Direito Civil Comentado - Art. 1.201, 1.202, 1.203
Do Direito das Coisas - VARGAS, Paulo S. R.
- Livro III
– Título I – Da Posse (Art. 1.196 ao
1.368)
Capítulo I – Da
Posse e Sua Classificação
(Art. 1.196 a 1.203) – digitadorvargas@outlook.com –
Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o
possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.
Parágrafo único. O possuidor com justo título tem
por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei
expressamente não admite esta presunção.
Bem responsável o
comentário de Francisco Eduardo Loureiro quanto à
redação do CC 1.201 ao mencionar a expressão da boa-fé
comportar dois significados distintos no Código Civil de 2002, de modo que,
para evitar equívocos, deve vir acompanhada dos designativos “objetiva” ou
“subjetiva”. A boa-fé objetiva, prevista como cláusula geral nos CC 113 e CC 422
do Código Civil de 2002, é uma norma de conduta, consistente num padrão mínimo
de comportamento ético e leal, de modo a não defraudar a confiança, as justas
expectativas que os atos e negócios jurídicos despertam na contraparte. É a
boa-fé princípio.
A
boa-fé subjetiva, ou crença, é um estado de ignorância dos vícios que atingem
determinada situação jurídica. No caso específico da posse, é a ignorância dos
vícios ou dos obstáculos impeditivos à aquisição da coisa. Vê-se que a figura é
concebida de modo negativo, como ignorância e não como convicção. Má-fé tem
aquele que conhece tais obstáculos, aquele que tem a consciência da
ilegitimidade de seu direito. Boa-fé tem aquele que desconhece, que ignora a
origem ilícita da posse.
Discute-se,
sobre a caracterização da boa-fé subjetiva, se basta a ignorância do vício
(concepção psicológica), ou, em vez disso, é exigível que o estado de
ignorância seja desculpável (concepção ética). O melhor entendimento, até para
evitar que a pessoa mais previdente sofra as consequências negativas de
conhecer aquilo que ignora o relapso, é que somente o erro escusável é
compatível com a boa-fé. Vê-se, portanto, que a boa-fé está intimamente ligada
à causa de possuir, ao título em razão do qual se possui. Está assentada no
desconhecimento do vício que existe no título, quer quanto à sua substância,
quer quanto à sua forma.
Pressuposto
lógico para a configuração da má-fé é a consciência da existência de vícios.
Logo, a posse justa é sempre posse de boa-fé, na ausência de vícios a serem
conhecidos. A posse injusta é que pode ser de boa ou de má-fé, dependendo da
soma dos vícios objetivo e subjetivo. Nosso direito adotou o sistema canônico,
de modo que não basta a boa-fé no momento da aquisição da posse, mas se exige a
continuidade de tal qualidade. No exato momento em que cessa a boa-fé, porque o
possuidor passa a conhecer o vício que afeta a sua posse, cessam ex nunc os
efeitos benéficos da situação anterior, tais como a percepção de frutos, a
indenização por benfeitorias ou o direito de retenção. A má-fé superveniente,
porém, não tem o condão de afetar as vantagens pretéritas hauridas quando ainda
se ignorava o vício, que continuam a regular-se pelas regras da posse de
boa-fé.
De
igual modo, a usucapião ordinária (CC 1.242) exige boa-fé do possuidor durante
todo o lapso temporal necessário para a aquisição do domínio. Não se contenta o
legislador, portanto, apenas com a boa-fé inicial, mas deve esta persistir até
a consumação da prescrição aquisitiva. O único efeito que escapa à regra da
persistência da boa-fé é aquele previsto no CC 1.211, qual seja, que o
possuidor que desconhecia a origem ilícita da posse no momento de sua aquisição
não está sujeito à ação possessória, mas somente à petitória. O Código Civil de
2002 eliminou a expressão final do art. 490 do Código anterior, que aludia a
obstáculo impeditivo da aquisição do “direito possuído”, reforçando, mais uma
vez, a ideia de que o direito pode gerar posse, mas a posse não tem por objeto
direitos, mas coisas.
O
parágrafo único deste artigo cria presunção relativa de boa-fé para o possuidor
com justo título. É relativa porque pode ser destruída por prova, a cargo de
quem pretende retomar a coisa, de que o possuidor, apesar de munido de justo
título, conhecia os vícios de sua posse, ou, então, quando a própria lei não
admitir a presunção. O termo justo título não é unívoco no Código Civil. Para
efeito do dispositivo em exame, é uma causa jurídica que justifica a posse, é a
sua razão eficiente. Pode ser justo título, por exemplo, tanto um compromisso
de compra e venda como um contrato de locação, ou de comodato, ainda que
verbal. Basta que a relação jurídica dê causa legítima à posse.
Note-se
que para efeito de usucapião ordinário, como veremos adiante no comentário ao CC
1.242, a expressão justo título tem outro significado, qual seja o título
potencialmente hábil para transmissão da propriedade, mas que não o faz pela
existência de vício substancial ou formal. Vê-se, portanto, que o comodatário e
o locatário têm justo título para efeito de presunção e boa-fé, mas não para
gerar usucapião ordinária. (Francisco
Eduardo Loureiro, apud Código
Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002.
Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.148-49.
Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 08/09/2020. Revista e atualizada nesta data
por VD).
Segundo
Ricardo Fiuza em sua Doutrina, considerando-se os contornos legais
estabelecidos, a boa-fé significa o estado de subjetividade (animus) em que se encontra o possuidor,
correspondente ao desconhecimento de qualquer dos vícios (violência,
clandestinidade ou precariedade) ou obstáculos (permissão ou tolerância),
impeditivos à aquisição da posse. Esse desconhecimento em ofender o direito
alheio exclui a possibilidade de culpa grave, aqui considerada no sentido de
erro inescusável ou grosseira ignorância.
Tendo-se
em conta que a posse justa respeita à inexistência de vício objetivo (causa possessionis = origem ou título da
posse), a posse de boa-fé tem pertinência à ausência de defeito subjetivo
(desconhecimento da relação viciosa antecedente). Justo título há de ser compreendido, antes de mais nada,
desvinculado da ideia de “documento”, tendo-se em conta que posse é situação
pertencente ao mundo fático, desvinculada, portanto, do mundo jurídico. Assim,
a concepção de justo título deve estar ligada àquela de causa ou modo de aquisição eficiente da posse (causa possessionis). Todavia, isso não
significa que não possa estar representado por um “título” (documento) —
escritura publica ou particular. Da mesma forma, não se deve confundir justo título com título legítimo; o primeiro não é título hábil à transferência da
posse ou propriedade, revestindo-se de simples aparência de título legítimo, ou
seja, é o titulo que seria apto à
transferência da posse, mas não que de fato o seja. Diverso é o título legítimo, que se reveste de todos
os requisitos objetivos (formais) e subjetivos capazes de resultar na efetiva
transferência da posse. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 619, apud Maria Helena Diniz
Código Civil Comentado já impresso
pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 08/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Atente-se para a lição de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira: (1) a conduta proba e
reta do agente diante dos atos jurídicos, em geral, é uma regra
principiológica, consagrada pelo Direito, explicitada pela boa-fé objetiva. (2) Já a boa-fé no estudo da
posse tem uma perspectiva particular, de caráter subjetivo, pois a sua existência faz gerar consequências
específicas e vantajosas ao possuidor. A boa-fé observada na posse é tida,
então, como subjetiva. (3) É
considerada de má-fé a posse daquele que tem ciência da ilegitimidade de seu
direito, ou seja, daquele que adquire a posse com plena noção de que o faz
mediante alguns dos vícios que a maculam, conhecendo os obstáculos à sua justa
ocupação. (4) Ato inverso, o Código Civil conceitua, no CC 1.201, a posse de
boa-fé quando o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição
da coisa. Melhor dizendo, age de boa-fé aquele que tem a convicção de que
procede na conformidade das normas (Mário, 2004, p. 30). (5) A boa-fé deve
existir desde o momento em que se originou a posse, devendo assim manter-se
enquanto ela perdura, até quando ficar demonstrado com o possuidor não mais
ignorar a existência de obstáculos, como reza o CC 1.202. (6) Assim, se alguém,
sem o saber, celebra contrato de compra e venda com determinada pessoa que não
seja seu verdadeiro titular, dela recebendo a posse, considera-se esta como de
boa-fé (Ulhoa, 2006, p. 22). (7) Por outro ângulo, o possuidor que tenha justo
título tem em seu favor a presunção de boa-fé. (8) Justo título é aquele documento hábil, em tese, para transferir a
propriedade, como o compromisso de compra e venda. Assim, portando o possuidor
um título justo, será havido como
possuidor de boa-fé, ficando dispensado de qualquer prova, cabendo à parte
contrária, isto sim, demonstrar os vícios porventura existentes (Fulgêncio,
1994, p. 41). Trata-se, pois, de uma presunção relativa, ou juris tantum. (9) Caso o possuidor venha
a adquirir um imóvel por escritura devidamente registrada, sendo,
posteriormente, anulado o registro imobiliário por sentença judicial, por ser
outro o verdadeiro titular do bem (venda a non
domino), a posse deste adquirente deve ser tida de boa-fé, dada a
existência de seu justo título. (10) Justo
título é aquele que seria hábil, em tese, para transmitir o domínio e a
posse – aptidão externa do título – caso não houvesse um obstáculo ou vício
impeditivo desta transferência, como no caso de venda de pessoa que se
verifica, posteriormente, ser incapaz, sem assistência ou representação. (11)
Por fim, é aquele documento teoricamente apto para transferir o domínio, mas
que, no caso concreto, não foi capaz de gerar tal transferência, por elementos
ignorados pelo adquirente, frustrando-se, destarte, a aquisição definitiva.
(12) Enunciado 303 do Conselho da Justiça Federal: “Considera-se justo título para presunção relativa de boa-fé do
possuidor o justo motivo que lhe autoriza a aquisição derivada da posse, esteja
ou não materializado em instrumento público ou particular. Compreensão na
perspectiva da função social da posse”. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso
em 08.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Art. 1.202. A
posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as
circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui
indevidamente.
Na
posição de Francisco Eduardo Loureiro, a
boa-fé é a ignorância do vício que macula a posse. É um estado de espírito do
possuidor, um elemento interior, cuja prova nem sempre é fácil. Por isso, o
legislador preocupa-se com os sinais, as evidências e presunções de boa-fé.
Vimos no comentário ao parágrafo único do CC 1.201 que o possuidor com justo
título tem a seu favor a presunção relativa de boa-fé. O justo título, porém,
não é requisito para a posse de boa-fé. O desconhecimento do vício funda-se,
via de regra, em um erro de fato ou de direito. Se há uma razão jurídica que
justifique a posse, o erro, a princípio, será escusável, nascendo daí a
presunção relativa de boa-fé.
Não havendo justo
título, ainda assim cabe ao retomante demonstrar a má-fé do possuidor. Essa
prova, porém, torna-se mais fácil, decorrente, segundo a dicção do artigo em
exame, das circunstâncias indicativas do conhecimento do vício pelo possuidor.
Quais são essas circunstâncias? Clóvis Bevilaqua dá vários exemplos, como a
confissão do possuidor de que nunca teve título, nulidade manifesta do título e
existência de instrumentos repugnantes à legitimidade da posse em poder do
possuidor.
A
posse de boa-fé pode transmudar-se em posse de má-fé, tendo como marco o
momento em que as circunstâncias do caso concreto indiquem o conhecimento dos
vícios. Constituem marcos dessa mudança em especial a citação cm processo judicial
ou notificação formal ao possuidor, quer judicial, quer extrajudicial. Nada
impede, porém, que se faça, ainda que por testemunhas, prova de que conhecia o
possuidor os vícios que afetavam a sua posse.
Questão
interessante é saber se a citação em ação judicial movida pelo retomante contra
o possuidor implica necessariamente a posse de má-fé. Via de regra sim, porque
será, na pior das hipóteses, o marco da ciência dos vícios que afetam a
situação jurídica. Em casos especiais, nos quais houver fundada dúvida sobre a
legitimidade da posse, pode a boa-fé persistir após a citação. Basta que o
possuidor, apesar de ciente do pleito judicial, confie na qualidade de sua
posse, não admitindo, por sólidas razões, os argumentos do retomante. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código
Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002.
Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.148-49.
Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 08/09/2020. Revista e atualizada nesta data
por VD).
Historicamente,
o dispositivo em tela não foi alvo de qualquer espécie de alteração, seja por
parte do Senado Federal, seja por parte da Câmara dos Deputados , no período
final de tramitação do projeto. A redação atual é a mesma do Anteprojeto, cujo
Livro III, referente ao Direito das Coisas, ficou à cargo do eminente jurista
Ebert Vianna Chanoun. O dispositivo
encontra o seu correspondente no Art. 491 do CC de 1916.
Na
doutrina de Ricardo Fiuza, várias são as circunstâncias que fazem presumir o
desaparecimento da boa-fé: segundo Beviláqua, as principais são as seguintes:
a) confissão do possuidor de que não tem nem nunca teve título; b) nulidade
manifesta do título; c) existência de instrumentos repugnantes à legitimidade
da posse, em poder do possuidor (Direito das coisas, 5. ed., Rio de Janeiro,
Forense, v. 1, p. 45); d) contestação da demanda (cf. Carvalho Santos, CC
interpretado, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1979, v. VII, p. 49-50; e
Washington de Barros Monteiro, Curso de
direito civil, São Paulo, Saraiva, 1979, v. VIII); e) citação judicial (sem
perder de vista a observação feita por Lafayette Pereira no sentido de que o
réu pode receber a comunicação e julgá-la infundada na crença — boa-fé — de que
o bem lhe pertence (cf. Direito das
coisas, São Paulo, Freitas Bastos, 1943, v. 1).
Os
efeitos práticos dessa questão concernem às benfeitorias, frutos, direito de
retenção e prescrição aquisitiva. Para que os efeitos revertam positivamente em
prol do possuidor, faz-se mister que a posse seja adquirida com boa-fé e que
essa circunstância perdure durante todo o tempo. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 620, apud Maria Helena Diniz
Código Civil Comentado já impresso
pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 08/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Pela cartilha de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, (1)
Muito embora possa ter adquirido a posse sem conhecimento de vícios ou
obstáculos, fato é que perderá a boa-fé aquele possuidor que tomar
conhecimento, posteriormente, da existência de circunstâncias impeditivas de
seu direito à aquisição do bem. (2) De fato, transforma-se em má-fé aquela
posse na qual o possuidor, por alguma circunstância apurável, toma conhecimento
de obstáculos à sua livre aquisição. É a denominada mudança jurídica ao caráter da posse, adotada em nosso sistema em
homenagem ao direito canônico, que exige que a boa-fé durante todo o tempo,
para que a posse se configure como justa. (3) Há alguma dificuldade para se
determinar, com precisão, o momento da transformação do caráter da posse, e
isso se dá, em verdade, não no momento em que o possuidor passa a ter
conhecimento do vício ou obstáculo, mas sim quando as circunstâncias façam
presumir que o possuidor não mais ignora tais impeditivos. São, pois,
circunstâncias objetivas que irão esclarecer tal transformação (Gomes, 1980, p.
43). (4) Efetivamente, quando o possuidor for citado judicialmente, na condição
de réu, em sede de ação possessória ou reivindicatória, por parte do legítimo
possuidor ou proprietário, restará caracterizado, a partir daí, o fim da
condição de possuidor de boa-fé, adquirindo plena ciência de obstáculos à sua
posse. São elementos objetivos que fazem gerar uma presunção de que o atual
possuidor tem plena ciência de que outra pessoa é o titular do bem do qual se
apossou. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e
Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 08.09.2020,
corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Art. 1.203. Salvo
prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi
adquirida.
Como
comentado anteriormente por Francisco
Eduardo Loureiro, possível é a alteração do caráter da posse,
mediante conversão da posse de boa-fé em posse de má-fé, ou vice-versa, bem
como da posse justa em posse injusta, ou vice-versa. A questão é como se opera
essa alteração. Diz textualmente o artigo em exame que se presume manter a
posse o mesmo caráter original. Via de consequência, aquele que alegar a alteração
das qualidades positivas e negativas da posse tem a seu cargo o ônus de
demonstrá-la. A presunção, como se extrai do preceito, é relativa, comportando,
portanto, prova em sentido contrário.
É
sabido que, segundo antigo preceito, netno
sibi ipse causam possessionis (ninguém pode mudar por si
mesmo a causa da posse). O termo causa da posse é usado aqui em sentido lato,
abrangendo também a figura da detenção. Dizendo de outro modo, não basta o
elemento anímico, interior, psicológico, para mudar o caráter da posse,
escoimando-a de eventuais vícios de origem, quer subjetivos, quer objetivos,
ou, então, alterar a detenção para posse. Dizia Ihering que a vontade é sem
força diante da causa da posse.
Importante
lembrar que causa da posse, aqui, não é somente o seu motivo jurídico, mas
também o seu modo de estabelecimento, previsto pelo direito. É por isso que até
mesmo a posse injusta tem uma causa, embora ilícita. As principais
características da posse, que a dividem em classificações diversas - justa/injusta, de boa-fé/má-fé, ad
interdicta/ad usucapionem, direta/indireta -, têm estreita relação com a
causa pela qual se possui, quer jurídica, quer pelo modo de estabelecimento. É
por isso que, para alterar tais características, é necessário, como pressuposto
lógico, alterar também a causa, a razão pela qual se possui. Vem daí a regra
preconizada por Astolpho Rezende segundo a qual, “em matéria possessória, a
vontade do possuidor é sem valor em frente da regra objetiva de direito” (A posse e sua proteção, 2. ed. São
Paulo, Lejus, 2000, p. 263). Essa alteração da causa pode dar-se como
decorrência de uma relação jurídica ou por mudança ostensiva do comportamento
fático do possuidor.
Como
alteração decorrente de causa jurídica, tome-se como exemplo o caso do possuidor
violento ou precarista que adquire a coisa ou a recebe em comodato, convertendo
a posse injusta em justa. No mesmo exemplo, se a posse era além de injusta
também de má-fé, será agora justa e de boa-fé, em razão da falta de vícios a
ser conhecidos. De igual modo, o locatário que tinha apenas posse direta e
adquire a coisa passa a ter posse plena, uma vez que concentra em suas mãos
todos os poderes típicos do proprietário, desaparecendo o dever de restituição
da coisa ao antigo possuidor indireto. Note-se que a face exterior da posse
permanece a mesma, já que o possuidor continua com o poder imediato sobre a
coisa. O que mudou foi a razão pela qual possui, retirando da posse
determinadas qualidades negativas, ou limitações, e fazendo nascer qualidades
positivas, ou alargando os poderes sobre a coisa. Desapareceu a razão
determinante para a caracterização do esbulho, qual seja a aquisição da posse
contra a vontade do ex-possuidor.
Como
decorrência do comportamento objetivo do possuidor, na lição de Nelson
Rosenvald, a alteração se dá desde que haja manifestação por “atos exteriores e
prolongados do possuidor da inequívoca disposição de privar o proprietário da
coisa” (Direitos reais, 2. ed.
Niterói, Impetus, 2003, p. 246). Na verdade, a mudança do comportamento fático
não é suficiente para alterar todos os caracteres da posse, mas somente alguns.
A mudança de comportamento, assim, não converte a posse injusta em justa.
Enquanto perdurarem a violência e a clandestinidade, nem posse haverá, mas mera
detenção. Quando cessar a violência e a clandestinidade (ver comentário ao CC
1.208) iniciar-se-á a posse injusta, que não se converte em justa somente pelo
fato de a pacificidade ou a publicidade persistirem. No caso, a alteração do
comportamento tem apenas o condão de transformar detenção em posse injusta, mas
não é suficiente para retirar da posse o vício original. De igual modo, a posse
precária não deixa de sê-lo pela simples mudança de comportamento do
precarista, ainda que deixe de reconhecer a sua condição de comodatário ou de
locatário, por exemplo. Basta lembrar que o esbulhado pode, ocorrendo tal fato,
pedir a retomada judicial da coisa, prova maior de que permanece a posse
injusta. Confira-se, a respeito, o Enunciado n. 237 da III Jornada de Direito
Civil 2004: “Art. 1.203: É cabível a modificação do título da posse - interversio possessionis - na hipótese
em que o até então possuidor direto demonstrar ato exterior e inequívoco de
oposição ao antigo possuidor indireto, tendo por efeito a caracterização do animus domini'.
A
relevância da mudança fática do comportamento do possuidor reflete-se apenas
nos caracteres da posse de ad interdicta
para ad usucapionem. Assim, aquele que deixa de praticar atos violentos ou
torna a posse pública, tirando-a da clandestinidade, mantém os vícios de
origem, que não podem ser apagados pela conduta posterior do possuidor, mas
gera, apesar disso, posse útil para usucapião, desde que preenchidos os demais
requisitos previstos em lei (prazo, continuidade, ânimo de dono etc.). A reação
do esbulhado é possível, mas, se não o fizer em determinado prazo, perderá o
domínio por usucapião.
No
que se refere à posse precária, embora a doutrina tradicional insista na
posição de que o vício não convalesce, a questão está na verdade deslocada. A
posse realmente continua precária, porque o vício não se apaga, tanto que o
esbulhado pode retomar a coisa. Apesar de precária, desde que ocorram
circunstâncias especialíssimas, entre as quais que o precarista não mais
reconheça a supremacia do direito do esbulhado, deixando isso claro e
inequívoco, a posse poderá converter-se de meramente ad interdicta em ad
usucapionem. O que mudou com o comportamento de fato do possuidor não foi a
origem ilícita da posse, mas o animus.
Apesar de continuar injusta, se o possuidor não mais reconhece a superioridade
do direito do esbulhado de reaver a coisa, o que mudou com o novo comportamento
foi o nascimento do animus domini,
requisito que faltava para iniciar o prazo útil de usucapião. Remete-se o
leitor ao que já se expôs na parte final do comentário ao CC 1.200, assim como
ao que se explanará no comentário ao CC 1.208, adiante. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código
Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002.
Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.159-60.
Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 08/09/2020. Revista e atualizada nesta data
por VD).
Em
sua doutrina, Ricardo Fiuza circunstancia limitadamente a presença legal “salvo prova em contrário” – presunção Juris tantum é no sentido de que se
violenta a posse, assim haverá de ser mantida indefinidamente; se adquirida com
má-fé, igualmente. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 620, apud Maria Helena Diniz
Código Civil Comentado já impresso
pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 08/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Tampouco
estendendo-se Luís Paulo Cotrim Guimarães e
Samuel Mezzalira, (1) Não há contradição entre o disposto nos CC 1.208 e CC
1.203, pois esse dispositivo traz em si uma presunção
relativa, que poderá ceder na existência de prova em contrário, ou seja,
alguns vícios de posse podem vir a cessar, desde que presente uma circunstância
que a justifique.
Apresentando-se o Enunciado 237 do Conselho da
Justiça Federal: “É cabível a modificação
do título de posse – interversio possessionis – na hipótese em que o até então
possuidor direto demonstrar ato exterior e inequívoco de oposição ao antigo
possuidor indireto, tendo por efeito a caracterização do animus domini”. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e
Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 08.09.2020,
corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Nenhum comentário:
Postar um comentário