terça-feira, 8 de setembro de 2020

Direito Civil Comentado - Art. 1.201, 1.202, 1.203 Do Direito das Coisas - VARGAS, Paulo S. R.


Direito Civil Comentado - Art. 1.201, 1.202, 1.203
Do Direito das Coisas - VARGAS, Paulo S. R.
- Livro IIITítulo I – Da Posse (Art. 1.196 ao 1.368)
Capítulo I – Da Posse e Sua Classificação
(Art. 1.196 a 1.203)digitadorvargas@outlook.com

Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.

Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.

Bem responsável o comentário de Francisco Eduardo Loureiro quanto à redação do CC 1.201 ao mencionar a expressão da boa-fé comportar dois significados distintos no Código Civil de 2002, de modo que, para evitar equívocos, deve vir acompanhada dos designativos “objetiva” ou “subjetiva”. A boa-fé objetiva, prevista como cláusula geral nos CC 113 e CC 422 do Código Civil de 2002, é uma norma de conduta, consistente num padrão mínimo de comportamento ético e leal, de modo a não defraudar a confiança, as justas expectativas que os atos e negócios jurídicos despertam na contraparte. É a boa-fé princípio.

A boa-fé subjetiva, ou crença, é um estado de ignorância dos vícios que atingem determinada situação jurídica. No caso específico da posse, é a ignorância dos vícios ou dos obstáculos impeditivos à aquisição da coisa. Vê-se que a figura é concebida de modo negativo, como ignorância e não como convicção. Má-fé tem aquele que conhece tais obstáculos, aquele que tem a consciência da ilegitimidade de seu direito. Boa-fé tem aquele que desconhece, que ignora a origem ilícita da posse.

Discute-se, sobre a caracterização da boa-fé subjetiva, se basta a ignorância do vício (concepção psicológica), ou, em vez disso, é exigível que o estado de ignorância seja desculpável (concepção ética). O melhor entendimento, até para evitar que a pessoa mais previdente sofra as consequências negativas de conhecer aquilo que ignora o relapso, é que somente o erro escusável é compatível com a boa-fé. Vê-se, portanto, que a boa-fé está intimamente ligada à causa de possuir, ao título em razão do qual se possui. Está assentada no desconhecimento do vício que existe no título, quer quanto à sua substância, quer quanto à sua forma.

Pressuposto lógico para a configuração da má-fé é a consciência da existência de vícios. Logo, a posse justa é sempre posse de boa-fé, na ausência de vícios a serem conhecidos. A posse injusta é que pode ser de boa ou de má-fé, dependendo da soma dos vícios objetivo e subjetivo. Nosso direito adotou o sistema canônico, de modo que não basta a boa-fé no momento da aquisição da posse, mas se exige a continuidade de tal qualidade. No exato momento em que cessa a boa-fé, porque o possuidor passa a conhecer o vício que afeta a sua posse, ces­sam ex nunc os efeitos benéficos da situação anterior, tais como a percepção de frutos, a indenização por benfeitorias ou o direito de retenção. A má-fé superveniente, porém, não tem o condão de afetar as vantagens pretéritas hauridas quando ainda se ignorava o vício, que continuam a regular-se pelas regras da posse de boa-fé.

De igual modo, a usucapião ordinária (CC 1.242) exige boa-fé do possuidor durante todo o lapso temporal necessário para a aquisição do domínio. Não se contenta o legislador, portanto, apenas com a boa-fé inicial, mas deve esta persistir até a consumação da prescrição aquisitiva. O único efeito que escapa à regra da persistência da boa-fé é aquele previsto no CC 1.211, qual seja, que o possuidor que desconhecia a origem ilícita da posse no momento de sua aquisição não está sujeito à ação possessória, mas somente à petitória. O Código Civil de 2002 eliminou a expressão final do art. 490 do Código anterior, que aludia a obstáculo impeditivo da aquisição do “direito possuído”, reforçando, mais uma vez, a ideia de que o direito pode gerar posse, mas a posse não tem por objeto direitos, mas coisas.

O parágrafo único deste artigo cria presunção relativa de boa-fé para o possuidor com justo título. É relativa porque pode ser destruída por prova, a cargo de quem pretende retomar a coisa, de que o possuidor, apesar de munido de justo título, conhecia os vícios de sua posse, ou, então, quando a própria lei não admitir a presunção. O termo justo título não é unívoco no Código Civil. Para efeito do dispositivo em exame, é uma causa jurídica que justifica a posse, é a sua razão eficiente. Pode ser justo título, por exemplo, tanto um compromisso de compra e venda como um contrato de locação, ou de comodato, ainda que verbal. Basta que a relação jurídica dê causa legítima à posse.

Note-se que para efeito de usucapião ordinário, como veremos adiante no comentário ao CC 1.242, a expressão justo título tem outro significado, qual seja o título potencialmente hábil para transmissão da propriedade, mas que não o faz pela existência de vício substancial ou formal. Vê-se, portanto, que o comodatário e o locatário têm justo título para efeito de presunção e boa-fé, mas não para gerar usucapião ordinária. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.148-49. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 08/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Segundo Ricardo Fiuza em sua Doutrina, considerando-se os contornos legais estabelecidos, a boa-fé significa o estado de subjetividade (animus) em que se encontra o possuidor, correspondente ao desconhecimento de qualquer dos vícios (violência, clandestinidade ou precariedade) ou obstáculos (permissão ou tolerância), impeditivos à aquisição da posse. Esse desconhecimento em ofender o direito alheio exclui a possibilidade de culpa grave, aqui considerada no sentido de erro inescusável ou grosseira ignorância. 

Tendo-se em conta que a posse justa respeita à inexistência de vício objetivo (causa possessionis = origem ou título da posse), a posse de boa-fé tem pertinência à ausência de defeito subjetivo (desconhecimento da relação viciosa antecedente). Justo título há de ser compreendido, antes de mais nada, desvinculado da ideia de “documento”, tendo-se em conta que posse é situação pertencente ao mundo fático, desvinculada, portanto, do mundo jurídico. Assim, a concepção de justo título deve estar ligada àquela de causa ou modo de aquisição eficiente da posse (causa possessionis). Todavia, isso não significa que não possa estar representado por um “título” (documento) — escritura publica ou particular. Da mesma forma, não se deve confundir justo título com título legítimo; o primeiro não é título hábil à transferência da posse ou propriedade, revestindo-se de simples aparência de título legítimo, ou seja, é o titulo que seria apto à transferência da posse, mas não que de fato o seja. Diverso é o título legítimo, que se reveste de todos os requisitos objetivos (formais) e subjetivos capazes de resultar na efetiva transferência da posse. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 619, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 08/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Atente-se para a lição de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira: (1) a conduta proba e reta do agente diante dos atos jurídicos, em geral, é uma regra principiológica, consagrada pelo Direito, explicitada pela boa-fé objetiva. (2) Já a boa-fé no estudo da posse tem uma perspectiva particular, de caráter subjetivo, pois a sua existência faz gerar consequências específicas e vantajosas ao possuidor. A boa-fé observada na posse é tida, então, como subjetiva. (3) É considerada de má-fé a posse daquele que tem ciência da ilegitimidade de seu direito, ou seja, daquele que adquire a posse com plena noção de que o faz mediante alguns dos vícios que a maculam, conhecendo os obstáculos à sua justa ocupação. (4) Ato inverso, o Código Civil conceitua, no CC 1.201, a posse de boa-fé quando o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa. Melhor dizendo, age de boa-fé aquele que tem a convicção de que procede na conformidade das normas (Mário, 2004, p. 30). (5) A boa-fé deve existir desde o momento em que se originou a posse, devendo assim manter-se enquanto ela perdura, até quando ficar demonstrado com o possuidor não mais ignorar a existência de obstáculos, como reza o CC 1.202. (6) Assim, se alguém, sem o saber, celebra contrato de compra e venda com determinada pessoa que não seja seu verdadeiro titular, dela recebendo a posse, considera-se esta como de boa-fé (Ulhoa, 2006, p. 22). (7) Por outro ângulo, o possuidor que tenha justo título tem em seu favor a presunção de boa-fé. (8) Justo título é aquele documento hábil, em tese, para transferir a propriedade, como o compromisso de compra e venda. Assim, portando o possuidor um título justo, será havido como possuidor de boa-fé, ficando dispensado de qualquer prova, cabendo à parte contrária, isto sim, demonstrar os vícios porventura existentes (Fulgêncio, 1994, p. 41). Trata-se, pois, de uma presunção relativa, ou juris tantum. (9) Caso o possuidor venha a adquirir um imóvel por escritura devidamente registrada, sendo, posteriormente, anulado o registro imobiliário por sentença judicial, por ser outro o verdadeiro titular do bem (venda a non domino), a posse deste adquirente deve ser tida de boa-fé, dada a existência de seu justo título. (10) Justo título é aquele que seria hábil, em tese, para transmitir o domínio e a posse – aptidão externa do título – caso não houvesse um obstáculo ou vício impeditivo desta transferência, como no caso de venda de pessoa que se verifica, posteriormente, ser incapaz, sem assistência ou representação. (11) Por fim, é aquele documento teoricamente apto para transferir o domínio, mas que, no caso concreto, não foi capaz de gerar tal transferência, por elementos ignorados pelo adquirente, frustrando-se, destarte, a aquisição definitiva. (12) Enunciado 303 do Conselho da Justiça Federal: “Considera-se justo título para presunção relativa de boa-fé do possuidor o justo motivo que lhe autoriza a aquisição derivada da posse, esteja ou não materializado em instrumento público ou particular. Compreensão na perspectiva da função social da posse”. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 08.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 1.202. A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente.

Na posição de Francisco Eduardo Loureiro, a boa-fé é a ignorância do vício que macula a posse. É um estado de espírito do possuidor, um elemento interior, cuja prova nem sempre é fácil. Por isso, o legislador preocupa-se com os sinais, as evidências e presunções de boa-fé. Vimos no comentário ao parágrafo único do CC 1.201 que o possuidor com justo título tem a seu favor a presunção relativa de boa-fé. O justo título, porém, não é requisito para a posse de boa-fé. O desconhecimento do vício funda-se, via de regra, em um erro de fato ou de direito. Se há uma razão jurídica que justifique a posse, o erro, a princípio, será escusável, nascendo daí a presunção relativa de boa-fé.

 Não havendo justo título, ainda assim cabe ao retomante demonstrar a má-fé do possuidor. Essa prova, porém, torna-se mais fácil, decorrente, segundo a dicção do artigo em exame, das circunstâncias indicativas do conhecimento do vício pelo possuidor. Quais são essas circunstâncias? Clóvis Bevilaqua dá vários exemplos, como a confissão do possuidor de que nunca teve título, nulidade manifesta do título e existência de instrumentos repugnantes à legitimidade da posse em poder do possuidor.

A posse de boa-fé pode transmudar-se em posse de má-fé, tendo como marco o momento em que as circunstâncias do caso concreto indiquem o conhecimento dos vícios. Constituem marcos dessa mudança em especial a citação cm processo judicial ou notificação formal ao possuidor, quer judicial, quer extrajudicial. Nada impede, porém, que se faça, ainda que por testemunhas, prova de que conhecia o possuidor os vícios que afetavam a sua posse.

Questão interessante é saber se a citação em ação judicial movida pelo retomante contra o possuidor implica necessariamente a posse de má-fé. Via de regra sim, porque será, na pior das hipóteses, o marco da ciência dos vícios que afetam a situação jurídica. Em casos especiais, nos quais houver fundada dúvida sobre a legitimidade da posse, pode a boa-fé persistir após a citação. Basta que o possuidor, apesar de ciente do pleito judicial, confie na qualidade de sua posse, não admitindo, por sólidas razões, os argumentos do retomante. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.148-49. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 08/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Historicamente, o dispositivo em tela não foi alvo de qualquer espécie de alteração, seja por parte do Senado Federal, seja por parte da Câmara dos Deputados , no período final de tramitação do projeto. A redação atual é a mesma do Anteprojeto, cujo Livro III, referente ao Direito das Coisas, ficou à cargo do eminente jurista Ebert Vianna Chanoun.  O dispositivo encontra o seu correspondente no Art. 491 do CC de 1916.

Na doutrina de Ricardo Fiuza, várias são as circunstâncias que fazem presumir o desaparecimento da boa-fé: segundo Beviláqua, as principais são as seguintes: a) confissão do possuidor de que não tem nem nunca teve título; b) nulidade manifesta do título; c) existência de instrumentos repugnantes à legitimidade da posse, em poder do possuidor (Direito das coisas, 5. ed., Rio de Janeiro, Forense, v. 1, p. 45); d) contestação da demanda (cf. Carvalho Santos, CC interpretado, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1979, v. VII, p. 49-50; e Washington de Barros Monteiro, Curso de direito civil, São Paulo, Saraiva, 1979, v. VIII); e) citação judicial (sem perder de vista a observação feita por Lafayette Pereira no sentido de que o réu pode receber a comunicação e julgá-la infundada na crença — boa-fé — de que o bem lhe pertence (cf. Direito das coisas, São Paulo, Freitas Bastos, 1943, v. 1).

Os efeitos práticos dessa questão concernem às benfeitorias, frutos, direito de retenção e prescrição aquisitiva. Para que os efeitos revertam positivamente em prol do possuidor, faz-se mister que a posse seja adquirida com boa-fé e que essa circunstância perdure durante todo o tempo. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 620, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 08/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Pela cartilha de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, (1) Muito embora possa ter adquirido a posse sem conhecimento de vícios ou obstáculos, fato é que perderá a boa-fé aquele possuidor que tomar conhecimento, posteriormente, da existência de circunstâncias impeditivas de seu direito à aquisição do bem. (2) De fato, transforma-se em má-fé aquela posse na qual o possuidor, por alguma circunstância apurável, toma conhecimento de obstáculos à sua livre aquisição. É a denominada mudança jurídica ao caráter da posse, adotada em nosso sistema em homenagem ao direito canônico, que exige que a boa-fé durante todo o tempo, para que a posse se configure como justa. (3) Há alguma dificuldade para se determinar, com precisão, o momento da transformação do caráter da posse, e isso se dá, em verdade, não no momento em que o possuidor passa a ter conhecimento do vício ou obstáculo, mas sim quando as circunstâncias façam presumir que o possuidor não mais ignora tais impeditivos. São, pois, circunstâncias objetivas que irão esclarecer tal transformação (Gomes, 1980, p. 43). (4) Efetivamente, quando o possuidor for citado judicialmente, na condição de réu, em sede de ação possessória ou reivindicatória, por parte do legítimo possuidor ou proprietário, restará caracterizado, a partir daí, o fim da condição de possuidor de boa-fé, adquirindo plena ciência de obstáculos à sua posse. São elementos objetivos que fazem gerar uma presunção de que o atual possuidor tem plena ciência de que outra pessoa é o titular do bem do qual se apossou. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 08.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 1.203. Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida.

Como comentado anteriormente por Francisco Eduardo Loureiro, possível é a alteração do caráter da posse, mediante conversão da posse de boa-fé em posse de má-fé, ou vice-versa, bem como da posse justa em posse injusta, ou vice-versa. A questão é como se opera essa alteração. Diz textualmente o artigo em exame que se presume manter a posse o mesmo caráter original. Via de consequência, aquele que alegar a alteração das qualidades positivas e negativas da posse tem a seu cargo o ônus de demonstrá-la. A presunção, como se extrai do preceito, é relativa, comportando, portanto, prova em sentido contrário.

É sabido que, segundo antigo preceito, netno sibi ipse causam possessionis (ninguém pode mudar por si mesmo a causa da posse). O termo causa da posse é usado aqui em sentido lato, abrangendo também a figura da detenção. Dizendo de outro modo, não basta o elemento anímico, interior, psicológico, para mudar o caráter da posse, escoimando-a de eventuais vícios de origem, quer subjetivos, quer objetivos, ou, então, alterar a detenção para posse. Dizia Ihering que a vontade é sem força diante da causa da posse.

Importante lembrar que causa da posse, aqui, não é somente o seu motivo jurídico, mas também o seu modo de estabelecimento, previsto pelo direito. É por isso que até mesmo a posse injusta tem uma causa, embora ilícita. As principais características da posse, que a dividem em classificações diversas - justa/injusta, de boa-fé/má-fé, ad interdicta/ad usucapionem, direta/indireta -, têm estreita relação com a causa pela qual se possui, quer jurídica, quer pelo modo de estabelecimento. É por isso que, para alterar tais características, é necessário, como pressuposto lógico, alterar também a causa, a razão pela qual se possui. Vem daí a regra preconizada por Astolpho Rezende segundo a qual, “em matéria possessória, a vontade do possuidor é sem valor em frente da regra objetiva de direito” (A posse e sua proteção, 2. ed. São Paulo, Lejus, 2000, p. 263). Essa alteração da causa pode dar-se como decorrência de uma relação jurídica ou por mudança ostensiva do comportamento fático do possuidor.

Como alteração decorrente de causa jurídica, tome-se como exemplo o caso do possuidor violento ou precarista que adquire a coisa ou a recebe em comodato, convertendo a posse injusta em justa. No mesmo exemplo, se a posse era além de injusta também de má-fé, será agora justa e de boa-fé, em razão da falta de vícios a ser conhecidos. De igual modo, o locatário que tinha apenas posse direta e adquire a coisa passa a ter posse plena, uma vez que concentra em suas mãos todos os poderes típicos do proprietário, desaparecendo o dever de restituição da coisa ao antigo possuidor indireto. Note-se que a face exterior da posse permanece a mesma, já que o possuidor continua com o poder imediato sobre a coisa. O que mudou foi a razão pela qual possui, retirando da posse determinadas qualidades negativas, ou limitações, e fazendo nascer qualidades positivas, ou alargando os poderes sobre a coisa. Desapareceu a razão determinante para a caracterização do esbulho, qual seja a aquisição da posse contra a vontade do ex-possuidor.

Como decorrência do comportamento objetivo do possuidor, na lição de Nelson Rosenvald, a alteração se dá desde que haja manifestação por “atos exteriores e prolongados do possuidor da inequívoca disposição de privar o proprietário da coisa” (Direitos reais, 2. ed. Niterói, Impetus, 2003, p. 246). Na verdade, a mudança do comportamento fático não é suficiente para alterar todos os caracteres da posse, mas somente alguns. A mudança de comportamento, assim, não converte a posse injusta em justa. Enquanto perdurarem a violência e a clandestinidade, nem posse haverá, mas mera detenção. Quando cessar a violência e a clandestinidade (ver comentário ao CC 1.208) iniciar-se-á a posse injusta, que não se converte em justa somente pelo fato de a pacificidade ou a publicidade persistirem. No caso, a alteração do comportamento tem apenas o condão de transformar detenção em posse injusta, mas não é suficiente para retirar da posse o vício original. De igual modo, a posse precária não deixa de sê-lo pela simples mudança de comportamento do precarista, ainda que deixe de reconhecer a sua condição de comodatário ou de locatário, por exemplo. Basta lembrar que o esbulhado pode, ocorrendo tal fato, pedir a retomada judicial da coisa, prova maior de que permanece a posse injusta. Confira-se, a respeito, o Enunciado n. 237 da III Jornada de Direito Civil 2004: “Art. 1.203: É cabível a modificação do título da posse - interversio possessionis - na hipótese em que o até então possuidor direto demonstrar ato exterior e inequívoco de oposição ao antigo possuidor indireto, tendo por efeito a caracterização do animus domini'.

A relevância da mudança fática do comportamento do possuidor reflete-se apenas nos caracteres da posse de ad interdicta para ad usucapionem. Assim, aquele que deixa de praticar atos violentos ou torna a posse pública, tirando-a da clandestinidade, mantém os vícios de origem, que não podem ser apagados pela conduta posterior do possuidor, mas gera, apesar disso, posse útil para usucapião, desde que preenchidos os demais requisitos previstos em lei (prazo, continuidade, ânimo de dono etc.). A reação do esbulhado é possível, mas, se não o fizer em determinado prazo, perderá o domínio por usucapião.

No que se refere à posse precária, embora a doutrina tradicional insista na posição de que o vício não convalesce, a questão está na verdade deslocada. A posse realmente continua precária, porque o vício não se apaga, tanto que o esbulhado pode retomar a coisa. Apesar de precária, desde que ocorram circunstâncias especialíssimas, entre as quais que o precarista não mais reconheça a supremacia do direito do esbulhado, deixando isso claro e inequívoco, a posse poderá converter-se de meramente ad interdicta em ad usucapionem. O que mudou com o comportamento de fato do possuidor não foi a origem ilícita da posse, mas o animus. Apesar de continuar injusta, se o possuidor não mais reconhece a superioridade do direito do esbulhado de reaver a coisa, o que mudou com o novo comportamento foi o nascimento do animus domini, requisito que faltava para iniciar o prazo útil de usucapião. Remete-se o leitor ao que já se expôs na parte final do comentário ao CC 1.200, assim como ao que se explanará no comentário ao CC 1.208, adiante. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.159-60. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 08/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Em sua doutrina, Ricardo Fiuza circunstancia limitadamente a presença legal “salvo prova em contrário” – presunção Juris tantum é no sentido de que se violenta a posse, assim haverá de ser mantida indefinidamente; se adquirida com má-fé, igualmente. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 620, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 08/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Tampouco estendendo-se Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, (1) Não há contradição entre o disposto nos CC 1.208 e CC 1.203, pois esse dispositivo traz em si uma presunção relativa, que poderá ceder na existência de prova em contrário, ou seja, alguns vícios de posse podem vir a cessar, desde que presente uma circunstância que a justifique.

Apresentando-se o Enunciado 237 do Conselho da Justiça Federal: “É cabível a modificação do título de posse – interversio possessionis – na hipótese em que o até então possuidor direto demonstrar ato exterior e inequívoco de oposição ao antigo possuidor indireto, tendo por efeito a caracterização do animus domini”. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 08.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Direito Civil Comentado - Art. 1.200 - continua Do Direito das Coisas - VARGAS, Paulo S. R.


Direito Civil Comentado - Art. 1.200 - continua
Do Direito das Coisas - VARGAS, Paulo S. R.
- Livro III – Título I – Da Posse (Art. 1.196 ao 1.368)
Capítulo I – Da Posse e Sua Classificação
(Art. 1.196 a 1.203)digitadorvargas@outlook.com

Art. 1.200. É justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária.

Atenção para a fundamentação de Francisco Eduardo Loureiro: A posse é justa quando não marcada pelos vícios da violência, clandestinidade e precariedade. É injusta, por exclusão, quando presentes quaisquer dos vícios acima citados. O Código Civil, seguindo a trilha do CC/1916, cataloga os vícios da posse, o que causa situações desconfortáveis ao intérprete. Melhor seria se seguisse o sistema alemão, para o qual a posse será viciada sempre que adquirida contra a vontade do possuidor, ressalvados os casos em que a lei autoriza o desapossamento (§ 858 do BGB - Código Civil Alemão). A jurisprudência, sentindo a dificuldade de lidar com a enumeração dos vícios da posse, alarga as hipóteses, para chegar ao resultado prático preconizado por Marcus Vinicius Rios Gonçalves, qual seja, a posse, para o sistema brasileiro, é viciosa desde que obtida por esbulho, contra a vontade do possuidor anterior, por meios ilícitos, ainda que não se consiga a priori enquadrá-la em nenhuma das situações previstas no CC 1.200 do Código Civil (Gonçalves, Marcus Vinicius Rios. Dos vícios da posse. São Paulo, Oliveira Mendes, 1998, p. 50).

Causa possessionis: O que importa, para a caracterização dos vícios, é a razão, a forma de aquisição da posse (causa possessionis). A posse pode ter sido obtida de modo lícito ou ilícito. Quando adquirida por meio objetivo reprovado pelo direito, é posse viciada. Posse justa, portanto, é aquela cuja aquisição não repugna ao direito. Nada impede, porém, que uma posse nascida justa se converta em injusta, especialmente no que se refere ao vício da precariedade. De outro lado, como veremos adiante, a posse nascida injusta somente se converterá em justa se alterada a sua causa possessionis.

Os vícios da posse: A posse é violenta (vi) quando se adquire por ato de força, natural ou física (vis absoluta), ou ameaça (vis compulsiva). A violência física supõe a ausência de vontade daquele que foi usurpado. A ameaça, ou violência moral, deve ser séria e injusta, de modo que o usurpado entrega a coisa para não sofrer o mal prometido. Consequência disso é que não constituem atos de violência o exercício regular de um direito ou mesmo o temor reverenciai. Não pratica ato violento, por exemplo, aquele credor que, avisando o devedor que remeterá o título a protesto, ou ajuizará ação de cobrança, recebe dação em pagamento, com transferência da posse da coisa adquirida.

Questão difícil é saber se a posse adquirida por ameaça, para ser considerada injusta, exige prévia ação anulatória do ato por vício de consentimento (coação) ou, cm vez disso, admite o imediato ajuizamento de ação possessória para recuperar a coisa. O entendimento mais plausível é que, se a entrega da coisa não transmitiu também a propriedade, ou seja, se não se trata de execução de negócio jurídico que envolva a transmissão de domínio, cabe desde logo a ação possessória. Se, ao contrário, a entrega envolveu a transmissão da posse e do domínio, deve ser previamente desfeito o negócio jurídico, com pedido cumulativo de devolução da coisa alienada.

A violência estigmatiza a posse, ainda que exercida contra preposto do legítimo possuidor (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, 18. ed., atualizada por Carlos Edison Rego Monteiro Filho. Rio de Janeiro, Forense, 2002, v. IV, p. 23). A violência, para marcar a posse como injusta, deve ser praticada contra a pessoa do possuidor ou também contra a coisa? Embora haja controvérsia a respeito, é razoável que também a violência contra a coisa estigmatize a posse, ciado o seu caráter ilícito. À posse violenta se contrapõe a posse mansa e pacífica, ou tranquila, não só durante a aquisição como também durante a sua persistência, matéria que terá relevância para a usucapião. É claro que a resistência do possuidor legítimo à eventual turbação, ou esbulho, não torna injusta a posse. Nesse caso, a autotutela do possuidor molestado é lícita, amparada pelo CC 1.210, § Iº.

A posse é clandestina (clam) quando se adquire via processo de ocultamento em relação àquele contra quem é praticado o apossamento (Pereira, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 23). É um defeito relativo: oculta-se da pessoa que tem interesse em retomar a posse, embora possa ser ela pública para os demais. Na violência, retira-se o poder de reação do possuidor, que conhece a agressão à sua posse. Na clandestinidade, o possuidor não percebe a violação de seu direito, e por isso não pode reagir. Questão relevante é saber se para cessar a clandestinidade deve o esbulhado ter ciência inequívoca de que a coisa acha-se nas mãos do possuidor injusto ou, em vez disso, basta que o novo possuidor não mais oculte sua conduta. O melhor entendimento é que não há necessidade de que a vítima tenha efetivo conhecimento do esbulho, mas que o esbulhador torne possível à vítima conhecê-lo (Pinto, Nelson Luiz. Ação de usucapião. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1987, p. 107-8). Torna-se pública a posse quando nasce para a vítima a possibilidade de conhecer o esbulho.

É fundamental lembrar que, nos exatos termos do CC 1.208, não autorizam a aquisição da posse os atos violentos e clandestinos, enquanto perdurar a violência e a clandestinidade. Enquanto perduram os ilícitos, há mera detenção. Somente quando cessam é que nasce posse, mas injusta, porque a sua origem é ilícita. A matéria será mais bem abordada adiante, no comentário ao CC 1.208.

E precária (precário) a posse quando o possuidor recebe a coisa com a obrigação de restituí-la e, abusando da confiança, deixa de devolvê-la ao proprietário, ou possuidor legítimo. O vício inicia-se no momento em que o possuidor se recusa a devolver o bem a quem de direito. A posse, que era justa, torna-se injusta. Torna-se injusta não porque mudou somente o animus do possuidor, mas porque mudou a causa, a razão pela qual se possui. Tome-se como exemplo o comodato. A posse é justa durante o prazo convencionado, porque há uma razão jurídica que justifique a posse, vale dizer que a sua causa é lícita. Expirado o prazo convencional, a posse que era justa torna-se injusta, porque houve quebra do dever de restituição, desapareceu a razão jurídica que amparava a posse e praticou o possuidor, agora precário, ato ilícito contra o ex possuidor.

Via de regra, a posse precária nasce da posse direta, no momento em que há quebra do dever de devolução da coisa. A posse direta não é precária, porque a sua causa é lícita, entregue que foi pelo possuidor indireto. Enganam-se, assim, aqueles que dizem que as posses do locatário, ou do comodatário, ou do credor pignoratício são precárias. Na verdade, são posses diretas e justas, que se tornarão precárias no exato momento em que houver quebra do dever de restituir.

A relatividade dos vícios: Os vícios da posse são relativos. A posse é injusta em relação àquele de quem foi havida por meio ilícito. Em relação a terceiros a posse é justa, pela simples razão de que, contra eles, nenhum ato ilícito se praticou. Dizendo de outro modo, os vícios da posse só podem ser arguidos pela vítima, a quem cabe a faculdade de reaver a coisa pela autotutela ou pelos interditos possessórios. Não fosse assim, aquele que obteve a posse pela violência poderia ter a coisa tomada por terceiros pelo mesmo modo, em verdadeira propagação de ilícitos, o que repugna a ordem jurídica.

A purgação dos vícios: No que se refere à temporariedade ou perpetuidade dos vícios, a doutrina tradicional diz que a clandestinidade e a violência são temporários, mas o vício da precariedade nunca convalesce (Rodrigues, Sílvio. Direito civil, 27. ed. São Paulo, Saraiva, 2003, v. V, p. 29). Há nessa posição um erro de perspectiva. Como foi visto acima, enquanto perduram a violência e a clandestinidade, nem posse existe, mas mera detenção. Quando cessam é que nasce a posse injusta. A posse injusta somente se converte em justa se se mudar o que ela tem de ilícito, ou seja, a sua causa. Logo, somente com a inversão da causa possessionis, da razão pela qual se possui, é possível a conversão da posse injusta em justa, porque se retira a ilicitude de sua origem. Tome-se como exemplo o caso do possuidor clandestino, violento ou precário que consegue com a vítima um prazo para a desocupação da coisa, mediante contrato de comodato. A posse que era injusta converteu-se em justa, porque mudou a sua causa.

O que gera confusão na doutrina e na jurisprudência são os efeitos da posse injusta. Causa espécie que a posse injusta possa gerar benefícios a quem praticou um ato ilícito. A mácula dos vícios, na verdade, acarreta ao esbulhador uma consequência negativa fundamental: a possibilidade de perder a coisa para o esbulhado, que pode retomá-la pela autotutela ou usando os interditos possessórios. Gera, porem, a posse injusta efeitos positivos para o possuidor, como a tutela possessória perante terceiros ou mesmo em decorrência de um ato ilícito da vítima, para evitar a disseminação de novos atos ilícitos. Se o possuidor estiver de boa-fé, sua posse, apesar de viciada, gerará inúmeros outros efeitos em relação ao esbulhado, como indenização por benfeitorias, ou percepção de frutos.

Questão a ser enfrentada é se a posse injusta pode ser ad usucapionem. Alguns autores dizem que a posse deve convalescer, ou ter purgados os vícios, para gerar usucapião. Não é bem assim. As posses violenta e clandestina, na verdade, somente nascem quando cessam os ilícitos. Enquanto perduram, são simples detenção. O que se exige é que durante o prazo necessário à usucapião não haja atos violentos ou clandestinos, embora a posse seja injusta, porque a sua causa original é ilícita. Prova intuitiva e maior disso é que, se alguém invadir com violência uma gleba de terras e, cessada a reação do esbulhado, permanecer por mais quinze anos sem ser molestado, terá usucapião, apesar da injustiça original de sua posse.

Diz-se que a posse precária nunca gera usucapião. Na verdade, é ela imprestável para usucapião não porque é injusta, mas porque o precarista não tem animus domini, uma vez que reconhece a supremacia e o melhor direito de terceiro sobre a coisa. Caso, porém, não reconheça ou deixe de reconhecer essa posição e revele isso de modo inequívoco e claro ao titular do domínio, para que este possa reagir e retomar a coisa, nasce, nesse momento, o prazo para usucapião, porque o requisito do animus domini estará então presente. Na lição de Lenine Nequete, há uma inversão da causa da posse, “mas os fatos de oposição, por seu turno, devem ser tais que não deixem dúvida quanto à vontade do possuidor de transmudar a sua posse precária em posse a título de proprietário e quanto à ciência que dessa inversão tenha tido o proprietário: pois que a mera falta de pagamento de locativos ou outras circunstâncias semelhantes das quais o proprietário não possa concluir claramente a intenção de se inverter o título não constituem atos de contradição eficazes” (Da prescrição aquisitiva, 3. ed. Porto Alegre, Ajuris, p. 123). Lembre-se de que o CC 1.238, que trata da usucapião extraordinário, não exige posse justa e dispensa expressamente a boa-fé. A alusão à falta de boa-fé só tem sentido se a posse for injusta, porque a boa-fé nada mais é do que a ignorância dos vícios que maculam a posse.

Presume-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida, salvo prova em contrário (CC 1.203). Pode ser convertida a posse injusta em justa e vice-versa, mediante a interferência de uma causa diversa, mas o ônus dessa inversão cabe ao possuidor. A só vontade do possuidor, porém, não altera o caráter viciado da posse. Há necessidade de inversão do título, com alteração do fundamento jurídico, ou ato manifesto de contradição, como visto acima. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.144-47. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 04/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Há um histórico que diz: O dispositivo em tela não foi atingido por qualquer espécie de modificação, seja da parte do Senado Federal, seja da parte da Câmara dos Deputados, no período final de tramitação do projeto. A redação atual é a mesma do anteprojeto. Idêntica à redação conferida ao art. 489 do CC de 1916.

Fatiada, a Doutrina de Ricardo Fiuza mostra que o conceito de posse justa (ou injusta) não se confunde com aquele definido no CC 1.228 do NCC (Art. 524 do CC de 1916). Em sede possessória, a concepção de injustiça ou justiça da posse restringe-se aos três vícios que a maculam (stricto sensu), enquanto, no que concerne à propriedade, a expressão é empregada para designar todas a situações (e não apenas aqueles vícios) que repugnam ao mais amplo direito real.

São as circunstancias do mundo fático, definidas nesse dispositivo, que maculam a aquisição da posse, tornando-a injusta e mantendo-a com essas mesmas características, indefinidamente, salvo prova em contrário.

Caracteriza-se o vício por ser inerente ao momento da aquisição da posse em relação ao novo titular. Assim, a posse pode ser viciosa por motivos objetivas (em consequência do fato que lhe deu origem), ou subjetivos (em face do conhecimento da mácula).

Posse injusta não se confunde jamais com má-fé.

Violência é a maneira de consecução o do ato espoliativo mediante constrangimento físico ou moral praticado contra o possuidor ou contra quem possui em nome dele. Configura-se pela utilização da força física (armada ou não), ou por intermédio da vis compulsiva. Prescinde de confronto material ou tumulto entre as partes conflitantes (possuidor e esbulhador.

Clandestinidade - o vício que se manifesta pela ocultação do ato espoliativo, de forma que o possuidor não tenha conhecimento dele. Não é suficiente o desconhecimento do ato, fazendo-se necessário que a posse tenha sido tomada às escondidas e com emprego de manobras tendentes a deixar o possuidor em determinada posição de efetivo não conhecimento do esbulho. Assim, se o esbulhador não agiu ocultamente, em que pese o possuidor desconhecer a prática do ato por qualquer motivo, o vício da clandestinidade, neste caso, não se configura.

Precariedade configura-se como vício da posse, nas relações em que o sujeito tem consigo, anteriormente, um bem a título precário e recusa-se a devolvê-lo ao legítimo possuidor, quando requerido ou chegando o momento oportuno. Resulta de um abuso de confiança por parte daquele que previamente recebera a coisa do possuidor, assumindo o compromisso (tácito ou expresso) de restituí-la em certo momento, ou quando se verificasse determinada condição ou termo. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 618-19, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 04/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Totalmente esclarecedora a versão do CC 1.200 no conceito de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, destrinchando cada item do artigo em comento, veja:

Posse justa é aquela que não for violenta, clandestina ou precária, i. é, para definir o que seja posse justa, o legislador abordou os principais vícios que maculam a posse, que não poderão subsistir (nec vim, nec clam, nec precário). Assim, será justa a posse que for obtida de forma mansa e pacífica, ou seja, de forma normal.

Posse violenta é aquela obtida mediante o emprego da força, utilizando-se da força física direta, ou mediante séria ameaça à vida do possuidor ou de sua família, pela utilização de arma de fogo ou outro meio hábil, assim como a ruptura de obstáculos. A lei não faz distinção entre a violência física ou moral. Trata-se, assim, de ato praticado que impede o poder físico do possuidor sobre a coisa.

Posse clandestina é a obtida às escondidas daquele que antes a detinha e continuará como clandestina enquanto for desconhecida do verdadeiro titular. Trata-se de uma situação oposta à publicidade, pois que obtida longe das vistas alheias, com emprego de manobras capazes de deixar o antigo possuidor em situação de absoluta ignorância.

A posse clandestina é considerada como um vício relativo, pois que se oculta, apenas, da pessoa que tem interesse em defender a coisa diretamente, mesmo que seja pública em relação às demais pessoas. Tanto a violência quanto a clandestinidade são tidas como vícios relativos, que somente podem ser acusadas pela própria vítima; em relação às demais pessoas, a posse produz seus efeitos normais (Mário, 2004, p. 28-29).

Posse precária é a que se origina no abuso de confiança, como na hipótese de alguém receber determinada coisa mediante a condição de restituição, com prazo determinado ou não, acabando por recusar-se a devolver o bem. É o que sucede no caso de fâmulo na posse (detenção), que tem o dever de restituir a coisa quando demandada pelo verdadeiro titular.

Tal vício, consistente no abuso de confiança, tem início no momento exato em que o possuidor a título precário se recusa a restituir o bem àquele que o detinha anteriormente, e prossegue sem termo certo para findar, ou seja, até que se restabeleça o status quo ante, pela efetiva restituição. Aqui não há, necessariamente, violência, e tampouco vinculação automática com a clandestinidade.

Na hipótese de posse injusta, o possuidor não poderá utilizar-se dos interditos possessórios contra aquele que a detinha anteriormente, mas tão-somente contra terceiros, estranhos à relação. Isto porque a violência e a clandestinidade são vícios relativos, que se projetam somente em relação à pessoa vitimada pelo ato; em relação às demais pessoas, aquela posse é tida como justa. Nada impede que uma posse, tida inicialmente por injusta, possa vir, posteriormente, a se tornar uma posse justa, ou jurídica, mediante uma causa posterior, como no caso daquele que a tomou com violência vir a comprar do antigo titular (Mário, 2004, p. 29).

Enquanto perdurar a situação de violência e da clandestinidade não haverá situação possessória (Alvim, 2003, p. 79-80). Haverá, tão-somente, detenção, conforme disposto no CC 1.208.

A precariedade difere-se da violência e da clandestinidade, quanto ao momento de sua ocorrência: estes dois vícios ocorrem no momento da aquisição da posse, ao passo que a precariedade se dá em momento posterior, quando da recusa do tomador em restituir o bem ao possuidor indireto.

A clandestinidade poderá cessar posteriormente, desde que o esbulhador não mais oculte sua posse daquele que foi esbulhado, tomando este pleno conhecimento do fato, deixando de opor qualquer resistência. Não se exige, destarte, a demonstração cabal desta circunstância, bastando que existam as condições normais para que esta tenha ciência daquela posse viciada. Idêntico raciocínio se aplica à posse violenta, a qual, independentemente do tempo decorrido, se convola em posse justa.

Com a cessação dos vícios da violência e clandestinidade, haverá a transmudação da situação de detenção para posse jurídica. O mesmo não sucede em relação à posse precária, pois se trata de uma situação única, em que o possuidor precário já tinha a posse anterior da coisa, alterando apenas o animus, transfigurando-se, pois, em posse injusta pela recusa na restituição (Gonçalves, 2006, p. 72).

Quando a posse violenta ou clandestina prorrogar-se por mais de ano e dia, o possuidor poderá ser mantido provisoriamente na posse, por força do Art. 924 do CPC/1973, (correspondendo hoje ao art. 558 caput e parágrafo único do CPC/2015), contra o antigo titular. Não há um convalescimento da posse injusta em justa, mas uma proteção provisória ao atual possuidor, em decorrência do lapso temporal.

Da mesma forma, a posse justa poderá se transmudar em posse injusta, como no caso de posse recebida por contrato (desde que não seja de locação) com a aquisição posterior de um dos vícios apontados, em face da inadimplência do possuidor (TJ-SP, Ap. Cível 31.770-4).

Não há contradição entre o disposto nos CC 1.208 e CC 1.203, pois este dispositivo traz em si uma presunção relativa, que poderá ceder na existência de prova em contrário, ou seja, alguns vícios de posse podem vir a cessar, desde que presente circunstância que a justifique.

Enunciado 302 do conselho da Justiça Federal: “Pode ser considerado justo título para a posse de boa-fé o ato jurídico capaz de transmitir a posse ad usucapionem, observado o disposto no CC 1.133”. (Até aqui Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 04.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

quinta-feira, 3 de setembro de 2020


 Direito Civil Comentado - Art. 1.197, 1.198, 1.199 - continua
Do Direito das Coisas - VARGAS, Paulo S. R.
- Livro IIITítulo I – Da Posse (Art. 1.196 ao 1.368)
Capítulo I – Da Posse e Sua Classificação
(Art. 1.196 a 1.203)digitadorvargas@outlook.com

Art. 1.197. A posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela foi havida, podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o indireto.

No entender de Francisco Eduardo Loureiro, h ouve nítida melhoria da redação do dispositivo, com a definição clara e técnica das figuras dos possuidores direto e indireto. Abandonou o legislador o sistema do antigo Código Civil que exemplificava quem eram possuidores diretos, mencionando o credor pignoratício, o locatário e o usufrutuário. É evidente que tais figuras caracterizam, mas não esgotam as possibilidades de posse direta, que pode perfeitamente vir amparada em relações jurídicas diversas, como o comodato, a alienação fiduciária, o depósito e o leasing, entre tantas outras. Como foi visto acima, o possuidor é aquele que se comporta como proprietário, de modo consciente, mantendo de fato o exercício de alguns dos poderes inerentes à propriedade. Para obter seu aproveitamento econômico, é possível tanto a utilização direta como a cessão a terceiros da coisa, vale dizer, mediante utilização indireta. Se assim age o proprietário, que usa e frui o que é seu, assim pode agir o possuidor, que tem a aparência de proprietário. Se o proprietário desdobra as condutas possíveis de aproveitamento da coisa, assim também o faz o possuidor. Na lição de Caio Mário da Silva Pereira, de tal desdobramento resulta a duplicidade excepcional da posse sobre a mesma coisa. Há dois possuidores. Um que cede o uso da coisa, chamado de possuidor indireto ou mediato. Outro que recebe o uso da coisa, por força de relação jurídica de direito real ou obrigacional, chamado de possuidor direto ou imediato (Instituições de direito civil, 18. ed., atualizada por Carlos Edison Rego Monteiro Filho. Rio de Janeiro, Forense, 2002, v. IV, p. 32-3). O possuidor indireto, embora não tenha poder físico imediato sobre a coisa, sem dominação direta, é também possuidor, porque se comporta como proprietário. As duas posses coexistem em planos diferentes, sem contradição entre si. Tomem-se como exemplos as figuras do locatário e do locador, do comodatário e do comodante, do credor e do devedor pignoratício, entre outras. Os primeiros (locatário, comodatário, credor pignoratício) têm posse direta, porque a receberam temporariamente em virtude de relação jurídica real ou pessoal. Os segundos têm posse indireta, porque a cederam. Não colidem nem se excluem as duas posses, porque se referem a poderes distintos sobre a mesma coisa. A figura da posse direta somente tem sentido na teoria objetiva de Ihering, uma vez que para Savigny e para os defensores da teoria subjetiva, a ausência de animus domini a converte em mera detenção. Se o possuidor direto tem relação jurídica com o possuidor indireto e, portanto, sabe que não pode ser dono da coisa, a relação é de mera detenção, segundo a teoria subjetiva. Os desdobramentos da posse podem ser sucessivos. Feito um primeiro desdobramento, poderá o possuidor direto reproduzi-lo, criando novas e repetidas situações de posse direta e indireta. Basta lembrar a hipótese da locação. Se o locatário, que é possuidor direto, subloca o imóvel a terceiro, teremos então dois possuidores indiretos - locador e sublocador - e um possuidor direto - sublocatário. O mesmo acontece com o usufrutuário que loca ou empresta a coisa a terceiros. Note-se que somente terá a posse direta aquele que tiver a coisa consigo, ou seja, o último integrante da cadeia. Todos os demais terão posse indireta, em gradações sucessivas (Gonçalves, Marcus Vinicius Rios. Dos vícios da posse. São Paulo, Oliveira Mendes, 1998, p. 35). Como acentua Moreira Alves, o possuidor indireto em grau mais elevado tem posição peculiar em relação aos demais, porque não reconhece e existência de posse superior à sua. Isso lhe confere o animus domini necessário ao usucapião, requisito que falta aos demais integrantes da cadeia, em grau inferior, ou ao possuidor direto, que reconhecem a supremacia de direito de terceiro quanto à coisa. Tanto o possuidor direto como o indireto podem afastar os ataques injustos de terceiros à posse, utilizando a tutela possessória e o desforço próprio. A parte final do artigo diz que pode o possuidor direto defender a sua posse contra o possuidor indireto, o que se mostra exato. Basta lembrar a hipótese, comum na periferia das grandes cidades, do locador que pretende retomar a coisa locada para uso próprio, ou por ter se escoado o prazo, ou mesmo por falta de pagamento, sem usar a ação de despejo, retirando o locatário à força, ou praticando atos turbativos, como o corte da energia elétrica ou da água corrente. Tem o locatário ação possessória contra o locador, em razão da conduta ilícita deste, que molesta a sua posse. Embora a parte final deste artigo não diga, o inverso também é possível, ou seja, pode o possuidor indireto usar a tutela possessória contra o possuidor direto. Isso porque tem o possuidor indireto o direito à restituição futura da coisa, o que, no presente, se reflete nas prerrogativas de fiscalizar e vigiar, para preservá-la e conservá-la. Se a substância da coisa for ameaçada ou estiver sendo destruída, pode o possuidor indireto usar os remédios possessórios contra o possuidor direto. Tomem-se como exemplos os casos do comodatário que está destruindo o imóvel emprestado e vendendo os materiais a terceiros, ou, então, do locatário que impede a entrada do locador no imóvel locado para vistoriar o prédio, como previsto em contrato. Diga-se que, dos enunciados aprovados na Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal no período de 11 a 13 de setembro de 2002, sob a coordenação científica do Ministro Ruy Rosado, do STJ, tirou-se a seguinte conclusão a respeito do tema: “o possuidor direto tem direito de defender a sua posse contra o indireto e este contra aquele (CC 1.197, in fine, do novo Código Civil)”. Da lição de Tupinambá Miguel Castro do Nascimento extrai-se, ainda, que a pretensão à restituição da coisa cujo uso foi cedido ao possuidor direto integra a esfera jurídica do possuidor indireto, de modo que pode ser cedida a terceiro, para que este a obtenha no momento devido (Posse e propriedade, 3. ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2003, p. 25). Disso decorre que o adquirente da coisa, que recebe a titularidade da posse indireta e se sub-roga na sua posição, pode ajuizar contra o possuidor direto ação possessória, se não houver a restituição no tempo devido. De outro lado, como alerta Ernane Fidélis dos Santos, “não há posse onde o fato não existe. Daí, a inocuidade da pretensão possessória do adquirente que recebe do proprietário, por contrato, direito e posse, quando, na verdade, não tinha este o poder fático sobre a coisa” (Comentários ao Novo Código Civil, v. XV, coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Rio de Janeiro, Forense, 2007). Não se confundem o possuidor direto e o detentor. O possuidor direto tem posse própria, enquanto o detentor (servidor da posse) não possui para si, mas em nome alheio e atendendo a ordens e instruções de terceiro. A diferença entre o possuidor direto e o detentor está na relação de subordinação. O detentor é obediente, é subordinado a terceiro, sem independência. O possuidor direto, embora receba a coisa com dever de restituir, tem relativa liberdade na sua utilização e o faz em proveito econômico próprio. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.137-38. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 03/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Historicamente, O presente dispositivo não foi objeto de emenda, quer por parte do Senado Federal, quer por parte da Câmara dos Deputados, no período final de tramitação do projeto. A redação atual é a mesma do anteprojeto.  Encontra disposição similar no CC de 1916 no art. 486.

A doutrina apresentada por Ricardo Fiuza, sem maiores dificuldades, percebe-se que o legislador deixou de acolher, nesse dispositivo, a orientação da doutrina dominante das últimas décadas, diferentemente do que fez em tantas outras passagens do NCC. Na verdade, a redação desse artigo apresenta-se bastante truncada, o que dificulta sensivelmente a sua aplicabilidade e compreensão, valendo ressaltar que problemas de ordem prática, sobretudo por se tratar de artigo de larga aplicabilidade, certamente surgirão. Por isso, apresentou-se proposta de alteração ao ilustre Relator, Deputado Ricardo Fiuza, para modificação do dispositivo, durante a vacatio legis.

Ainda, o dispositivo versa sobre os desmembramentos voluntários e classificação das posses com base nos poderes de ingerência dos titulares sobre o mesmo bem da vida, sem que sobre eles as posses se sobreponham ou se anulem (v. g. arrendante e arrendatário, locador e locatário). Em outras palavras, como a posse pressupõe a existência de poder fático, e não necessariamente o seu exercício, que é uma forma de exteriorização deste poder, classifica-se em dois grupos distintos: a) posse absoluta (própria); e b) posse relativa ‘(imprópria) fático que tem origem no desmembramento de um direito (posse non domino), não gerando efeitos à prescrição aquisitiva (posse ad usucapionem). (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 616, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 03/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

No site de Direito.com, Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, instrui (1) Quando o titular de um direito real (proprietário) usa e goza da coisa de forma direta e pessoal, pode-se dizer que ele exerce posse de maneira plena, ocorrendo verdadeira conjunção entre a posse direta e a indireta. (2) Entretanto, o titular deste direito real poderá transferir ou ceder o uso da coisa a terceiro, por meio de negócio jurídico, como se dá no usufruto, onde o beneficiário (usufrutuário) passará a ter direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos sobre o bem. Com o proprietário restará a nua-propriedade, despida do uso e gozo. Ocorreu, aqui, o desdobramento da posse, passando o titular do domínio a ter a posse indireta e o usufrutuário a direta. (3) O CC 1.197 procura distinguir – embora com uma redação nada digerível, mas bem melhor que a do Código revogado – a posse direta da indireta, sendo a primeira (direta) caracterizada pela apreensão da coisa, de forma temporária, ou seja, trata-se do poder físico do titular sobre o bem (como se verifica no direito do locatário ou do usufrutuário), referindo-se, pois, tanto aos direitos pessoais como aos reais. Já a indireta surge com a cessão do uso a terceiros. (4) Como já mencionado, verifica-se o desdobramento da posse plena sobre o mesmo bem: de um lado, a posse direta (ou imediata), daquele que a recebe por força de uma relação jurídica estabelecida (contrato); e de outro lado, a posse indireta, daquele que cede o uso da coisa, também chamado de possuidor mediato. (5) Cabe aqui observar que o possuidor indireto não é, necessariamente, o proprietário do bem, cuja posse direta foi cedida. Destarte, poderá ser possuidor indireto o sublocador de um imóvel ou mesmo o usufrutuário. Nestes casos, nenhum deles é proprietário. (6) As posses direta e indireta não sofrem colisão. Ao contrário, coexistem harmonicamente, em relação ao mesmo bem. Ambas são igualmente tuteladas pelo direito, e tanto o possuidor direto, como o indireto, pode defender sua posse autonomamente, independentemente do outro, caso sejam molestados por terceiros. (7) De igual maneira, caso o possuidor indireto venha a molestar a posse do possuidor direto, este último poderá se valer dos interditos de defesa a seu favor. Assim, na hipótese de o locador ocupar, indevidamente, o bem cedido para locação, o possuidor direto (inquilino) poderá se utilizar dos interditos possessórios previstos no ordenamento contra o primeiro, restabelecendo-se a normalidade jurídica, o que vem previsto na parte final do CC 1.947. (8) Convém ressaltar que não tem a posse direta aquele que exerce atos possessórios em nome de terceiros, como se dá com o detentor, eis que não possui para si próprio (CC 1.198). Da mesma forma o possuidor direto, vinculado a um determinado título jurídico, não poderá exercer a posse para fins de usucapião, já que sua posse é derivada de um ato negocial (posse derivada ou imediata), não se cogitando de animus domini, essencial para todas as espécies de usucapião. É como sucede com o locatário ou o comodatário. (9) Enunciado 76 do Conselho da Justiça Federal: “O possuidor direto tem direito de defender a sua posse contra o indireto, e este, contra aquele (CC 1.197, in fine, do novo Código Civil)”. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 03.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 1.198. Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas.

Parágrafo único. Aquele que começou a comportar-se do modo como prescreve este artigo, em relação ao bem e à outra pessoa, presume-se detentor, até que prove o contrário.

Para Francisco Eduardo Loureiro, O conceito de detenção varia de acordo com a teoria adotada, de Savigny (subjetiva) ou Ihering (objetiva). Para Savigny, sempre que houvesse corpus, mas não animus (affectio tenendi + animus domini), estaríamos diante da figura da detenção e não da posse. Para Ihering, a posse e a detenção não se distinguem por um animus específico. Ao contrário. Têm os mesmos elementos (corpus e animus), são ontologicamente iguais. O que as distingue é um obstáculo legal que, com respeito a certas relações que aparentemente preenchem a princípio os requisitos da posse, retira delas os efeitos possessórios. Para Ihering, é uma posse degradada, que, em virtude da lei, se avilta em detenção (Alves, José Carlos Moreira. “A detenção no direito brasileiro”. In: Posse e propriedade, coord. Yussef Said Cahali, 3. ed. São Paulo, Saraiva, 1987, p. 4). O possuidor também tem animus, vale dizer que exerce poderes de fato típicos de modo consciente e proposital. O seu elemento subjetivo, porém, está circunscrito à affectio tenendi, dispensada a vontade de ser dono (animus domini). Claro que, se aquele que tem poder fático sobre a coisa desconhece a existência desse poder, vale dizer, não tem sequer consciência de sua conduta, haverá simples relação de justaposição entre pessoa e coisa, não chegando a configurar detenção. Nosso Código Civil, como foi visto acima, adotou a teoria de Ihering. Não distinguiu estruturalmente a posse da detenção. Apenas criou obstáculos objetivos para diferenciar ambos os institutos. A teoria subjetiva parte da detenção para chegar à posse. A teoria objetiva, adotada em nosso ordenamento, faz o trajeto inverso. A princípio, quem reúne poderes fáticos sobre a coisa semelhantes aos poderes do proprietário é possuidor. Somente não o será se uma barreira legal, criada pelo legislador, retirar os efeitos possessórios de tal comportamento.

O art. 1.198 do Código Civil, em comento, trata do primeiro obstáculo posto pelo legislador, que retira de uma situação tipicamente possessória os seus efeitos naturais, rebaixando-a para detenção. O segundo grupo de obstáculos legais se encontra no CC 1.208, adiante examinado. Seria recomendável que os artigos que tratam das barreiras que degradam a posse em detenção estivessem agrupados, deixando mais clara a sua natureza, o que eliminaria dúvidas que se instalaram na doutrina e confundem o intérprete. O primeiro e mais conhecido impedimento que degrada a posse é o deste artigo, que trata do caso do fâmulo ou servo da posse, ou seja, aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste, em cumprimento de ordens e instruções suas. É o detentor de posse alheia. Como lembra Clóvis Beviláqua, são os casos, por exemplo, do operário em relação às ferramentas e aos utensílios do patrão que ele usa em seu mister, ou do empregado que zela pelos objetos do patrão e os conserva, ou do mandatário que recebe coisa do mandante para entregá-la a outrem {Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado, 4. ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1930, v. III, p. 23). O detentor age como mero instrumento, para o verdadeiro possuidor exercer a sua posse. Há relação de autoridade e de subordinação do possuidor sobre o detentor. Por isso é que essa figura recebe os nomes de servidão da posse, detenção dependente e detenção subordinada. O detentor não tem independência, porque exerce o poder de fato sobre a coisa por conta, ordem e em razão do interesse alheio. Tanto é assim que, se o esbulhador invade um terreno que é guardado por um preposto, este pode exercer a autotutela, mas em nome do possuidor. Caso seja vencido em sua resistência, a legitimidade para ajuizamento das ações possessórias é do possuidor e não do detentor. Como salienta Moreira Alves, essa obediência - a subordinação que marca a conduta do detentor - pode decorrer de relação jurídica de direito privado, como a de mandato, ou de direito público, como a arma e utensílios entregues ao poder imediato do soldado. Pode derivar também de relação social, desde que envolva ordem e obediência (op. cit., p. 11). Note-se que a detenção, ou servidão da posse, é inconfundível com a posse direta. Geram as duas figuras efeitos radicalmente distintos. Apenas o possuidor pode invocar a tutela possessória, não o detentor. As semelhanças entre ambas são que tanto o possuidor direto como e detentor têm poder imediato sobre a coisa, assim como podem ambas as figuras derivar de uma relação jurídica preexistente (posse direta, locação; detenção, contrato de trabalho ou mandato). Haverá mera detenção - servidão da posse - quando a submissão a ordens e decisões for estreita, vale dizer, não goza o detentor de independência nem autonomia; age ele em proveito, por conta do possuidor; dá à coisa o destino e a utilização que lhe determina o possuidor. Já o possuidor direto, embora tenha a obrigação de devolver a coisa para o possuidor indireto após certo tempo, enquanto permanece com ela, tem certo grau de autonomia e exerce os poderes imediatos em proveito próprio.

As considerações acima permitem distinguir com alguma nitidez o possuidor direto do detentor. Algumas situações, porém, se mostram duvidosas. Marcus Vinicius Rios Gonçalves ressalva a figura do depositário judicial, que não se confunde com o seu homônimo, que recebe a coisa em decorrência do contrato de depósito. O depositário judicial tem relação de fato com a coisa em decorrência de um vínculo processual, vale dizer que não há desdobramento da posse, mas múnus público de zelar pela guarda dos bens. Por isso, eventual ataque injusto à coisa não pode ser defendido por ação possessória ajuizada pelo depositário, mas sim por pedido ao próprio juízo que determinou o depósito. Assim, não é o depositário possuidor, mas servidor da posse para o Estado (Dos vícios cia posse. São Paulo, Oliveira Mendes, 1998, p. 28).

Finalmente, o parágrafo único deste artigo contém a inovação do Código vigente em relação ao Código Civil de 1916, ao preceituar que o comportamento de detentor, agindo em relação de dependência para com outro, faz presumir a detenção, até prova cm contrário. Trata-se de regra parelha à do CC 1.203, que dispõe sobre a posse. Note-se que, como dito acima, o que marca a conduta do detentor é a sua obediência, i. é, a falta de autonomia em relação à utilização da coisa. Quem assim age presume-se detentor, cabendo-lhe o ônus da prova - porque é relativa a presunção - de demonstrar o contrário. Podem ocorrer situações duvidosas, como saber se alguém que ocupa um imóvel é comodatário (possuidor direto) ou preposto (detentor). Em situações tais, valiosa será a prova da autonomia da conduta, do grau de independência, para definir qual é a situação jurídica do ocupante. Frise-se, ainda, que em determinados casos um possuidor pode transformar-se em detentor. Basta imaginar a hipótese de um comodatário que passa a receber salário para conservar a coisa. O inverso também pode ocorrer, por exemplo o empregado que não mais reconhece a relação de trabalho e deixa de restituir a coisa ao patrão, ou, então, do representante que arroga direito próprio sobre a coisa, afastando a figura do mandato. Claro que não basta a inversão do estado anímico do detentor, que deve ser acompanhado de conduta objetiva, clara e inequívoca perante o possuidor, para que fique este ciente de que o outro não mais lhe obedece, não mais reconhece a supremacia de sua posição, devendo, se quiser retomar a coisa, usar do remédio possessório. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.140-41. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 03/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Historicamente o dispositivo em tela não sofreu alteração substancial, seja por parte do Senado Federal, seja por parte da Câmara dos Deputados, no período final de tramitação do projeto. A redação atual é, basicamente, a mesma do anteprojeto. Durante a fase final de revisão do texto do projeto, foi apresentado ao Relator-Geral, Deputado Ricardo Fiuza, proposta (acolhida) para substituição, no parágrafo único, da expressão a coisa por “ao bem”. Em síntese, observou-se como justificativa que a palavra coisa denota uma espécie mais restrita de bem da vida, enquanto os bens são o genem e, desta feita, referem-se aos móveis, imóveis, bem como os materiais, semimateriais, e imateriais, em toda a sua amplitude. O dispositivo praticamente repete o Art. 487 do CC de 1916.

Na Doutrina apresentada por Ricardo Fiuza, o detentor (fâmulo da posse) não exerce poderes sobre o bem da vida, mas os atos que pratica assim os faz em nome de outrem, isto é, do possuidor Por isso, em relação ao detentor, presume a lei (presunção juris tantum) que a situação se mantenha indefinidamente. Caso contrário, o ônus da prova compete ao detentor, que por inversão da situação precedente deu origem (causa possessionis) a atos potestativos de ingerência socioeconômica sobre determinado bem da vida, excluindo terceiros e o legítimo possuidor. Em outras palavras, quem era mero detentor pratica esbulho, nada obstante passe a exercer poderes (posse) sobre o bem da vida. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 617, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 03/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Na participação de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, (1) O CC 1.198 prevê a figura do detentor, explicitando tratar-se daquele que se encontra numa relação de dependência para com outro, conservando a posse em nome deste e em cumprimento de ordens suas. (2) É também conhecido como fâmulo da posse, sendo aquele que, em razão de sua dependência em relação a uma outra pessoa, exerce sobre a coisa não um poder próprio, mas o poder de fato desta última, dependência esta que deve ser averiguada do ponto de vista econômico (Fulgêncio, 1994, p. 13). (3) tal relação de dependência, por si só, descaracteriza a posse natural, uma vez que, em se tratando de detecção, o titular do bem poderá, a qualquer momento, extinguir a relação de fato, tornando inexistentes, assim, os atos possessórios. (4) Como se viu, são elementos integrantes de detenção: a) existência de um titular da posse (possuidor indireto); b) aquele que exerce a posse (detentor); c) relação de dependência econômica de um para com o outro. (5) Nos termos da definição legal, o detentor exerce atos possessórios em nome do titular da posse, melhor dizendo, em estrito cumprimento e observância das determinações deste, eis que a posse exercida não deriva de um poder próprio, mas derivado; esse é, aliás, o traço primordial que diferencia a detenção da posse. (6) São detentores os empregados, que têm sob sua guarda objetos do patrão; o operário a quem o dono da obra entrega instrumentos para realizar certo serviço; o mandatário, que recebe do mandante algum objeto para entregar a outrem. Em suma, a detenção é o poder material exercido sobre a coisa, sem a intenção de a ter como sua, ou seja, sem o animus sibi habendi (Beviláqua, p. 36). Também são detentores os hóspedes em relação aos cômodos da casa em que ocorre hospedagem. (7) Embora o detentor não possa invocar as tradicionais medidas protetivas da posse, em nome próprio, poderá utilizar-se da autodefesa da posse, também chamada de desforço pessoal, ou defesa privada, assim tratada no § 1º, do CC 1.210, que é a resistência ao esbulho ou à turbação mediante sua própria força, uma vez que tem o dever de zelar pelo bem que lhe foi confiado, protegendo-o integralmente. (8) Enunciado 301 do Conselho da Justiça Federal: “É possível a conversão da detenção em posse, desde que rompida a subordinação, na hipótese de exercício em nome próprio dos atos possessórios”. (9) Enunciado 493 do Conselho da Justiça federal: “O detentor (CC 1.198) pode, no interesse do possuidor, exercer a autodefesa do bem sob seu poder”. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 03.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 1.199. Se duas ou mais pessoas possuírem coisa indivisa, poderá cada uma exercer sobre ela atos possessórios, contanto que não excluam os dos outros compossuidores.

Com a remissão de Francisco Eduardo Loureiro, a posse, como visto no comentário ao CC 1.196, nada mais é do que o exercício de fato de alguns dos poderes proprietários. Tal como a propriedade, uma das características da posse é a exclusividade, vale dizer que a posse de uma pessoa anula a de outra, ou é antinômica à dela. Porém, em determinadas situações, pode instituir-se condomínio e, portanto, também a composse, que é a aparência da propriedade. Tal como no condomínio, exige-se nesta segunda hipótese pluralidade objetiva de titulares. Cada compossuidor tem direito à parte ideal do bem, uma vez que a composse não se fraciona em partes certas. Note-se que o artigo em questão fala em posse sobre coisa indivisa, de modo que não há composse se três condôminos, por exemplo, ocupam, individualmente, partes certas e determinadas de um imóvel. Nada impede, porém, que os compossuidores acordem que cada um utilizará a coisa comum em determinadas datas, ou por certo tempo. Incompatível com a composse é a transformação da posse pro indiviso em posse pro diviso, localizando a parte ocupada por cada um dos possuidores. Ressalte-se, ainda, que o Código Civil de 2002 aboliu a expressão “ou estiverem no gozo do mesmo direito”, que constava do art. 488 do Código Civil de 1916. Na lição de Tupinambá Miguel Castro do Nascimento, isso é a consolidação do entendimento segundo o qual, tal como na posse, não há composse de direitos. O direito vale como causa possessionis e não como seu objeto (Posse e propriedade, coord. Yussef Said Cahali, 3. ed. São Paulo, Saraiva, 1987, p. 52). Perante terceiros (relações externas), os compossuidores procedem como se fossem um único sujeito. Cada um pode defender a posse do todo, ainda que individualmente. Entre si (relações internas), a cada um é assegurada a utilização da coisa, contanto que não exclua o direito dos demais. Disso decorre que cada um dos compossuidores tem legitimidade para ajuizar ação possessória contra atos ilícitos de terceiros, assim como contra os demais compossuidores. Claro que nesta última hipótese o pressuposto é que um dos compossuidores tenha invadido o exercício de fato dos poderes dos demais compossuidores, por exemplo com o uso ou fruição exclusiva da coisa. A situação de composse decorre de diversas relações jurídicas rotineiras, como o casamento, a união estável - ainda que sobre bens próprios do outro cônjuge ou companheiro -, a herança e áreas comuns de condomínio edilício. Cessa a composse pela divisão em partes certas do todo (posse pro diviso) ou pela posse exclusiva de um dos possuidores sem oposição ou com exclusão dos demais. Não se confundem a composse e as posses direta e indireta. O ponto comum é que em ambas as figuras não há exclusividade da posse. A distinção é que na composse há repartição quantitativa da posse. Nas posses direta e indireta, há repartição qualitativa da posse. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.143. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 03/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Para a doutrina explícita de Ricardo Fiuza, a posse exclusiva não se confunde com a posse absoluta (própria e plena); enquanto a primeira tem pertinência à titularidade do poder de fato — exclusivo de um único possuidor — a segunda diz respeito à manifestação do conteúdo deste poder. Assim, fica mais fácil compreender que composse é a posse comum sobre o mesmo bem (divisível ou indivisível), exercida concomitantemente por dois ou mais sujeitos (pessoas físicas e/ou jurídicas). Está a composse para o mundo fático, assim como o condomínio está para o mundo jurídico. Pode verificar-se dentro da organização vertical da posse, no tocante ao bem, a composse como se os cotitulares fossem condôminos (posse de coisa indivisa), ou a posse de um bem através do gozo do mesmo direito real limitado, i. é, composses absolutas ou próprias e plenas.  Diz-se que a composse pode ser pra diviso ou pra indiviso. Na compossessio pro divisa, o poder fático comum manifesta-se de maneira que cada possuidor, individualmente, externa poderes sobre uma quota ou parte especifica do bem. Na compossessio pra indiviso, não existe uma parte ou quinhão determinado para atuação do poder fático, sendo que todos os sujeitos da comunhão têm poderes sobre a coisa em sua inteireza. Tem posse tanto o sujeito que direciona o poder fálico sobre parte determinada da coisa como aquele outro que possui parte ideal inespecifica. Não obstante, “... só a compossessio pro indiviso é verdadeiramente composse (José Carlos Moreira Alves, Posse. Estudo dogmático, Rio de Janeiro, Forense, 1991, v. LI, t. 1, n. 31, p. 498-519).

 A composse não é apenas um paralelo da compropriedade no mundo fático, podendo apresentar-se da mesma forma com relação aos outros direitos reais (excluída a hipoteca). Denomina-se posse periódica a relação do mundo fático desmembrada da multipropriedade ou propriedade periódica. Essa nova variação pretende adaptar-se juridicamente ao instituto da propriedade comum, possibilitando a utilização de imóveis, em unidades autônomas (v. g. casas, chalés, apartamentos), em determinados períodos ou temporadas, por pessoas que não desejam pagar o preço total do respectivo empreendimento referente à aquisição efetiva do bem em questão, tampouco alugar o imóvel a cada ano. Nessa modalidade de “uso” do imóvel em períodos compartidos sucessivos, vende-se regularmente a propriedade a diversos adquirentes de um mesmo bem com prévia definição de utilização durante determinado mês (ou dias) do ano, variando o preço de compra conforme o tempo de uso e temporada (alta, média ou baixa). Essa situação fática e jurídica não foi regulamentada pelo NCC; assemelha-se ao instituto do direito civil americano conhecido por leasehold, que significa, em síntese, o direito de usar a propriedade alheia sob condições previamente estipuladas num contrato, tendo por objeto, via de regra, um bem tangível. Conforme a relação fática que se venha a formar, o sistema organizacional da manifestação do poder de ingerência dos compossuidores sobre um bem pode criar situações diversas apresentadas num paralelismo entre o mundo fático e o jurídico. Assim, nada obsta a que se verifiquem: propriedade e composse; compropriedade (condomínio) e posse singular (exclusiva ou múltipla); compropriedade e composse; ou compropriedade sem posse ou sem composse. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 618, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 03/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Em seu padrão doutrinário, Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira defendem que (1) Para a caracterização da composse exige-se o exercício dos atos possessórios por duas ou mais pessoas, configurando-se, em verdade, uma situação excepcional de posse, pois, regra geral, o exercício possessório é exclusivo, ou seja, o ato do titular anula por completo o de outros. (2) No entanto, o que caracteriza a composse, traduzida pela posse de coisa indivisa por duas ou mais pessoas, é a existência de um contrato entre os compossuidores, ou uma relação jurídica com base na lei, como se dá na sucessão universal, quando os herdeiros do de cujus recebem a posse do seu antecessor ou então quando os nubentes, casados pelo regime da comunhão universal, passam a exercer atos possessórios conjuntamente. (3) Aqui, por força da situação jurídica condominial, verifica-se a posse sobre coisa indivisa, i.é, sobre bens que não podem ser partidos ou fragmentados sem que comprometam sua própria estrutura ou natureza, como se dá com uma casa residencial. Nessa hipótese, em se tratando de direito real de propriedade, cada condômino será titular de uma fração ideal do todo, ocorrendo situação similar em relação a cada compossuidor, que exercerá atos de posse – e não de propriedade – sobre o todo, sendo tal direto extensivo aos demais compossuidores, que não podem, assim, criar obstáculos ou empecilhos ao exercício possessório de cada um deles. (4) Como se observa, a composse é uma situação jurídica particular e temporária da posse como um todo, pouco importa que o titular da ação tenha, apenas, uma fração ideal da posse: ele defende o todo como se fosse possuidor único (Mário, 2004, p. 35). (5) Ocorre a composse pro diviso – que é uma outra espécie da posse em comum, já que a característica principal da composse é ser indivisa – quando não há uma divisão de direito sobre a posse, mas meramente de fato, onde cada compossuidor ocupa uma parte certa do bem, como se já estivesse dividido. O exercício da composse permite essa divisão de fato para proporcionar uma utilização pacífica do direito de posse de cada um dos compossuidores (TJ-SP, Ap. Cível 185.521-1). (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 03.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).