216, 1.218, 1.220, 1.521, VII, 1.814, I, todos do Código Civil. Ex.: O locador não pode despejar o locatário que abandonou imóvel inundado por falta de obras de responsabilidade daquele; um contratante não pode alegar a nulidade do contrato cujas vias tiver perdido; condômino que se recusa a assinar ata de assembleia não pode impugná-la pela falta de sua própria assinatura (Direito Civil Comentado, Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalina, apud Direito.com acesso em 19.07.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente.

A esse respeito, Nelson Rosenvald. fala dos contratos de adesão que traduzem um modelo de sociedade marcado pela massificação das relações econômicas. Segundo seu entendimento, não se trata de uma espécie de contrato, como a compra e venda ou a doação, mas de um instrumento contemporâneo de contratação no qual a manifestação de vontade não se exterioriza pelo consentimento tradicional, mas pela forma de adesão. O contrato por adesão convive com o tradicional contrato partidário, marcado pela existência de uma etapa de negociação de cláusulas.

A contratação por adesão possui uma grande características: elimina a fase das conversações preliminares, pois uma das partes estabelece unilateralmente as condições gerais do contrato, sendo que o consentimento do outro contratante será a própria adesão em bloco – take it or leave it.

O art. 423 reconhece a contratualidade da adesão, mesmo que ela seja privada do espaço de discussão de cláusulas pela existência de certo desequilíbrio entre os contratantes. Em virtude desse desequilíbrio prévio, caberá ao ordenamento uma intervenção mais drástica sobre os contratos dessa natureza, a fim de que a parte mais débil possa se relacionar com total intelecção da avença.

Este artigo cuida da interpretação do contrato de adesão. As suas cláusulas dúbias ou vacilantes serão interpretadas contra quem redigiu o contrato. Porém, deve o dispositivo em estudo ser sempre aferido em conjugação com a norma geral de interpretação da boa-fé. No plano da otimização do comportamento contratual e do estrito cumprimento do ordenamento jurídico, o art. 113 dispõe que os negócios jurídicos devem ser interpretados de acordo com a boa-fé. O magistrado não apelará a uma interpretação literal do texto contratual, mas observará o sentido correspondente às convenções sociais ao analisar a relação obrigacional que lhe é submetida. Deverá aferir a celeuma conforme os costumes e o tráfego jurídico do local em que se estabeleceu o contrato.

Há um equívoco em supor que os contratos de adesão sejam específicos das relações de consumo. Apesar de o Código de Defesa do Consumidor, por excelência, constituir-se em sede de tais contratos, nada impede que de relações privadas, envolvendo dois empresários ou particulares, nasçam contratos de adesão, sem que em um dos polos exista a figura do consumidor.

Normalmente os contratos são uniformes e direcionados a um número indeterminado de pessoas, posto que são confeccionados em formulários-modelo, despersonalizando-se as relações daí produzidas. Mas, como vimos no tópico anterior, nem todo contrato de adesão é padronizado ou estandardizado, sendo suficiente à sua caracterização a inexistência de negociação entre as partes.

Isso explica a redação diferenciada do art. 47 do Código de Defesa do Consumidor: “as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”. Ou seja, nas relações entre os desiguais, a tutela ampla do vulnerável, demanda critérios de interpretação mais elásticos, exclusivamente em benefício do consumidor. Já nas relações civis, haver-se-á de prestigiar especialmente o aderente tão somente no que for pertinente às cláusulas contraditórias.

Aliás, no diálogo de fontes, as normas gerais do Código Civil podem ser utilizadas subsidiariamente pelo consumidor, quando forem mais favoráveis que as do microssistema (art. 7º do CDC). Todavia, a recíproca não se aplica. Vale dizer, tendo o Código Civil silenciado sobre o conceito do contrato de adesão, que descabe o recurso à definição emprestada pelo art. 54 do Código consumerista (NELSON  ROSENVALD, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 493 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 19/07/2019. Revista e atualizada nesta data por VD).

Na doutrina apresentada por Ricardo Fiuza, a referência a contrato de adesão sugere, por conceituação legal, espécie e não gênero. Em verdade, porém, não existe um contrato de adesão; são existentes contratos celebrados por adesão, como pontifica Agostinho de Arruda Alvim em sua Exposição de Motivos, complementar ao anteprojeto do CC revisto (25.3.1973). o mesmo ocorre com relação aos contratos aleatórios e os atípicos, que se pretendem regulados em seções do Título V do Livro I da Parte Especial. Nessa categoria, existem diversos contratos por adesão caracterizados por técnicas comuns de contratação de massa, com visível desequilíbrio de forças dos contratantes e fone atenuação na liberdade de contratar diante de cláusulas pré-elaboradas. Não foi dispensada, todavia, regulação própria aos contratos por adesão, tal como observada pela Lei n. 8.078 de 11.9.1990 (Código de Proteção e Defesa do Consumidor), a permitir a crítica do eminente jurista Nelson Nery que aponta um tratamento tímido dado pelo CC de 2002 a essa técnica de formação de contrato ao dispensar-lhe apenas dois de seus dispositivos.

O art. 54 do CDC define: “Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente o seu conteúdo”. A norma alcança, segundo a doutrina de Orlando Gomes, as duas formas de contratação, a de estipulação produzida pelo poder público, onde manifesta a irrecusabilidade das cláusulas (contrato de adesão) e a estabelecida, unilateralmente, pelo particular, em face do potencial aderente (contrato por adesão).

A definição contrats d’adhesion foi oferecida por Raymond Saleilles, em sua obra Dela déclaration de volonté (Paris, LGDJ, 1929, p. 229-30) quando examinou o Código Civil alemão em sua Parte Geral.

Direito comparado: Ai. 1.370 do Código Civil italiano de 1942, instituidor da regra interpretatio contra stipulatorem ou interpretatio contra proferentem.

O princípio de interpretação contratual mais favorável ao aderente decorre de necessidade isonômica estabelecendo em seus fins uma igualdade substancial real entre os contratantes. É que, como lembra Georges Peipert, “o único ato de vontade do aderente consiste em colocar-se em situação tal que a lei da outra parte é soberana. E, quando pratica aquele ato de vontade, o aderente é levado a isso pela imperiosa necessidade de contratar”. O dispositivo, ao preceituar a sua aplicação, todavia, em casos de cláusulas obscuras ou ambíguas, vem limitá-lo a essas hipóteses, o que contraria o avança trazido pelo Art. 47 do CDC prevendo o princípio aplicado a todas as cláusulas contratuais. O aderente como sujeito da relação contratual deve receber idêntico tratamento dado ao consumidor, diante do significado da igualdade de fato que estimula o princípio (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 228, apud Maria Helena Diniz, Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 19/07/2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Abordando Guimarães e Mezzalina, o Código de Defesa do Consumidor conceitua o contrato de adesão no artigo 54: Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.

Os contratos de adesão são caracterizados pela menor possibilidade de uma das partes, chamada aderente, estabelecer o conteúdo do contrato. Em razão disso, a lei civil permite que o aderente seja beneficiado com a interpretação mais favorável.

A referida regra não exclui a possibilidade de a intenção das partes ser aclarada por outros elementos, pois, nos termos do CC, 112, o fundamental é a intenção consubstanciadas nas declarações de vontade. Desse modo, por exemplo, a própria prática que os contratantes estabeleceram para cumprimento do contrato revela o intento delas ao contratar. A interpretação mais favorável ao aderente é, portanto, uma regra subsidiária (Direito Civil Comentado, Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalina, apud Direito.com acesso em 19.07.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Compilado do Artigo de Flavio Tautuce, a MP 881/2019 A referida MP modificou, ainda, o caput do art. 423, que trata da interpretação pró-aderente, substituindo a referência a cláusulas “ambíguas ou contraditórias” que constava de sua redação original pela alusão a cláusulas “que gerem dúvida quanto à sua interpretação”. A modificação é compreensível: não existem, tecnicamente, cláusulas ambíguas ou contraditórias, pois ambiguidade e contradição são constatações a que chega o intérprete após a interpretação das cláusulas, constituindo não um prius, mas um posterius em relação à compreensão do sentido e alcance das disposições contratuais

A MP 881/2019 acrescentou, ainda, um parágrafo único ao artigo 423, repleto de equívocos redacionais. Alude, em primeiro lugar, a “contratos não atingidos pelo disposto no caput”, quando normas jurídicas evidentemente não atingem contratos, mas os abrangem ou contemplam. Afirma, ainda, que, em tais casos, “a dúvida na interpretação beneficia” a parte que não redigiu a cláusula controvertida, quando dúvidas não beneficiam ninguém: é a interpretação da cláusula que deve ser benéfica a uma ou outra parte. Abstraindo-se as questões linguísticas, o novo dispositivo parece ter pretendido ampliar a incidência da chamada interpretativo contra preferentem ou contra stipulatorem: quem redige a cláusula não pode se beneficiar da sua falta de clareza, devendo tal cláusula ser interpretada em favor da contraparte. Não se pode, contudo, generalizar demasiadamente a referida orientação hermenêutica. Em relações paritárias, nem sempre é fácil identificar quem redigiu a cláusula: um contratante pode não ter elaborado a redação de uma certa cláusula, mas pode ter tido a oportunidade de modifica-la, optando por não fazê-lo. Em tais hipóteses, lançar sobre o redator todo o ônus interpretativo pode se revelar desproporcional. Daí ter o Código Civil, em sua redação original, limitado a regra às relações contratuais de adesão. A extensão promovida pela MP 881/2019 deve ser, portanto, aplicada com cautela (Artigo de Anderson Schreiber, publicado por Flávio Tartuce, aqui reproduzido 19.07.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações (VD)) existe uma Medida Provisória em Abril/2019 de MP 881/2019, com alterações ao Código Civil – Parte 1).