segunda-feira, 18 de maio de 2020

Direito Civil Comentado - Art. 978, 979, 980 Da Capacidade - VARGAS, Paulo S. R.


Direito Civil Comentado - Art. 978, 979, 980
Da Capacidade - VARGAS, Paulo S. R.
Parte Especial - Livro II – (Art. 966 ao 1.195) Do Direito de Empresa
Título I – Do Empresário (Art. 966 ao 980-A) Capítulo II - Da Capacidade
– vargasdigitador.blogspot.com digitadorvargas@outlook.com

Art. 978. O empresário casado pode, se necessidade de outorga conjugal, qualquer que seja o regime de bens, alienar os imóveis que integrem o patrimônio da empresa ou gravá-los de ônus real.

No entendimento de Barbosa Filho, o CC 978 dispensa a outorga conjugal para a alienação de bens imóveis, bem como a instituição de ônus real, desde que incluídos no ativo do empresário individual casado. Cuida-se de uma dispensa específica e que se refere tanto ao ativo circulante, quanto ao permanente, tudo dependendo da destinação conferida à coisa, excepcionando a regra geral exposta no inciso I do CC 1.647 e sempre incidente quanto o regime de bens adotado não é o da separação absoluta. Pretende-se dar maior liberdade ao empresário individual evitando fique ele tolhido na necessidade de agilidade e rapidez na celebração de negócios jurídicos, i.é, extirpando obstáculos ao desenvolvimento da atividade empresarial. A falta da aquiescência do cônjuge do empresário individual, portanto, não causará qualquer mácula à validade de alienações e constituições de direitos reais incidentes sobre imóveis utilizados no exercício da empresa, merecendo aplausos a inovação legislativa. Os bens enfocados continuam, no entanto, compondo a comunhão de bens mantida pelo casal, sendo passíveis, inclusive, ao final da sociedade conjugal, de partilha, mas estão, simplesmente, submetidos a um regime jurídico diferenciado e mais benéfico ao empresário. Merecerá cuidado, nestas circunstâncias, para a prevenção de litígios, a elaboração do instrumento público tendente à aquisição, alienação ou oneração de imóveis, devendo constar, expressa e claramente, se possível, com detalhes, a vinculação do imóvel à atividade empresarial. A afetação de bens imóveis precisa, ainda, ser divulgada e para que a outorga conjugal seja dispensada, é preciso promover específica averbação junto às respectivas matriculas, com o assentimento do próprio cônjuge do empresário individual.

O presente dispositivo legal não tratou, porém, da concessão da outorga uxória para a consecução do aval, inovação trazida pelo atual Código que mereceria maior atenção. É possível compatibilizar as restrições decorrentes da necessidade do consentimento do cônjuge com as regras estabelecidas, de modo a concluir que a concessão de aval pelo empresário individual, visando a expansão de sua atividade profissional, prescinde da obtenção da outorga uxória, ou seja, a declaração cartular não pode ser anulada, se bem que seus efeitos não possam, também, ser opostos ao cônjuge que não forneceu sua aquiescência. (Marcelo Fortes Barbosa Filho, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 990 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 18/05/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Referindo-se ao histórico do artigo em comento, em sua redação original, o dispositivo constante do projeto proposto pela Câmara estabelecia que “O empresário casado pode, sem necessidade de outorga conjugal, qualquer que seja o regime de bens, hipotecar ou alienar os imóveis que lhe são próprios e os adquiridos no exercício da sua atividade”. Emenda da iniciativa do Senador Gabriel Hermes promoveu a alteração adotada na redação final. Ainda que o Código Civil de 1916, em sua redação primitiva, não contivesse norma semelhante, o art. 30 da Lei n. 4.121/62 (Estatuto da Mulher Casada) veio a prescrever que, “pelos títulos de dívida de qualquer natureza, firmado por um só dos cônjuges, ainda que casados pelo regime de comunhão universal, somente responderão os bens particulares do signatário e os Comuns até o limite de sua meação”. Essa norma, segundo a melhor doutrina comercialista (Rubens Requião, Curso de direito comercial, São Paulo, Saraiva, 1971, v. I, p. 62; Waldírio Bulgarelli, Direito comercial, São Paulo, Atlas, 1987.)

Como dispõe a doutrina de Ricardo Fiuza, esse dispositivo constante do CC 978 veio a consolidar o entendimento mais evoluído de que qualquer dos cônjuges pode, sem necessidade de outorga uxória, alienar ou gravar de ônus reais bens que integrem o patrimônio da empresa de que cada um, isoladamente, participe.

No caso das sociedades comerciais, a aplicação desse princípio decorre, diretamente, da separação patrimonial objetiva entre os bens da sociedade e os bens particulares dos sócios. No que se refere às firmas individuais, que não adquirem personalidade jurídica própria, a norma em referência estabelece que, relativamente ao patrimônio imobiliário destinado pelo empresário para o exercício de sua atividade, tais bens poderão ser alienados ou gravados de ônus reais sem a necessidade de consentimento do respectivo cônjuge, uma vez que os bens imóveis diretamente afetados à atividade da empresa não estão compreendidos no patrimônio conjugal. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 512, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 18/05/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Mayara Souza Laureano Schimtz, em seu artigo “O Empresário Individual Casado e A Dispensa (ou Não) da Outorga Conjugal Para Alienar e Gravar Bens do Casal: À Luz dos Artigos 978 e 1.647, Inciso I, do Código Civil de 2002”, remete-se à problemática do artigo, liga o conteúdo dos CC 978 e 1.647, inciso I, todos do código civil brasileiro de 2002, e contrapõe a problemática da (des) necessidade de autorização conjugal para alienar os bens imóveis que integram o patrimônio dos consortes ou ainda gravá-los de ônus real, quando da atuação de um dos cônjuges na esfera empresarial, especificamente na qualidade de empresário individual de responsabilidade limitada. Com a edição do Código Civil de 2002, modificações relevantes foram introduzidas no que concerne às relações empresariais e conjugais. Exemplo desta alteração é a regra do citado artigo 978, que passou a dispensar a outorga conjugal para alienar e gravar bens imóveis, para o caso do empresário individual (pessoa física) casado, isto independente do regime de bens. De outra baila, tem-se ainda a disciplina do artigo 1.647, inciso I, do mesmo diploma legal, que versa sobre a proibição da prática de tais atos sem a anuência do cônjuge. Neste contexto de aparente contradição legal, faz-se necessário elevar o estudo para alcance da compreensão da norma, com vista a extrair a correta interpretação desta aparente antinomia. Isso poderá ser acessado na íntegra (Mayara Souza Laureano Schimtz, publicou no site ambitojuridico.com.br, em 23/07/2019, acesso em 18/05/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 979. Além de no registro Civil, serão arquivados e averbados, no Registro Público de Empresas Mercantis, os pactos e declarações antenupciais do empresário, o título de doação, herança, ou legado, de bens clausulados de incomunicabilidade ou inalienabilidade.

Nas palavras de Barbosa Filho, é necessário dar total conhecimento a todos os interessados, das características fundamentais da concreta situação patrimonial do empresário individual, induzidas por seu estado civil e pelas circunstâncias de aquisição de determinados bens. Nesse sentido, o presente artigo ressuscitou norma constante do art. 37, II, da revogada Lei n. 4.276/65, passando a exigir que o empresário individual traga, para arquivamento perante a Junta Comercial competente, os documentos constitutivos ou comprobatórios de tal situação, correspondentes à certidão extraída do instrumento público do pacto antenupcial (CC 1.640, parágrafo único) ou, quando se tratar de bens adquiridos em razão de sucessão causa mortis ou liberalidade e clausulados com a inalienabilidade ou incomunicabilidade (CC 1.848 e 1.911), certidão da transcrição ou matrícula de bens imóveis ou, ainda, quando se tratar de bens móveis, do registro do testamento (art. 735 do CPC em vigor, antigo art. 1.126 do CPC/1973) e, alternativamente, cópia ou certidão do instrumento do contrato de doação. Em todas as circunstâncias aqui apontadas, haverá restrições à disponibilidade dos bens do empresário individual e nem todos eles poderão ser utilizados para a satisfação dos credores, permanecendo excluídos na eventual hipótese de uma execução, impondo-se, por isso mesmo, a divulgação geral de cada uma das situações restritivas, multiplicada a publicidade com o uso adicional do Registro Público de Empresas Mercantis, específico ao presente âmbito de atividade econômico-jurídico. Ressalte-se, enfim, não haver sido prevista específica sanção para o descumprimento do comando inserto no presente artigo, de maneira que a eficácia das restrições patrimoniais enfocadas, desde que já dadas ao conhecimento público, seja pelo registro Civil das Pessoas Naturais, seja pelo Registro de Imóveis, não sofrerá qualquer abalo. (Marcelo Fortes Barbosa Filho, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 991 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 18/05/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

 No entendimento de Ricardo Fiuza, para a correta e adequada certificação jurídica dos bens pessoais do empresário que podem ser objeto de garantia em face de suas obrigações diante de credores, afigura-se necessário que terceiros que venham a com ele contratar estejam cientes quanto ao regime de bens adotado no âmbito da respectiva sociedade conjugal. Se o regime for o da completa e total separação de bens, somente o patrimônio pessoal do cônjuge que contraiu a obrigação poderá ser alcançado nas hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade de que participe. No caso dos pactos antenupciais, estes estarão sujeitos a registro perante a Junta Comercial da sede da empresa. Já os demais bens sujeitos a restrições de plena disponibilidade, adquiridos a título de doação, herança ou legado, tais condições restritivas deverão ser objeto de averbação no Registro Público de empresas Mercantis, para conhecimento e eficácia perante terceiros. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 512, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 18/05/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Leonardo Gomes de Aquino, explicita que a norma do art. 979 do CC/2002 tem como destinatários todos os empresários, mas a preocupação fundamental se destina ao empresário individual e os empresários que integrem sociedades não-personificadas ou que se submetam aos riscos da responsabilidade ilimitada, posto que nestes casos os empresários submetam o seu patrimônio à execução de seus credores, em caso de falência ou inadimplemento. Sendo assim, os credores ou consumidores destes empresários contarão com uma garantia maior na fiscalização e controle sobre o patrimônio disponível. (Leonardo Gomes de Aquino, é articulista do Jornal Estado de Direito (estadodedireito.com.br) e responsável pela Coluna descortinando o Direito Empresarial, postado em 07 de novembro de 2019, Acesso em 18/05/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

 Art. 980. A sentença que decretar ou homologar a separação judicial do empresário e o ato de reconciliação não podem ser opostos a terceiros, antes de arquivados e averbados no Registro Público de Empresas Mercantis.

No entender de Barbosa Filho, em se tratando de empresário individual, o arquivamento dos documentos comprobatórios da separação judicial e da reconciliação, correspondentes à certidão extraída do assento de casamento, no órgão competente do Registro Público de Empresas Mercantis, i.é, perante a Junta Comercial em que o empresário se achar inscrito, constitui, diante de terceiros, fator de eficácia das implicações patrimoniais de tais alterações do estado civil. Há, portanto, a imprescindibilidade de uma publicidade adicional, além daquela já produzida pelo Registro civil das Pessoas Naturais, condicionando-se, ao arquivamento previsto, a assunção de efeitos da eventual dissolução de uma comunhão e partilha sobre os credores do empresário. O texto legal apresenta três falhas. De início, refere-se à sentença decretatória da separação judicial ou declaratória da reconciliação, quando, pura e simplesmente, deveria fazer referência à própria separação judicial ou à reconciliação, não bastando, para a regular realização do arquivamento, a exibição de certidão da decisão proferida, pois, após seu trânsito em julgado, a publicidade da alteração do estado civil se perfaz, naturalmente, com sua averbação, no Registro Civil das Pessoas Naturais, junto ao assento de casamento, por meio da expedição de mandado (art. 10, I) e, por isso, deve ser exibida, perante a Junta Comercial certidão de dito assento. Persiste, ainda, no presente artigo, uma omissão, deixando de se referir ao divórcio, que, na legislação atual, prescinde da separação judicial, podendo ser pleiteado diretamente e é, ele sim, causa efetiva do rompimento do vínculo conjugal, cabendo seja, também, quando de sua ocorrência, formalizado arquivamento. Ressalte-se, por último, que o parágrafo único do CC 1.577 exclui a possibilidade da reconciliação prejudicar terceiros, não havendo como opô-la a esses mesmos terceiros, apresentando, nesse caso, o arquivamento efeitos mais tímidos. (Marcelo Fortes Barbosa Filho, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 991 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 18/05/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

No entender da Doutrina de Ricardo Fiuza, o arquivamento da sentença que decretar ou homologar a separação judicial, como também o divórcio do empresário (Lei n. 6.515/77, estará a gerar efeitos civis a partir do momento em que for registrada no cartório de registro civil competente. Todavia, para a produção de efeitos perante terceiros, em especial perante credores comerciais ou financeiros do empresário, essa sentença, que estabelece e homologa a partilha de bens entre os cônjuges, somente terá efeitos após seu arquivamento na Junta Comercial da sede da empresa. Esse procedimento foi adotado com a finalidade de dar publicidade à situação relativa à disponibilidade dos bens do empresário, modificada pela alteração em seu estado civil e na consequente partilha do patrimônio anteriormente detido pelo casal em razão do regime de casamento, pois o divórcio ou a separação judicial, nos casos de comunhão de bens, total ou parcial, após a partilha, sempre implica uma redução do patrimônio do cônjuge que exerce atividade empresarial. (Rubens Requião, Curso de direito comercial, São Paulo, Saraiva, 1971, v. 1; Waldirio Bulgarelli, Direito comercial, São Paulo, Atlas, 1987.); (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 512, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 18/05/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Não se pode ignorar ao final do artigo, as alterações da MP 881 ao Código Civil - parte II, apontada por Anderson Schreiber, em 18/06/2019, onde merece destaque, em primeiro lugar, a inclusão de um novo parágrafo no artigo 980-A, que disciplina a empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI). Como se sabe, a EIRELI é espécie de pessoa jurídica que se caracteriza por dois elementos: (a) tem composição unipessoal, ou seja, totalidade do capital social concentrada em um único titular; e (b) tem como objeto a exploração de atividade econômica com intuito de lucro. A EIRELI foi introduzida em nosso ordenamento jurídico pela Lei nº 12.441/2011, buscando contornar a exigência de composição pluripessoal que se extraía, tradicionalmente, do próprio conceito de sociedade. Houve, no entanto, forte resistência ao projeto de lei originário que tratava da EIRELI, diante da preocupação de que o instrumento fosse empregado para perpetrar fraudes aos direitos trabalhistas. Tal preocupação acabou por resultar na previsão de algumas cautelas na Lei 12.441/2011, como a exigência de um capital social não inferior a 100 vezes o maior salário-mínimo vigente no País (CC, art. 980-A, caput). O novo §7º, incluído no artigo 980-A pela MP 881, parece ignorar todo esse histórico ao afirmar que “somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude.”

Ao que parece, o novo parágrafo pretendeu suprir uma suposta lacuna deixada pelo veto ao §4º do art. 980-A, de redação similar à nova regra. A norma foi vetada, à época, por recomendação do Ministério do Trabalho e Emprego, com receio de que o texto pudesse causar dúvidas acerca da possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica de EIRELI. A própria mensagem de veto explicitava que a distinção patrimonial entre o titular e a pessoa jurídica não restava prejudicada, podendo ser extraída – senão do próprio conceito de pessoa jurídica, que somente pode ser entendida como tal quando dotada de autonomia patrimonial – do §6º do art. 980-A, que manda aplicar subsidiariamente à EIRELI a disciplina das sociedades limitadas, cuja personalidade não se confunde, naturalmente, com a personalidade de seus sócios. O forte consenso doutrinário nessa matéria amparou, inclusive, a aprovação do Enunciado nº 470 da V Jornada de Direito Civil do CJF, em que se lê: “O patrimônio da empresa individual de responsabilidade limitada responderá pelas dívidas da pessoa jurídica, não se confundindo com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, sem prejuízo da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica.”

Nesse cenário, a introdução do novo §7º do art. 980-A revela-se inteiramente desnecessária, pois destinada a explicitar algo sobre o qual não se controverte. Pior: o dispositivo suscita, por sua redação defeituosa, dúvida quanto ao seu real significado. O trecho que alude a “hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação”, por exemplo, não esclarece qual seria a “hipótese” contemplada, parecendo ter pretendido tratar não de uma hipótese, mas da própria regra que é a autonomia patrimonial da pessoa jurídica. O maior risco, entretanto, está na parte final do dispositivo, em que restam “ressalvados os casos de fraude”. A expressão promete atrair a mesma dúvida que justificou, no passado, o veto ao §4º: está-se estabelecendo uma hipótese de desconsideração distinta daquela prevista no art. 50 do Código Civil? Com efeito, o art. 50 admite a desconsideração no caso de “abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial”. Não se emprega ali o termo “fraude”. A alusão à “fraude” configura nova hipótese de desconsideração? Cria um regime de desconsideração diverso (mais restrito ou mais amplo) para a EIRELI? Ao aludir genericamente a “casos de fraude” no §7º do art. 980-A, a MP 881/2019 parece ter incorrido em verdadeira incongruência interna: enquanto (a) o acréscimo dos §§1º e 2º ao art. 50 teve o evidente propósito de delimitar os conceitos de desvio de finalidade e confusão patrimonial, (b) o acréscimo deste §7º do art. 980-A abre um oceano de possibilidades interpretativas ao utilizar a imprecisa noção de fraude. De todo modo, resplandece o óbvio: não há qualquer razão para aludir à desconsideração da personalidade jurídica – nem à autonomia patrimonial da pessoa jurídica – na disciplina da EIRELI, que, como pessoa jurídica que é, já sofre a incidência das regras gerais sobre essa matéria. O legislador deve resistir à tentação de repisar matérias em diferentes setores da legislação, sob pena de, não empregando idêntica linguagem, suscitar dúvidas e ambiguidades que deveria evitar.

Ainda no campo do Direito Empresarial, a Medida Provisória 881 acrescentou um parágrafo único ao art. 1.052, que disciplina a sociedade limitada, dispondo: “A sociedade limitada pode ser constituída por uma ou mais pessoas, hipótese em que se aplicarão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social.” Introduziu-se, assim, a figura da sociedade limitada unipessoal no direito brasileiro. A figura da sociedade unipessoal não é uma completa novidade em nosso ordenamento: em 2016, a Lei nº 13.247 introduziu nos arts. 15 e 16 do Estatuto da OAB a sociedade unipessoal de advocacia. No plano teórico, contudo, sempre foi controvertida a possibilidade de constituição de sociedade por apenas um sócio, situação encarada com desconfiança por parcela da doutrina, como já destacado – e que havia gerado, como também já visto, o recurso à figura algo assistemática da EIRELI. Agora, contudo, a MP 881 rompe, em definitivo e em termos amplos, com a tradicional exigência de pluripessoalidade, ao menos no âmbito das sociedades limitadas. À parte o fato de que torna inútil a existência da EIRELI no catálogo das pessoas jurídicas – não se vislumbrando porque alguém optaria pela EIRELI em vez de constituir sociedade limitada unipessoal, conforme se verá mais adiante –, esta opção da MP 881/2019, por si só, não merece censura, parecendo mesmo mais afinada à dinâmica empresarial contemporânea e mais adequada ao nosso sistema jurídico que a criação de uma nova espécie de pessoa jurídica, como ocorreu com a EIRELI.

 O novo parágrafo único do art. 1.052, no entanto, não tem a melhor redação. Em primeiro lugar, a palavra “hipótese” também foi aqui empregada de modo incorreto. O termo refere-se necessariamente ao trecho anterior: “ser constituída por uma ou mais pessoas”. A rigor, contudo, a “hipótese” versada no texto é apenas aquela em que a sociedade limitada é constituída por uma única pessoa, quando então “se aplicarão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social.” Destaque-se, ainda, que a MP limitou-se a acrescentar o parágrafo único no art. 1.052 sem realizar qualquer outro complemento no regime jurídico das limitadas, todo construído a partir da premissa da pluripessoalidade destas sociedades, o que poderá provocar alguma insegurança na adoção desta nova modalidade de sociedade limitada.

Em uma análise sistemática, repita-se, causa alguma perplexidade a inserção da sociedade limitada unipessoal paralelamente à EIRELI, ambas submetidas a um regime praticamente igual – vale lembrar, nesse sentido, a aplicabilidade à EIRELI das regras previstas para as limitadas, por força do §6º do art. 980-A. Veja-se situação curiosa que decorre desse tratamento: a sociedade limitada que, por qualquer razão, tiver suas quotas concentradas em um único sócio, se converterá em EIRELI, por força do §3º do art. 980-A, e não em sociedade limitada unipessoal, como se esperaria. Há, ainda, inconsistências mais preocupantes. Perdem importância as restrições impostas pelo legislador ao regime da EIRELI, como o já mencionado capital mínimo integralizado e a limitação a que pessoa natural figure como titular de uma única EIRELI (art. 980-A, §2º), não parecendo haver qualquer vantagem na opção pela EIRELI em vez da sociedade limitada unipessoal. Melhor que o remendo apressado feito pelo Poder Executivo seria um debate amplo, em sede legislativa, acerca da conveniência ou não da manutenção destas restrições no regime da EIRELI, criando uma modalidade única de pessoa jurídica unipessoal com fins de lucro, conferindo maior lógica ao sistema e segurança ao mercado. (Anderson Schreiber, em 18/06/2019, Acessada na Carta Forense Mobile em 18/05/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).