CÓDIGO
PENAL (...) PARTE ESPECIAL - DOS CRIMES
CONTRA A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO, CONTRA O SENTIMENTO RELIGIOSO E CONTRA O
RESPEITO AOS MORTOS, CONTRA OS COSTUMES, CONTRA A FAMÍLIA, CONTRA A INCOLUMIDADE
PÚBLICA, CONTRA A PAZ PÚBLICA E CONTRA A FÉ PÚBLICA. CONCLUSÃO. VARGAS
DIGITADOR – DECRETO-LEI N 2.848, DE 07 DE DEZEMBR0 DE 1940 – EXPOSIÇÃO DE
MOTIVOS DA NOVA PARTE ESPECIAL DO CÓDIGO PENAL - VARGAS DIGITADOR
DOS CRIMES CONTRA A
ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO
66. O projeto consagra um
título especial aos “crimes contra a organização do trabalho”, que é Código
atual do , sob o título de “crimes contra a liberdade do trabalho”, classifica
entre os “crimes contra a liberdade do trabalho”, classifica entre os “crimes
contra o livre gozo e exercício dos direitos individuais” (isto é, contra a
liberdade individual). Este critério de classificação, enjeitado pelo projeto,
afeiçoa-se a um postulado da economia liberal, atualmente desacreditado, que
Zanardelli, ao tempo da elaboração do Código Penal italiano de 1889, assim
fixava: “A lei deve deixar que cada um proveja aos próprios interesses pelo
modo que melhor lhe pareça, e não pode intervir senão quando a livre ação de
uns seja lesiva do direito de outros. Não pode ela vedar aos operários a
combinada abstenção de trabalho para atender a um objetivo econômico, e não ode
impedir um industrial que feche, quando lhe aprouver, a sua fábrica ou oficina.
O trabalho é uma mercadoria, da qual, como de qualquer outra, se pode dispor à
vontade, quando se faça uso do próprio direito sem prejudicar o direito de
outrem”. A tutela exclusivista da liberdade individual abstraía, assim, ou
deixava em pleno secundário interesse da coletividade, o bem geral. A greve, o lockout, todos os meios incruentos e
pacíficos na luta entre o proletariado e o capitalismo eram permitidos e
constituíam mesmo o exercício de líquidos direitos individuais. O que cumpria
assegurar, antes de tudo, na esfera econômica, era o livre jogo das iniciativas
individuais. O que cumpria assegurar, antes de tudo, na esfera econômica, era o
livre jogo das iniciativas individuais.ora, semelhante programa, que uma longa
experiência demonstrou errôneo e desastroso,já não é mais viável em face da
constituição de 37. Proclamou esta a legitimidade da intervenção do Estado no
domínio econômico, “para suprir as deficiências da iniciativa individual e
coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus
conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento do
interesse da Nação”. Para dirimir as contendas entre o trabalho e o capital,
foi instituída a Justiça do trabalho, tornando-se incompatível com a nova ordem
política o exercício arbitrário das
próprias razões por parte de empregados e empregadores.
67. A greve e o lockout (isto é, a paralisação ou
suspensão arbitrária do trabalho pelos operários ou patrões) foram declarados “recursos
antissociais, nocivos ao trabalho e ao capital, e incompatíveis com os
superiores interesses da produção nacional”. Já não é admissível uma liberdade do trabalho entendida como
liberdade de iniciativa de uns sem outro limite que igual liberdade de
iniciativa de outros. A proteção jurídica já não é concedida à liberdade do trabalho, inspirada não
somente na defesa e no ajustamento dos direitos e interesses individuais em
jogo, mas também, e principalmente, no sentido superior do bem comum de todos.
Atentatória, ou não da liberdade individual, toda ação perturbadora da ordem
jurídica, no que concerne ao trabalho, é lícita e está sujeita a sanções
repressivas, sejam de direito administrativo, sejam de direito penal. Daí, o
novo critério adotado pelo projeto, isto é, a transladação dos crimes contra o
trabalho, do setor dos crimes contra a liberdade in0dividual para uma classe autônoma,
sob a já referida rubrica. Não foram, porém, trazidos para o campo do ilícito penal todos os fatos contrários
à organização do trabalho: são incriminados, de regra, somente aqueles que se
fazem acompanhar da violência ou da fraude.
Se falta qualquer desse elemento, não passará o fato, salvo poucas exceções, de
ilícito administrativo. É o ponto de
vista já fixado em recente legislação trabalhista. Assim, incidirão em sanção
penal o cerceamento do trabalho pela força ou intimidação (artigo 197, I), a coação
para o fim de greve ou de lockout
(artigo 197, II), a boicotagem violenta (artigo 198), o atentado violento
contra a liberdade da associação profissional (artigo 199), a greve seguida de
violência contra a pessoa ou contra a coisa (artigo 200), a invasão e
arbitrária posse de estabelecimento de trabalho (artigo 202, in fine), a
frustração, mediante violência ou fraude, de direitos assegurados por lei
trabalhista ou de nacionalização do trabalho (artigos 203 e 204). Os demais
crimes contra o trabalho, previstos no projeto, dispensam o elemento violência ou fraude
(artigos 201, 205, 206, 207), mas explica-se a exceção: é que eles, ou atentam
imediatamente contra o interesse público, ou imediatamente ocasionam uma grave
perturbação da ordem econômica. É de notar-se que a suspensão ou abandono
coletivo de obra pública ou serviço de interesse coletivo somente constituirá o
crime previsto no artigo 201 quando praticado por “motivos pertinentes às
condições do trabalho”, pois, de outro modo, o fato importará o crime definido
no artigo 18 da Lei de Segurança, que continua em pleno vigor.
DOS CRIMES CONTRA O
SENTIMENTO RELIGIOSO E CONTRA O RESPEITO AOS MORTOS
68. São classificados como species do mesmo genus os “crimes contra o sentimento religioso” e os “crimes
contra o respeito aos mortos”. É incontestável a afinidade entre uns e outros.
O sentimento religioso e o respeito aos mortos são valores
eticossociais que se assemelham. O tributo que se rende aos mortos tem um fundo
religioso, idêntico, em ambos os casos, é a ratio
assendi da tutela penal.
O projeto divorcia-se da lei
atual,não só quando deixa de considerar os crimes referentes aos cultos
religiosos como subclasse dos crimes contra a liberdade individual (pois o que
passa a ser, precipuamente, objeto da proteção penal é a religião como um bem
em si mesmo), como quando traz para o catálogo dos crimes (lesivos do respeito aos mortos) certos fatos que o
Código vigente considera simples contravenções,
como o violatio sepulchri e a
profanação de cadáver. Entidades criminais desconhecidas da lei vigente são as
previstas nos artigos 209 e 211 do projeto: impedimento ou perturbação de
enterro ou cerimônia fúnebre e supressão de cadáver ou de alguma de suas
partes.
DOS CRMES CONTRA OS COSTUMES
69. Sob esta epígrafe, cuida
o projeto dos crimes que, de modo geral, podem ser também denominados sexuais.
São os mesmos crimes que a lei vigente conhece sob a extensa rubrica “Dos
crimes contra a segurança, da honra e honestidades das famílias e do ultraje
público ao pudor”. Fugiram eles com cinco subclasses, assim intitulados: “Dos
crimes contra a liberdade sexual”. “Da sedução e da corrupção de menores”, “Do
rapto”, “Do lenocínio e do tráfico de mulheres” e “Do ultraje público ao
pudor”.
O crime de adultério, que o
Código em vigor contempla entre os crimes sexuais, passa a figurar no setor dos
crimes contra a família.
70. Entre os crimes contra a
liberdade sexual, de par com as
figuras clássicas do estupro e do
atentado violento ao pudor, são incluídas a “posse sexual mediante fraude” e o
“atentado ao pudor mediante fraude”. Estas duas entidades criminais, na
amplitude com que as conceitua o projeto, são estranhas à lei atual. Perante
esta, a fraude é um dos meios morais do crime de defloramento, de que só a mulher menor de 21 (vinte e um) anos e
maior de 16 (dezesseis) pode ser sujeito passivo. Segundo o projeto,
entretanto, existe crime sempre que, sendo a vítima mulher honesta, haja
emprego de meio fraudulento (v.g., simular casamento, substituir-se ao marido
na escuridão da alcova). Não importa, para a existência do crime, que a
ofendida seja, ou não maior ou virgo
intacta. Se da cópula resulta o desvirginamento da ofendida, e esta é menor
de 18 (dezoito) anos e maior de 14 (quatorze), a pena é especialmente aumentada.
Na identificação dos crimes
contra a liberdade sexual é presumida a violência (artigo 224) quando a vítima:
a) não é maior de 14 (quatorze) anos; b) é afenada ou débil mental conhecendo o
agente esta circunstância, ou c) acha-se em estado de inconsciência (provocado,
ou não, pelo agente), ou, por doença ou outra causa, impossibilitada de
oferecer resistência. Como se vê, o
projeto diverge substancialmente da lei atual: reduz, para o efeito de
presunção de violência, o limite de idade
da vítima e amplia os casos de tal presunção (a lei vigente presume a
violência no caso único de ser a vítima menor de dezesseis anos). Com a redução
do limite de idade, o projeto atende à evidência de um fato social
contemporâneo dos fatos sexuais. O fundamento da ficção legal de violência, no
caso dos adolescentes, é a innocentia
consilli do sujeito passivo, ou seja, a sua completa insciência em relação
aos fatos sexuais, de modo que não se pode dar valor algum ao seu consentimento.
Ora, na época atual, seria abstrair hipocritamente a realidade o negar-se que
uma pessoa de 14 (quatorze) anos completos já tem uma noção teórica, bastante
exata, dos segredos da vida sexual e do risco que corre se prestar-se à
lascívia de outrem. Estendendo a presunção da violência aos casos em que o
sujeito passivo é alienado ou débil mental, o projeto obedece ao raciocínio de
que, também aqui, há ausência de consentimento válido e ubi eadem ratio, ibi eadem dispositio.
Por outro lado, se a incapacidade de consentimento faz
presumir a violência, com maioria de razão dever ter o mesmo efeito e estado de
inconsciência da vítima ou sua incapacidade de resistência, seja esta
resultante de causas mórbidas (enfermidade, grande debilidade orgânica,
paralisia etc.), ou de especiais condições físicas (como quando o sujeito
passivo é um indefeso aleijado, ou se encontra acidentalmente tolhido de
movimentos).
71. Sedução é o nomen juris
que o projeto dá ao crime atualmente denominado defloramento. Foi repudiado
este título, porque faz supor como imprescindível condição material do crime a
ruptura do hímen (fios virgineum),
quando,na realidade, basta que a cópula seja realizada com mulher virgem, ainda
que não resulte essa ruptura, como nos casos de complacência himenal.
O sujeito passivo da sedução
é a mulher virgem,maior de 14 (quatorze) e menor de 18 (dezoito) anos. No
sistema do projeto, a menoridade, do ponto de vista da proteção penal, termina
aos 18 (dezoito) anos. Fica, assim, dirimido o ilogismo em que incide a
legislação vigente, que, não obstante reconhecer a maioridade política e a capacidade
penal aos 18 (dezoito) anos completos (Constituição, artigo 117, e Código
Penal, modificado pelo Código de Menores), continua a pressupor a imaturidade
psíquica, em matéria de crimes sexuais, até os 21 (vinte e um) anos.
Para que se identifique o
crime de sedução é necessário que seja praticado “com abuso da inexperiência ou
justificável confiança” da ofendia. O projeto não protege a moça que se
convencionou chamar emancipada, nem tampouco aquela que, não sendo de todo
ingênua, se deixa iludir por promessas evidentemente insinceras.
Ao ser fixada a fórmula
relativa ao crime em questão, partiu-se do pressuposto de que os fatos
relativos à vida sexual não constituem na nossa época matéria que esteja
subtraída, como no passado,ao conhecimento dos adolescentes de 18 (dezoito)
anos completos. A vida, nosso tempo, pelos seus costumes e pelo seu estilo,
permite aos indivíduos surpreender, ainda bem não atingida a maturidade, o que
antes era o grande e insondável mistério, cujo conhecimento se reservava apenas
aos adultos.
Certamente, o direito penal
não pode abdicar de sua função ética, para acomodar-se ao afrouxamento dos
costumes, mas, no caso de que ora se trata, muito mais eficiente que a ameaça
da pena aos sedutores, será retirada da tutela penal à moça maior de 18
(dezoito) anos, que, assim, se fará mais cautelosa ou menos acessível.
Em abono do critério do
projeto, acresce que, hoje em dia, dados os nossos costumes e formas de vida,
não são raros os casos em que a mulher não é a única vítima da sedução.
Já foi dito, com acerto, que
“nos crimes sexuais, nunca o homem é tão algoz que não possa ser, também, um
pouco vítima, e a mulher nem sempre é a maior e a única vítima dos seus
pretendidos infortúnios sexuais” (Filipo
Manci, Dellitti sessuali).
72. Ao configurar o crime de
corrupção de menores, o projeto não
distingue como faz a lei atual, entre corrupção efetiva e corrupção potencial:
engloba as duas species e comina a
mesma pena. O meio executivo do crime
tanto pode ser a prática do ato libidinoso com a vítima (pessoa maior de
quatorze e menor de dezoito anos, como o induzimento deste à prática - ainda
que com outrem, mas para a satisfação da lascívia do agente), ou a presenciar
ato dessa natureza.
73. O rapto para fim libidinoso, é conservado entre os crimes sexuais,
rejeitado o critério do projeto Sá Pereira, que o transladava para a classe dos
crimes contra a liberdade. Nem sempre o meio executivo do rapto é a violência. Ainda mesmo se tratando de
rapto violento, deve-se atender a que, segundo a melhor técnica, o que
especializa um crime não é o meio, mas o fim. No rapto, seja violento,
fraudulento ou consensual, o fim do agente é a posse da vítima para fim sexual
ou libidinoso. Trata-se de um crime dirigido contra o interesse da organização
ético-social da família – interesse que sobreleva o da liberdade pessoal seu
justo lugar, portanto, é entre os crimes contra os costumes.
O projeto não se distancia
muito da lei atual, no tocante aos dispositivos sobre o rapto. Ao rapto
violento ou próprio (vi aut minis) é
equiparado o rapto per fraudem (compreensivo
do rapto per insidias). No rapto
consensual (com ou sem sedução), menos severamente punido,a paciente só pode
ser a mulher entre os 14 (quatorze) e 21 (vinte e um) anos (se a raptada é
menor de quatorze anos, o rapto se presume violento), conservando-se, aqui, o
limite da menoridade civil, de vez que essa modalidade do crime é,
principalmente, uma ofensa ao pátrio poder ou autoridade tutelar (in parentes vel tutores).
A pena, em qualquer caso, é
diminuída de um terço, se o crime é praticado para fim de casamento, e da
metade, se dá-se a resolutio in integrum
da vítima e sua reposição in loco tuto ac
libero.
Se ao rapto se segue outro
crime contra a raptada, aplica-se a regra do concurso material. Fica, assim,
modificada a lei vigente, segundo a qual, se o crime subsequente é o
defloramento ou estupro (omitida referência a qualquer outro crime sexual), a
pena do rapto é aumentada da sexta parte.
74. O projeto reserva um
capítulo especial às disposições comuns
aos crimes sexuais até aqui mencionados. A primeira delas se refere às formas qualificadas de tais crimes, isto é, aos casos em que,
tanto havido emprego de violência, resulta lesão corporal grave ou a morte da
vítima: no primeiro caso, a pena será reclusão por 4 (quatro) a 12 (doze) anos;
no segundo, a mesma pena, de 8 (oito) a 20 (vinte) anos.
A seguir, vêm os preceitos
sobre a violência ficta, de que acima
já se tratou, sobre a disciplina da ação penal na espécie e sobre agravantes
especiais. Cumpre notar que uma disposição comum aos crimes em questão não
figura na “parte especial”, pois se achou que ficaria melhor colocada no título
sobre a extinção da punibilidade da
“parte geral”: é o que diz respeito ao subsequens
matrimonium (art. 108, VIII), que,
antes ou depois da condenação, exclui a imposição da pena.
75. Ao definir as diversas
modalidades do lenocínio, o projeto
não faz depender o crime de especial meio executivo, nem da habitualidade nem do fim de lucro. Se há
emprego de violência, intimidação ou fraude, ou se o agente procede lucri faciendi causa, a pena é
especialmente agravada. Tal como na lei atual, o lenocínio qualificado ou familiar é mais severamente punido que o lenocínio
simples. Na prestação de local a encontros para fim libidinoso, é taxativamente
declarado que o crime existe independentemente de mediação direta do agente
para esses encontros ou de fim de lucro.
São especialmente previsto o
rufianismo (alphonsisme, dos franceses,
mantenufismo, dos italianos; Zuhalterei, dos alemães) e o tráfico de
mulheres.
Na configuração do ultraje público ao pudor, o projeto
excede de muito em providência à lei atual.
DOS CRIMES CONTRA A FAMÍLIA
76. O título consagrado aos
crimes contra a família divide-se em
quatro capítulos, que correspondem, respectivamente, aos “crimes contra o
casamento”, “crimes contra o estado de filiação”, “crimes contra a assistência
familiar” e “crimes contra o pátrio poder, tutela ou curatela”. O primeiro
entre os crimes contra o casamento é a bigamia – nomen juris que o projeto substitui ao de poligamia, usado pela
lei atual. Seguindo-se o mesmo critério desta, distingue-se, para o efeito de
pena, entre aquele que, sendo casado, contrai novo casamento e aquele que,
sendo solteiro, se casa com pessoa que sabe casada. Conforme expressamente
dispõe o projeto, o crime bigamia existe desde que, ao tempo do segundo
casamento, estava vigente o primeiro, mas, se o crime se extingue, pois que a
declaração de nulidade retroage ex tunc.
Igualmente não subsistirá o crime se vier a ser anulado o segundo casamento,
por motivo outro que não o próprio impedimento do matrimônio anterior (pois a
bigamia não pode excluir-se a si mesma). Releva advertir que na “parte geral”
(artigo 111, e) se determina, com
inovação da lei atual, que, no crime de bigamia, o prazo de prescrição da ação
penal se conta da data em que o fato se tornou conhecido.
77. O projeto mantém a
incriminação do adultério, que passa,
porém, a figurar entre os crimes contra a família, na subclasse dos crimes
contra o casamento. Nãohá razão convincente para qe se deixe tal fato à margem
da lei penal. É incontestável que o adultério ofende um indeclinável interesse
de ordem social, qual seja o que diz com a organização ético-jurídica da vida
familiar. O exclusivismo da recíproca posse sexual dos cônjuges é condição de
disciplina, harmonia e continuidade do núcleo familiar. Se deixasse impune o
adultério, o projeto teria mesmo contrariado o preceito constitucional que coloca
a família “sob a proteção especial do Estado”. Uma notável inovação contém o
projeto: para que se configure o adultério do marido, não é necessário que este
tenha e mantenha concubina, bastando, tal como no adultério da mulher, a
simples infidelidade conjugal.
Outra inovação apresenta o
projeto, no tocante ao crime em questão: a pena é sensivelmente diminuída,
passando a ser de detenção por 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses; é de 1 (um)
mês, apenas,o prazo de decadência do direito
de queixa (e não prescrição da ação
penal), e este não pode ser exercido pelo cônjuge desquitado ou que
consentiu no adultério ou o perdoou expressa ou tacitamente. Além disso, o juiz
pode deixar de aplicar a pena, se havia cessado a vida em comum dos cônjuges ou
se o querelante avia praticado qualquer dos atos previstos no artigo 317 do
Código Civil. De par com a bigamia e o adultério, são previstas, no mesmo
capítulo, entidades criminais que a lei atual ignora. Passam a constituir ilícito penal os seguinte fatos, até
agora deixados impunes ou sujeitos a meras sanções civis: contrair casamento,
induzindo em erro essencial o outro contraente, ou ocultando-lhe impedimento
que não seja o resultante de casamento anterior (pois,neste caso, o crime será
o de bigamia); contrair casamento, conhecendo a existência de impedimento que
acarrete sua nulidade absoluta, fingir de autoridade para celebração do
casamento e simular casamento. Nestas duas últimas hipóteses, trata-se de
crimes subsidiários; só serão punidos por si mesmos quando não constituam
participação em crime mais grave ou elemento de outro crime.
78. Ao definir os crimes
contra o estado de filiação, adota o
projeto fórmulas substancialmente idênticas à do Código atual, que os conhece
sob a rubrica de “parto suposto e outros fingimentos”.
79. É reservado um capítulo
especial aos “crimes contra a assistência familiar”, quase totalmente ignorados
da legislação vigente. Seguindo o
exemplo dos códigos e projetos de codificação mais recentes, o projeto
faz incidir sob a sanção penal o abandono
de família. O reconhecimento desta nova specie criminal é, atualmente,
ponto incontroverso. Na “Semana Internacional de direito”, realizada em Paris,
no ano de 1937, lonesco-Doly, o representante da Romênia, fixou, na espécie,
com acerto e precisão, a ratio da incriminação: “A instituição essencial que
é a família atravessa atualmente uma crise bastante grave. Daí, a firme, embora
recente, tendência no sentido de uma intervenção do legislador, para substituir
as sanções civis, reconhecidamente ineficazes, por sanções penais contra a
violação dos deveres jurídicos de assistência que a consciência jurídica
universal considera como o assento básico do status famillie. Virá isso contribuir para, em complemento de
medidas que se revelaram insuficientes par a proteção da família, conjurar um
dos aspectos dolorosos da crise por que passa esse instituição. É, de todo em
todo, necessário que desapareçam certos fatos profundamente lamentáveis, e
desgraçadamente cada vez mais frequentes, como seja o dos maridos que abandonam
suas esposas e filhos, deixando-os sem
meios de subsistência, ou o dos filhos que desamparam na miséria seus velhos
pais enfermos ou inválidos”.
É certo que a vida social no
Brasil não oferece, tão assustadoramente como em outros países, o fenômeno da
desintegração e desprestígio da família,
mas a sanção penal contra o “abandono de família, inscrita no futuro Código,
virá contribuir, entre nós, para atalhar ou prevenir o mal incipiente.
Para a conceituação do novo
crime, a legislação comparada oferece dois modelos: o francês, demasiadamente
restrito, e o italiano, excessivamente amplo. Segundo a lei francesa, o crime
de abandono de família é constituído pelo fato de, durante um certo período
(três meses consecutivos), deixar o agente de pagar a pensão alimentar
decretada por um decisão judicial passada em julgado. é o chamado abandono pecuniário. Muito mais extensa,
entretanto,é a fórmula do Código Penal italiano, que foi até a incriminação do
abandono moral, sem critérios objetivos na delimitação deste. O projeto
preferiu a fórmula transacional do chamado abandono material. Dois são os
métodos adotados na incriminação: um direto, isto é, o crime pode ser
identificado diretamente pelo juiz penal, que deverá verificar, ele próprio, se
o agente deixou de prestar os recursos
necessários; outro indireto,
,isto é, o crime existirá automaticamente se, reconhecida pelo juiz do cível a
obrigação de alimentos e fixado seu quantum
na sentença, deixar o agente de cumpri-la durante 3 (três) meses consecutivos.
Não foi, porém, deixado inteiramente à margem o abandono moral. Deste cuida o projeto em casos especiais,
precisamente definidos, como aliás, já fez o atual Código de Menores. É até
mesmo incriminado o abandono intelectual,
embora num caso único e restritíssimo (artigo 246), deixar, sem Just causa, de
ministrar ou fazer ministrar instrução primária a filho em idade escolar.
Segundo o projeto, só é
punível o abandono intencional ou doloso, embora não se indague do motivo
determinante se por egoísmo, cupidez, avareza, ódio etc. foi rejeitado o
critério de fazer depender a ação penal de prévia queixa da vítima, pois isso
valeria, na prática, por tornar letra morta o preceito penal. Raro seria o caso
de queixa de um cônjuge contra o outro, de um filho contra o pai ou de um pai
contra o filho. Não se pode deixar de ter em atenção o que Marc Ancel chama pudor familliae, isto é, o sentimento
que inibe o membro de uma família de revelar as faltas de outro, que, apesar
dos pesares, continua a merecer o seu repeito e talvez o seu afeto. A pena
cominada na espécie é alternativa: detenção ou multa. Além disso, ficará o
agente sujeito, na conformidade da regra geral sobre as “penas acessórias”
(Capítulo V do Título V da Parte Geral), à privação definitiva ou temporária de
poderes que, em relação à vítima ou vítimas, lhe sejam atribuídos pela lei
civil, em consequência do status familliae.
Cuidando dos crimes contra o pátrio poder, tutela ou
curatela, o projeto limita-se a
reivindicar para o futuro Código Penal certos preceitos do atual Código de
Menores, apenas ampliados no sentido de abranger na proteção penal, além dos
menores de 18 (dezoito) anos, os interditos.
DOS CRIMES CONTRA A
INCOLUMIDADE PÚBLICA
80. Sob este título, são
catalogados, no projeto, os crimes que a lei atual determina contra a tranquilidade pública. Estão eles
distribuídos em três subclasses: crimes
de perigo comum (isto é, aqueles que, mais nítida ou imediatamente que os
das outras subclasses, criam uma situação de perigo de dano a um indefinido
número de pessoas), crimes contra a
segurança dos meios de comunicação e transporte e outros serviços públicos
e crimes contra a saúde pública. Além
de reproduzir, com ligeiras modificações, a lei vigente, o projeto supre
omissões desta, configurando novas entidades criminais, tais como “uso perigoso
de gases tóxicos”, o “desabamento ou desmoronamento” (isto é, o fato de causar
em prédio próprio ou alheio, desabamento total ou parcial de alguma construção,
ou qualquer desmoronamento, expondo a perigo a vida, integridade física ou
patrimônio de outrem), , “subtração, ocultação ou inutilização de material de
salvamento”, difusão de doença ou praga”, “periclitação de qualquer meio de
transporte público” (a lei atual somente cuida da periclitação de transportes
ferroviários ou marítimos, não se referindo,sequer, à do transporte aéreo, que
o projeto equipara àqueles), “atentado contra a segurança de serviços de
utilidade pública”, “provocações de epidemia”, “violação de medidas preventivas
contra doenças contagiosas” etc.
Relativamente às formas
qualificadas dos crimes em questão, é adotada a seguinte regra geral (art.
256): no caso de dolo,se resulta a alguém lesão corporal de natureza grave, a
pena privativa da liberdade é aumentada de metade,e, se resulta morte, é
aplicada em dobro; no caso de culpa, se resulta lesão corporal (leve ou grave),
as penas são aumentadas de metade e, se resulta morte, e aplicada de homicídio
culposo, aumentada de um tempo.
DOS CRIMES CONTRA A PAZ
PÚBLICA
81. É esta a denominação que
o projeto atribui ao seguinte grupo de crimes: “incitação de crime”, “apologia
de crime ou criminoso” e “quadrilha ou bando” (isto é, associação de mais de três
pessoas para o fim de prática de crimes comuns). É bem de ver que os
dispositivos sobre as duas primeiras entidades criminais citadas não abrangem a
provocação ou apologia de crimes político-sociais, que continuarão sendo objeto
de legislação especial, segundo dispõe o artigo 360.
DOS CRIMES CONTRA A FÉ
PÚBLICA
82. O título reservado aos crimes contra a fé pública, divide-se em quatro capítulos, com as seguintes
epígrafes: “Da moeda falsa”, “Da falsidade de títulos e outros papéis públicos”,
“Da falsidade documental” e “De outras falsidades”. Os crimes de testemunho falso e denunciação caluniosa, que no, no Código atual, figuram entre os
crimes lesivos da fé pública, passam para o seu verdadeiro lugar, isto é, para
o setor dos crimes contra a administração
da justiça (subclasse dos crimes
contra a administração pública).
83. Ao configurar as
modalidades do crimen falsi, o
projeto procurou simplificar a lei penal vigente, evitando superfluidades ou
redundâncias,, no mesmo passo, suprir lacunas de que se ressente a mesma lei. À
casuística do falsum são acrescentados os seguintes fatos: emissão de moeda com
título ou peso inferior ao determinado em lei, desvio e antecipada circulação
de moeda; reprodução ou adulteração de selos destinados à filatelia; supressão
ou ocultação de documentos (que a lei atual prevê como modalidade de dano);
falsificação do sinal empregado no contrate de metal precioso ou na
fiscalização aduaneira ou sanitária, ou para autenticação ou encerramento de
determinados objetos, u comprovação do cumprimento de formalidades legais;
substituição de pessoa e falsa identidade (não constituindo tais fatos elemento
de crime mais grave).
Para dirimir as incertezas
que atualmente oferece a identificação da falsidade ideológica foi adotada uma
fórmula suficientemente ampla e explícita: “Omitir, em documento público ou
particular, declarações que dele deviam constar, ou inserir ou fazer inserir
nele declarações falsas ou diversas das que deviam ser escritas, como fim de
prejudicar um direito, criar uma obrigação, ou alterar a verdade de fatos
juridicamente relevantes”.
DOS CRIMES CONTRA A
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
84. Em último lugar, cuida o
projeto dos crimes contra a administração
pública repartidos em três subclasses: “crimes praticados por funcionário
público contra a administração em geral”, crimes praticados por particular
contra a administração em geral”e “crimes contra a administração da justiça”. Várias
são as inovações introduzidas, no sentido de suprir omissões ou retificar
fórmulas da legislação vigente. Entre os fatos incriminados como lesivos do interesse
da administração pública, figuram os seguintes, até agora, injustificadamente,
deixados à margem da nossa lei penal: emprego irregular de verbas e rendas
pública; advocacia administrativa (isto é, “patrocinar, direta ou
indiretamente, interesse privado junto à administração pública, valendo-se da
qualidade de funcionário”); violação do sigilo funcional, violação do sigilo de
proposta em concorrência pública; exploração de prestígio junto à autoridade
administrativa ou judiciária (venditio
fumi); obstáculo ou fraude contra concorrência ou hasta
pública,inutilização de objetos; motim de presos; falsos avisos de crime ou
contravenção; autoacusação falsa; coação
no curso de processo judicial, fraude processual; exercício arbitrário das
próprias razões, favorecimento post
factum a criminosos (o que a lei atual só parcialmente incrimina como forma
de cumplicidade); tergiversação do procurador judicial; reingresso de
estrangeiro expulso.
85. O artigo 327 do projeto
fixa, para os efeitos penais, a noção de funcionário público: “Considera-se
funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou
sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública”. Ao funcionário
público é equiparado o empregado de entidades paraestatais. Os conceitos da
concussão, da corrupção (que a lei atual chama peita ou suborno), da resistência
e do desacato são ampliados. A concussão
não se limita, como na lei vigente, ao crimen
superexactinis ( de que o projeto cuida em artigo especial), pos consiste,
segundo o prjeto, em “exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente,
mesmo fora das funções, ou antes de assumi-las, mas em razão delas, qualquer
retribuição indevida”.
A corrupção é reconhecível mesmo quando o funcionário não tenha ainda
assumido o cargo. Na resistência, o
sujeito passivo não é exclusivamente o funcionário
público, mas também qualquer pessoa que lhe esteja, eventualmente,
prestando assistência.
O desacato se verifica não só quando o funcionário se acha no
exercício da função (seja, ou não, o ultraje infligido propter officium), senão também quando se acha extra officium, desde que
a ofensa seja propter officium.
CONCLUSÃO
86. É este o projeto que
tenho a satisfação e a honra de submeter à apreciação de Vossa Excelência.
O trabalho de revisão do
projeto Alcântara Machado durou justamente 2 (dois) anos. Houve3 tempo suficiente
para exame e meditação da matéria em todas as suas minúcias e complexidades. Da
revisão resultou um novo projeto. Não foi este o propósito inicial. O novo
projeto não resultou de plano preconcebido, nasceu, naturalmente, à medida que foi
progredindo o trabalho de revisão. Isto em nada diminuiu o valor do projeto
revisto. Esse constituiu uma etapa útil e necessária à construção do projeto
definitivo.
A obra legislativa do Governo
de Vossa Excelência é, assim, enriquecida com uma nova codificação, que nada
fica a dever aos grandes monumentos legislativos promulgados recentemente em
outros países. A Nação ficará a dever a Vossa Excelência, dentre tantos que já
lhe deve, mais este inestimável serviço à sua cultura.
Acredito que, na perspectiva
do tempo, a obra de codificação do Governo de Vossa Excelência há de ser
lembrada como um dos mais importantes subsídios trazidos pelo seu Governo, que
tem sido um governo de unificação nacional, à obra de unidade política e
cultural do Brasil.
Não devo encerrar esta
exposição, sem recomendar especialmente a Vossa Excelência todos quantos constituíram
para que pudesse realizar-se a nova codificação penal no Brasil. Dr. Alcântara
Machado, Ministro A. J. da Costa e Silva, Dr. Vieira Braga, Dr. Nelson Hungria,
Dr. Roberto Lira, Dr. Narcélio de Queiroz. Não estaria, porém, completa a lista
se não acrescentasse o nome do Dr. Abgar Renault, que me prestou os mais
valiosos serviços da redação final do projeto.
Aproveito e ensejo, Senhor
Presidente, para renovar a vossa Excelência os protestos do meu mais profundo
respeito.
Francisco Campos.
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