terça-feira, 8 de setembro de 2020

Direito Civil Comentado - Art. 1.201, 1.202, 1.203 Do Direito das Coisas - VARGAS, Paulo S. R.


Direito Civil Comentado - Art. 1.201, 1.202, 1.203
Do Direito das Coisas - VARGAS, Paulo S. R.
- Livro IIITítulo I – Da Posse (Art. 1.196 ao 1.368)
Capítulo I – Da Posse e Sua Classificação
(Art. 1.196 a 1.203)digitadorvargas@outlook.com

Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.

Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.

Bem responsável o comentário de Francisco Eduardo Loureiro quanto à redação do CC 1.201 ao mencionar a expressão da boa-fé comportar dois significados distintos no Código Civil de 2002, de modo que, para evitar equívocos, deve vir acompanhada dos designativos “objetiva” ou “subjetiva”. A boa-fé objetiva, prevista como cláusula geral nos CC 113 e CC 422 do Código Civil de 2002, é uma norma de conduta, consistente num padrão mínimo de comportamento ético e leal, de modo a não defraudar a confiança, as justas expectativas que os atos e negócios jurídicos despertam na contraparte. É a boa-fé princípio.

A boa-fé subjetiva, ou crença, é um estado de ignorância dos vícios que atingem determinada situação jurídica. No caso específico da posse, é a ignorância dos vícios ou dos obstáculos impeditivos à aquisição da coisa. Vê-se que a figura é concebida de modo negativo, como ignorância e não como convicção. Má-fé tem aquele que conhece tais obstáculos, aquele que tem a consciência da ilegitimidade de seu direito. Boa-fé tem aquele que desconhece, que ignora a origem ilícita da posse.

Discute-se, sobre a caracterização da boa-fé subjetiva, se basta a ignorância do vício (concepção psicológica), ou, em vez disso, é exigível que o estado de ignorância seja desculpável (concepção ética). O melhor entendimento, até para evitar que a pessoa mais previdente sofra as consequências negativas de conhecer aquilo que ignora o relapso, é que somente o erro escusável é compatível com a boa-fé. Vê-se, portanto, que a boa-fé está intimamente ligada à causa de possuir, ao título em razão do qual se possui. Está assentada no desconhecimento do vício que existe no título, quer quanto à sua substância, quer quanto à sua forma.

Pressuposto lógico para a configuração da má-fé é a consciência da existência de vícios. Logo, a posse justa é sempre posse de boa-fé, na ausência de vícios a serem conhecidos. A posse injusta é que pode ser de boa ou de má-fé, dependendo da soma dos vícios objetivo e subjetivo. Nosso direito adotou o sistema canônico, de modo que não basta a boa-fé no momento da aquisição da posse, mas se exige a continuidade de tal qualidade. No exato momento em que cessa a boa-fé, porque o possuidor passa a conhecer o vício que afeta a sua posse, ces­sam ex nunc os efeitos benéficos da situação anterior, tais como a percepção de frutos, a indenização por benfeitorias ou o direito de retenção. A má-fé superveniente, porém, não tem o condão de afetar as vantagens pretéritas hauridas quando ainda se ignorava o vício, que continuam a regular-se pelas regras da posse de boa-fé.

De igual modo, a usucapião ordinária (CC 1.242) exige boa-fé do possuidor durante todo o lapso temporal necessário para a aquisição do domínio. Não se contenta o legislador, portanto, apenas com a boa-fé inicial, mas deve esta persistir até a consumação da prescrição aquisitiva. O único efeito que escapa à regra da persistência da boa-fé é aquele previsto no CC 1.211, qual seja, que o possuidor que desconhecia a origem ilícita da posse no momento de sua aquisição não está sujeito à ação possessória, mas somente à petitória. O Código Civil de 2002 eliminou a expressão final do art. 490 do Código anterior, que aludia a obstáculo impeditivo da aquisição do “direito possuído”, reforçando, mais uma vez, a ideia de que o direito pode gerar posse, mas a posse não tem por objeto direitos, mas coisas.

O parágrafo único deste artigo cria presunção relativa de boa-fé para o possuidor com justo título. É relativa porque pode ser destruída por prova, a cargo de quem pretende retomar a coisa, de que o possuidor, apesar de munido de justo título, conhecia os vícios de sua posse, ou, então, quando a própria lei não admitir a presunção. O termo justo título não é unívoco no Código Civil. Para efeito do dispositivo em exame, é uma causa jurídica que justifica a posse, é a sua razão eficiente. Pode ser justo título, por exemplo, tanto um compromisso de compra e venda como um contrato de locação, ou de comodato, ainda que verbal. Basta que a relação jurídica dê causa legítima à posse.

Note-se que para efeito de usucapião ordinário, como veremos adiante no comentário ao CC 1.242, a expressão justo título tem outro significado, qual seja o título potencialmente hábil para transmissão da propriedade, mas que não o faz pela existência de vício substancial ou formal. Vê-se, portanto, que o comodatário e o locatário têm justo título para efeito de presunção e boa-fé, mas não para gerar usucapião ordinária. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.148-49. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 08/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Segundo Ricardo Fiuza em sua Doutrina, considerando-se os contornos legais estabelecidos, a boa-fé significa o estado de subjetividade (animus) em que se encontra o possuidor, correspondente ao desconhecimento de qualquer dos vícios (violência, clandestinidade ou precariedade) ou obstáculos (permissão ou tolerância), impeditivos à aquisição da posse. Esse desconhecimento em ofender o direito alheio exclui a possibilidade de culpa grave, aqui considerada no sentido de erro inescusável ou grosseira ignorância. 

Tendo-se em conta que a posse justa respeita à inexistência de vício objetivo (causa possessionis = origem ou título da posse), a posse de boa-fé tem pertinência à ausência de defeito subjetivo (desconhecimento da relação viciosa antecedente). Justo título há de ser compreendido, antes de mais nada, desvinculado da ideia de “documento”, tendo-se em conta que posse é situação pertencente ao mundo fático, desvinculada, portanto, do mundo jurídico. Assim, a concepção de justo título deve estar ligada àquela de causa ou modo de aquisição eficiente da posse (causa possessionis). Todavia, isso não significa que não possa estar representado por um “título” (documento) — escritura publica ou particular. Da mesma forma, não se deve confundir justo título com título legítimo; o primeiro não é título hábil à transferência da posse ou propriedade, revestindo-se de simples aparência de título legítimo, ou seja, é o titulo que seria apto à transferência da posse, mas não que de fato o seja. Diverso é o título legítimo, que se reveste de todos os requisitos objetivos (formais) e subjetivos capazes de resultar na efetiva transferência da posse. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 619, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 08/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Atente-se para a lição de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira: (1) a conduta proba e reta do agente diante dos atos jurídicos, em geral, é uma regra principiológica, consagrada pelo Direito, explicitada pela boa-fé objetiva. (2) Já a boa-fé no estudo da posse tem uma perspectiva particular, de caráter subjetivo, pois a sua existência faz gerar consequências específicas e vantajosas ao possuidor. A boa-fé observada na posse é tida, então, como subjetiva. (3) É considerada de má-fé a posse daquele que tem ciência da ilegitimidade de seu direito, ou seja, daquele que adquire a posse com plena noção de que o faz mediante alguns dos vícios que a maculam, conhecendo os obstáculos à sua justa ocupação. (4) Ato inverso, o Código Civil conceitua, no CC 1.201, a posse de boa-fé quando o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa. Melhor dizendo, age de boa-fé aquele que tem a convicção de que procede na conformidade das normas (Mário, 2004, p. 30). (5) A boa-fé deve existir desde o momento em que se originou a posse, devendo assim manter-se enquanto ela perdura, até quando ficar demonstrado com o possuidor não mais ignorar a existência de obstáculos, como reza o CC 1.202. (6) Assim, se alguém, sem o saber, celebra contrato de compra e venda com determinada pessoa que não seja seu verdadeiro titular, dela recebendo a posse, considera-se esta como de boa-fé (Ulhoa, 2006, p. 22). (7) Por outro ângulo, o possuidor que tenha justo título tem em seu favor a presunção de boa-fé. (8) Justo título é aquele documento hábil, em tese, para transferir a propriedade, como o compromisso de compra e venda. Assim, portando o possuidor um título justo, será havido como possuidor de boa-fé, ficando dispensado de qualquer prova, cabendo à parte contrária, isto sim, demonstrar os vícios porventura existentes (Fulgêncio, 1994, p. 41). Trata-se, pois, de uma presunção relativa, ou juris tantum. (9) Caso o possuidor venha a adquirir um imóvel por escritura devidamente registrada, sendo, posteriormente, anulado o registro imobiliário por sentença judicial, por ser outro o verdadeiro titular do bem (venda a non domino), a posse deste adquirente deve ser tida de boa-fé, dada a existência de seu justo título. (10) Justo título é aquele que seria hábil, em tese, para transmitir o domínio e a posse – aptidão externa do título – caso não houvesse um obstáculo ou vício impeditivo desta transferência, como no caso de venda de pessoa que se verifica, posteriormente, ser incapaz, sem assistência ou representação. (11) Por fim, é aquele documento teoricamente apto para transferir o domínio, mas que, no caso concreto, não foi capaz de gerar tal transferência, por elementos ignorados pelo adquirente, frustrando-se, destarte, a aquisição definitiva. (12) Enunciado 303 do Conselho da Justiça Federal: “Considera-se justo título para presunção relativa de boa-fé do possuidor o justo motivo que lhe autoriza a aquisição derivada da posse, esteja ou não materializado em instrumento público ou particular. Compreensão na perspectiva da função social da posse”. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 08.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 1.202. A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente.

Na posição de Francisco Eduardo Loureiro, a boa-fé é a ignorância do vício que macula a posse. É um estado de espírito do possuidor, um elemento interior, cuja prova nem sempre é fácil. Por isso, o legislador preocupa-se com os sinais, as evidências e presunções de boa-fé. Vimos no comentário ao parágrafo único do CC 1.201 que o possuidor com justo título tem a seu favor a presunção relativa de boa-fé. O justo título, porém, não é requisito para a posse de boa-fé. O desconhecimento do vício funda-se, via de regra, em um erro de fato ou de direito. Se há uma razão jurídica que justifique a posse, o erro, a princípio, será escusável, nascendo daí a presunção relativa de boa-fé.

 Não havendo justo título, ainda assim cabe ao retomante demonstrar a má-fé do possuidor. Essa prova, porém, torna-se mais fácil, decorrente, segundo a dicção do artigo em exame, das circunstâncias indicativas do conhecimento do vício pelo possuidor. Quais são essas circunstâncias? Clóvis Bevilaqua dá vários exemplos, como a confissão do possuidor de que nunca teve título, nulidade manifesta do título e existência de instrumentos repugnantes à legitimidade da posse em poder do possuidor.

A posse de boa-fé pode transmudar-se em posse de má-fé, tendo como marco o momento em que as circunstâncias do caso concreto indiquem o conhecimento dos vícios. Constituem marcos dessa mudança em especial a citação cm processo judicial ou notificação formal ao possuidor, quer judicial, quer extrajudicial. Nada impede, porém, que se faça, ainda que por testemunhas, prova de que conhecia o possuidor os vícios que afetavam a sua posse.

Questão interessante é saber se a citação em ação judicial movida pelo retomante contra o possuidor implica necessariamente a posse de má-fé. Via de regra sim, porque será, na pior das hipóteses, o marco da ciência dos vícios que afetam a situação jurídica. Em casos especiais, nos quais houver fundada dúvida sobre a legitimidade da posse, pode a boa-fé persistir após a citação. Basta que o possuidor, apesar de ciente do pleito judicial, confie na qualidade de sua posse, não admitindo, por sólidas razões, os argumentos do retomante. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.148-49. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 08/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Historicamente, o dispositivo em tela não foi alvo de qualquer espécie de alteração, seja por parte do Senado Federal, seja por parte da Câmara dos Deputados , no período final de tramitação do projeto. A redação atual é a mesma do Anteprojeto, cujo Livro III, referente ao Direito das Coisas, ficou à cargo do eminente jurista Ebert Vianna Chanoun.  O dispositivo encontra o seu correspondente no Art. 491 do CC de 1916.

Na doutrina de Ricardo Fiuza, várias são as circunstâncias que fazem presumir o desaparecimento da boa-fé: segundo Beviláqua, as principais são as seguintes: a) confissão do possuidor de que não tem nem nunca teve título; b) nulidade manifesta do título; c) existência de instrumentos repugnantes à legitimidade da posse, em poder do possuidor (Direito das coisas, 5. ed., Rio de Janeiro, Forense, v. 1, p. 45); d) contestação da demanda (cf. Carvalho Santos, CC interpretado, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1979, v. VII, p. 49-50; e Washington de Barros Monteiro, Curso de direito civil, São Paulo, Saraiva, 1979, v. VIII); e) citação judicial (sem perder de vista a observação feita por Lafayette Pereira no sentido de que o réu pode receber a comunicação e julgá-la infundada na crença — boa-fé — de que o bem lhe pertence (cf. Direito das coisas, São Paulo, Freitas Bastos, 1943, v. 1).

Os efeitos práticos dessa questão concernem às benfeitorias, frutos, direito de retenção e prescrição aquisitiva. Para que os efeitos revertam positivamente em prol do possuidor, faz-se mister que a posse seja adquirida com boa-fé e que essa circunstância perdure durante todo o tempo. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 620, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 08/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Pela cartilha de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, (1) Muito embora possa ter adquirido a posse sem conhecimento de vícios ou obstáculos, fato é que perderá a boa-fé aquele possuidor que tomar conhecimento, posteriormente, da existência de circunstâncias impeditivas de seu direito à aquisição do bem. (2) De fato, transforma-se em má-fé aquela posse na qual o possuidor, por alguma circunstância apurável, toma conhecimento de obstáculos à sua livre aquisição. É a denominada mudança jurídica ao caráter da posse, adotada em nosso sistema em homenagem ao direito canônico, que exige que a boa-fé durante todo o tempo, para que a posse se configure como justa. (3) Há alguma dificuldade para se determinar, com precisão, o momento da transformação do caráter da posse, e isso se dá, em verdade, não no momento em que o possuidor passa a ter conhecimento do vício ou obstáculo, mas sim quando as circunstâncias façam presumir que o possuidor não mais ignora tais impeditivos. São, pois, circunstâncias objetivas que irão esclarecer tal transformação (Gomes, 1980, p. 43). (4) Efetivamente, quando o possuidor for citado judicialmente, na condição de réu, em sede de ação possessória ou reivindicatória, por parte do legítimo possuidor ou proprietário, restará caracterizado, a partir daí, o fim da condição de possuidor de boa-fé, adquirindo plena ciência de obstáculos à sua posse. São elementos objetivos que fazem gerar uma presunção de que o atual possuidor tem plena ciência de que outra pessoa é o titular do bem do qual se apossou. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 08.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 1.203. Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida.

Como comentado anteriormente por Francisco Eduardo Loureiro, possível é a alteração do caráter da posse, mediante conversão da posse de boa-fé em posse de má-fé, ou vice-versa, bem como da posse justa em posse injusta, ou vice-versa. A questão é como se opera essa alteração. Diz textualmente o artigo em exame que se presume manter a posse o mesmo caráter original. Via de consequência, aquele que alegar a alteração das qualidades positivas e negativas da posse tem a seu cargo o ônus de demonstrá-la. A presunção, como se extrai do preceito, é relativa, comportando, portanto, prova em sentido contrário.

É sabido que, segundo antigo preceito, netno sibi ipse causam possessionis (ninguém pode mudar por si mesmo a causa da posse). O termo causa da posse é usado aqui em sentido lato, abrangendo também a figura da detenção. Dizendo de outro modo, não basta o elemento anímico, interior, psicológico, para mudar o caráter da posse, escoimando-a de eventuais vícios de origem, quer subjetivos, quer objetivos, ou, então, alterar a detenção para posse. Dizia Ihering que a vontade é sem força diante da causa da posse.

Importante lembrar que causa da posse, aqui, não é somente o seu motivo jurídico, mas também o seu modo de estabelecimento, previsto pelo direito. É por isso que até mesmo a posse injusta tem uma causa, embora ilícita. As principais características da posse, que a dividem em classificações diversas - justa/injusta, de boa-fé/má-fé, ad interdicta/ad usucapionem, direta/indireta -, têm estreita relação com a causa pela qual se possui, quer jurídica, quer pelo modo de estabelecimento. É por isso que, para alterar tais características, é necessário, como pressuposto lógico, alterar também a causa, a razão pela qual se possui. Vem daí a regra preconizada por Astolpho Rezende segundo a qual, “em matéria possessória, a vontade do possuidor é sem valor em frente da regra objetiva de direito” (A posse e sua proteção, 2. ed. São Paulo, Lejus, 2000, p. 263). Essa alteração da causa pode dar-se como decorrência de uma relação jurídica ou por mudança ostensiva do comportamento fático do possuidor.

Como alteração decorrente de causa jurídica, tome-se como exemplo o caso do possuidor violento ou precarista que adquire a coisa ou a recebe em comodato, convertendo a posse injusta em justa. No mesmo exemplo, se a posse era além de injusta também de má-fé, será agora justa e de boa-fé, em razão da falta de vícios a ser conhecidos. De igual modo, o locatário que tinha apenas posse direta e adquire a coisa passa a ter posse plena, uma vez que concentra em suas mãos todos os poderes típicos do proprietário, desaparecendo o dever de restituição da coisa ao antigo possuidor indireto. Note-se que a face exterior da posse permanece a mesma, já que o possuidor continua com o poder imediato sobre a coisa. O que mudou foi a razão pela qual possui, retirando da posse determinadas qualidades negativas, ou limitações, e fazendo nascer qualidades positivas, ou alargando os poderes sobre a coisa. Desapareceu a razão determinante para a caracterização do esbulho, qual seja a aquisição da posse contra a vontade do ex-possuidor.

Como decorrência do comportamento objetivo do possuidor, na lição de Nelson Rosenvald, a alteração se dá desde que haja manifestação por “atos exteriores e prolongados do possuidor da inequívoca disposição de privar o proprietário da coisa” (Direitos reais, 2. ed. Niterói, Impetus, 2003, p. 246). Na verdade, a mudança do comportamento fático não é suficiente para alterar todos os caracteres da posse, mas somente alguns. A mudança de comportamento, assim, não converte a posse injusta em justa. Enquanto perdurarem a violência e a clandestinidade, nem posse haverá, mas mera detenção. Quando cessar a violência e a clandestinidade (ver comentário ao CC 1.208) iniciar-se-á a posse injusta, que não se converte em justa somente pelo fato de a pacificidade ou a publicidade persistirem. No caso, a alteração do comportamento tem apenas o condão de transformar detenção em posse injusta, mas não é suficiente para retirar da posse o vício original. De igual modo, a posse precária não deixa de sê-lo pela simples mudança de comportamento do precarista, ainda que deixe de reconhecer a sua condição de comodatário ou de locatário, por exemplo. Basta lembrar que o esbulhado pode, ocorrendo tal fato, pedir a retomada judicial da coisa, prova maior de que permanece a posse injusta. Confira-se, a respeito, o Enunciado n. 237 da III Jornada de Direito Civil 2004: “Art. 1.203: É cabível a modificação do título da posse - interversio possessionis - na hipótese em que o até então possuidor direto demonstrar ato exterior e inequívoco de oposição ao antigo possuidor indireto, tendo por efeito a caracterização do animus domini'.

A relevância da mudança fática do comportamento do possuidor reflete-se apenas nos caracteres da posse de ad interdicta para ad usucapionem. Assim, aquele que deixa de praticar atos violentos ou torna a posse pública, tirando-a da clandestinidade, mantém os vícios de origem, que não podem ser apagados pela conduta posterior do possuidor, mas gera, apesar disso, posse útil para usucapião, desde que preenchidos os demais requisitos previstos em lei (prazo, continuidade, ânimo de dono etc.). A reação do esbulhado é possível, mas, se não o fizer em determinado prazo, perderá o domínio por usucapião.

No que se refere à posse precária, embora a doutrina tradicional insista na posição de que o vício não convalesce, a questão está na verdade deslocada. A posse realmente continua precária, porque o vício não se apaga, tanto que o esbulhado pode retomar a coisa. Apesar de precária, desde que ocorram circunstâncias especialíssimas, entre as quais que o precarista não mais reconheça a supremacia do direito do esbulhado, deixando isso claro e inequívoco, a posse poderá converter-se de meramente ad interdicta em ad usucapionem. O que mudou com o comportamento de fato do possuidor não foi a origem ilícita da posse, mas o animus. Apesar de continuar injusta, se o possuidor não mais reconhece a superioridade do direito do esbulhado de reaver a coisa, o que mudou com o novo comportamento foi o nascimento do animus domini, requisito que faltava para iniciar o prazo útil de usucapião. Remete-se o leitor ao que já se expôs na parte final do comentário ao CC 1.200, assim como ao que se explanará no comentário ao CC 1.208, adiante. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.159-60. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 08/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Em sua doutrina, Ricardo Fiuza circunstancia limitadamente a presença legal “salvo prova em contrário” – presunção Juris tantum é no sentido de que se violenta a posse, assim haverá de ser mantida indefinidamente; se adquirida com má-fé, igualmente. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 620, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 08/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Tampouco estendendo-se Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, (1) Não há contradição entre o disposto nos CC 1.208 e CC 1.203, pois esse dispositivo traz em si uma presunção relativa, que poderá ceder na existência de prova em contrário, ou seja, alguns vícios de posse podem vir a cessar, desde que presente uma circunstância que a justifique.

Apresentando-se o Enunciado 237 do Conselho da Justiça Federal: “É cabível a modificação do título de posse – interversio possessionis – na hipótese em que o até então possuidor direto demonstrar ato exterior e inequívoco de oposição ao antigo possuidor indireto, tendo por efeito a caracterização do animus domini”. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 08.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

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