Direito Civil Comentado
- Art. 421, 422, 423
- Das
Arras ou Sinal – VARGAS, Paulo S. R.
Parte
Especial - Livro I – Do Direito das Obrigações
Título V
– DOS CONTRATOS EM GERAL
(art. 421 a 480) Capítulo I – Disposições
Gerais –
Seção I- Preliminares
- vargasdigitador.blogspot.com
Art. 421. A
liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do
contrato.
No diapasão de Nelson Rosenvald, a teoria contratual
contemporânea contempla quatro grandes princípios: autonomia privada, boa-fé,
justiça contratual e função social do contrato.
O art. 421 inaugura o estudo dos contratos,
demonstrando a imprescindível conjugação entre a liberdade contratual e o
princípio constitucional da solidariedade (art. 3º, I, CF).
Remotamente, a função social do contrato
prendia-se à própria função social da propriedade, eis que no liberalismo do
século XIX o dogma da autonomia da vontade e a ampla liberdade contratual
serviam de instrumento para que os indivíduos dessem efetividade ao direito de
propriedade.
Atualmente, os contratos são instrumentos por
excelência de circulação de riquezas, sendo que as trocas demandam utilidade e
justiça, censurando-se assim o abuso da liberdade contratual.
A função social não coíbe a liberdade de
contratar, como induz a dicção da norma, mas legitima a liberdade
contratual. A liberdade de contratar é plena, pois não existem restrições
ao ato de se relacionar. Porém, o ordenamento jurídico deve submeter a
composição do conteúdo do contrato a um controle de merecimento, tendo em vista
as finalidades eleitas pelos valores que estruturam a ordem constitucional.
Atendendo ao que havia muito já mencionava o
art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, a função social do contato
objetiva conjugar o bem comum dos contratantes e da sociedade. Portanto,
podemos cogitar uma função social interna e uma função social externa do
contrato.
A função social interna concerne à
indispensável relação de cooperação entre os contratantes, por toda a vida da
relação. Implica a necessidade de os parceiros se identificarem como sujeitos
de direitos fundamentais e titulares de igual dignidade. Assim, deverão
colaborar mutuamente nos deveres de proteção, informação e lealdade contratual,
pois a finalidade de ambos é idêntica: o adimplemento, da forma mais
satisfatória ao credor e menos onerosa ao devedor.
Nesse plano, a função social se converte sem
limite positivo e interno à estrutura contratual, impedindo a formação de uma
relação de subordinação sobre a pessoa do devedor, o que implicaria a quebra de
sua autonomia privada com reflexo em seus direitos de personalidade.
Em qualquer relação contratual, os partícipes
cedem uma parcela de sua liberdade jurídica em prol do êxito do programa comum.
A função social interna pretende acautelar os contratantes da recuperação dessa
liberdade contratual ao término do empreendimento conjunto.
Por outro ângulo, é sabido que os contratos
interessam à sociedade. É inconcebível crer que, no momento atual, possam-se
plagiar os oitocentistas, alegando que a relação contratual é res inter
alios acta (ou seja, que apenas concerne às partes, e não a terceiros).
Os bons e maus contratos repercutem
socialmente. Ambos os gêneros produzem efeito cascata sobre toda a economia. Os
bons contratos promovem a confiança nas relações sociais. Já os contratos inquinados
por cláusulas abusivas resultam em desprestígio aos fundamentos da boa-fé e
quebra de solidariedade social.
Daí a necessidade de oponibilidade externa dos
contratos em desfavor dos interesses dos contratantes. Ou seja, é possível que
os contratos satisfaçam aos desígnios particulares dos contratantes, mas
ofendam interesses meta-individuais = coletivos ou difusos. Basta supor a
realização de avenças que afetem o meio ambiente, direitos de consumidores ou a
livre concorrência. Em tais casos, a sociedade poderá intervir sobre as
cláusulas contratuais ofensivas a direitos fundamentais.
O grande debate que hoje se estabelece é
pertinente a tutela externa do crédito. As relações creditícias escapam do
controle de seus artífices, alcançando terceiros que, algumas vezes, podem ser
ofendidos por elas e, em outras hipóteses, podem até mesmo se colocar em
situação de violar a relação da qual não fazem parte.
Sem dúvida, não é raro que um terceiro seja
atingido por um contrato que, em princípio, lhe seja completamente estranho.
Seria o caso daquele que é vítima de um acidente de consumo, derivado de
relação em que não participara como consumidor stricto sensu (art. 2º do
CDC). De acordo com o art. 18 do Código de Defesa do Consumidor, o bystander
possui ação de responsabilidade objetiva contra os fornecedores do produto ou
serviço defeituoso, na qualidade de consumidor equiparado.
Poder-se-ia inserir ainda a situação daquele
que é vítima de um acidente de trânsito com relação ao contrato entre o autor
do ilícito – que se recusa a ressarcir o dano – e a seguradora. No mesmo
sentido, a situação do promissário comprador que integralizou as prestações do
imóvel, em face do contrato de mútuo hipotecário entre a instituição financeira
e a construtora que não lhe repassou os créditos.
Porém, da mesma forma que podem ser afetados
por contratos alheios, terceiros também podem agir de forma a violar uma
relação contratual em andamento. A função externa do contrato é via de mão
dupla. Ilustrativamente, há o parecer de Antônio Junqueira de Azevedo (RT750/113)
acerca da atuação de distribuidoras de combustíveis que, ao promover a venda de
produtos a postos de gasolina, quebram a exclusividade de fornecimento com outra
distribuidora. A lesão ao contrato primitivo permite que se responsabilize a
distribuidora, em solidariedade passiva com o posto de gasolina.
Em suma, a sociedade não pode se portar de modo
a ignorar a existência de contratos firmados. Isso explica uma tendência de
prestigiar a oponibilidade erga omnes das relações contratuais, com a
imposição de um dever genérico de abstenção por parte de terceiros da prática
de relações contratuais que possam afetar a segurança e a certeza dos contratos
estabelecidos. Aliás, nesse mesmo sentido existe a regra do CC, 608.
Não se trata aqui de revogar a tradicional
relatividade dos contratos, pois os seus efeitos obrigacionais compreendem
apenas os seus protagonistas, mas de atenuar os seus efeitos perante a
coletividade, prestigiando uma oponibilidade geral à maneira pela qual
tradicionalmente vislumbramos nos direitos reais.
Em síntese, todo contrato é uma soma de seu
tipo, sua estrutura e sua função. O tipo emana da conformação mínima do
ordenamento jurídico sobre as relações econômicas mais comuns. A estrutura é
dada pela vontade das partes no espaço reservado pela sociedade ao exercício da
autonomia privada. A função social diz respeito às consequências objetivas da
relação sobre a sociedade.
A função social do contrato é uma cláusula
geral. Norma intencionalmente formulada de maneira vaga e imprecisa, a fim de
que o magistrado possa densificar o seu conteúdo. A concretização da cláusula
geral se dará em maior ou menor grau, conforme a concretude dos interesses
envolvidos e as peculiaridades do caso. Diversamente do que ocorre com a função
social da propriedade, sobre a qual a Constituição Federal (arts. 182 e 184) é
explícita quanto às sanções pelo seu inadimplemento, descurou o legislador de
qualificar a consequência da ofensa à função social do contrato.
Parece-nos que, em casos extremos, há que
aplicar a invalidade do negócio jurídico, por nulidade, em razão da ofensa à
norma de ordem pública, na dicção do parágrafo único do art. 2.035. contudo,
prestigiando-se o princípio da conservação dos negócios jurídicos, sempre que
possível, restringir-se-á a sanção ao plano da ineficácia da cláusula ofensiva
à função social, preservando-se a relação jurídica no restante, como sugere o
próprio artigo em comento, ao aludir a relação entre a função social e o exercício
(e não a validade) da liberdade contratual.
Por último, não há similitude entre a
declaração de invalidade do contrato por ilicitude do objeto e a ofensa à
função social. Prende-se a ilicitude do objeto (art. 104, II, do CC) à
investigação da causa do contrato e dos aspectos relacionados à vontade subjetiva
das partes. Já a função social se prende às consequências sociais e objetivas
do contrato, independentemente da sua origem. Por isso, é mesmo possível que o
objeto contratual seja ilícito na formulação, sem que isso importe em quebra de
sua função social. A recíproca é válida (NELSON ROSENVALD, apud Código Civil Comentado: Doutrina e
Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários
autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 490 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 17/07/2019.
Revista e atualizada nesta data por VD).
Em seu comentário, nos lembra Ricardo Fiuza que
a “função social do contato” acentua a diretriz de “sociabilidade do direito”,
de que nos fala percucientemente, o eminente prof. Miguel Reale, como princípio
a ser observado pelo intérprete na aplicação dos contratos. Por identidade
dialética guarda intimidade com o princípio da “função social da propriedade”
previsto na Constituição Federal.
A concepção social do contrato apresenta-se,
modernamente, como um dos pilares da teoria contratual. Defronta-se com o
vetusto princípio pacta sunt servanda, exaltado, expressamente, pelos
Códigos Civil francês (art. 1.134) e italiano (art. 1.372) para, atenuando a
autonomia da vontade, promover a realização de uma justiça comutativa.
A moldura limitante do contrato tem o escopo de
acautelar as desigualdades substanciais entre os contraentes, como adverte José
Lourenço, valendo como exemplo os contratos de adesão. O negócio jurídico
haverá de ser fixado em seu conteúdo, segundo a vontade das partes. Esta,
todavia, apresenta-se auto-regrada em razão e nos limites da função social,
princípio determinante e fundamental que, tendo origem na valoração da
dignidade humana (Art. 1 ~ da CF), deve prescrever a ordem econômica e
jurídica.
Por sua função social,
o contrato é submetido a novos elementos integradores de relevância à sua
formação, existência e execução, superando a esfera consensual. Mário Aguiar
Moura afirma que, segundo a concepção moderna, “o contrato fica em condições de
prestar relevantes serviços ao progresso social, desde que sobre as vontades
individuais em confronto se assente o interesse coletivo, através de regras de
ordem pública, inafastáveis pelo querer de ambos ou de qualquer dos
contratantes, com o propósito maior de evitar o predomínio do economicamente fone
sobre o economicamente fraco” (Direito
Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 226, apud Maria Helena Diniz, Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª
ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 17/07/2019, corrigido e aplicadas as
devidas atualizações VD).
No diapasão de Guimarães e Mezzalina, fala-se
inicialmente do “Princípio na liberdade de contratar. O dispositivo cuida de
dois dos princípios que regem os contratos: o princípio da liberdade contratual
ou princípio da autonomia da vontade, de um lado; e o princípio da função
social do contrato, de outro.
O princípio da liberdade contratual compõe-se da
liberdade de contratar, propriamente dita, e da liberdade de estabelecer o conteúdo
do contrato. A liberdade de contratar sujeita-se a limitações legais, como a
obrigatoriedade de contratar do fornecedor nas relações de consumo (Código de
Defesa do Consumidor, art. 39, II e IX) e a de contratar seguros obrigatórios.
Sujeita-se, igualmente, a restrições de caráter negocial, como no caso de
contrato preliminar que obriga os contratantes a realizar o contrato
definitivo.
A liberdade de estabelecer o conteúdo do
contrato é restringida por normas de ordem pública, de caráter cogente,
inclusive as que concretizam a função social dos contratos. É também limitada
pelos bons costumes. Em nome deles não se admite, por exemplo, a cobrança por
prestação de serviços de natureza sexual.
Na sequência, Guimarães e Mezzalina citam o Princípio
da função social do contrato, que consiste em abordar a liberdade
contratual em seus reflexos sobre a sociedade (terceiros) e não apenas no campo
das relações entre as partes que o estipulam contratantes.
Embora o princípio somente tenha sido
positivado no ordenamento jurídico brasileiro com o Código Civil de 2002,
institutos que concretizam o princípio da função social do contrato constituem
o cerne do Direito Civil: simulação; fraude contra credores; fraude à execução;
propaganda enganosa; concorrência desleal.
No âmbito da função social do contrato
localiza-se o princípio da solidariedade, de fundamento constitucional (art.
3º, inciso I, da Constituição da República), estabelece a orientação
solidarista do direito, e impõe a necessidade de se observar os reflexos da
atuação individual perante a sociedade.
Exemplo de aplicação do princípio da
solidariedade ocorreu em execução de hipoteca pelo inadimplemento do
construtor. O STJ entendeu pela mitigação do direito do credor, em favos dos
adquirentes, que haviam pago o preço de aquisição das unidades ao construtor
(STJ, EDcl no REsp n. 573.059/RS, Rel. Min. Luiz Fux, j. 03.05.2005).
Para
uma crítica ao “solidarismo jurídico” (SAMPAIO Jr., Rodolpho Barreto. Da liberdade ao controle: os
riscos do novo direito civil brasileiro. Belo Horizonte: PUC Minas Virtual,
2009, p. 30-38 (Direito Civil Comentado, Luís Paulo Cotrim Guimarães
e Samuel Mezzalina, apud Direito.com acesso
em 17.07.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Segundo Anderson Schreiber há modificações no Código Civil de 2002, a partir
da MP 881/2019. Já no capítulo do Código Civil dedicado aos contratos em geral,
foram diversas as modificações realizadas. Primeiramente, a MP 881/2019 inseriu
na parte final do Caput do artigo 421, que consagra o princípio da função
social do contrato, a necessidade de observância ao disposto na chamada
Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.
O acréscimo parece
ter tentado prestigiar os princípios norteadores daquela Medida Provisória,
quais sejam, a “proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade
econômica” (art. 1º). A função social, contudo, exerce justamente o papel de
impor juízo de merecimento de tutela sobre o exercício da liberdade contratual,
condicionando-a à promoção dos valores constitucionais. Determinar que a
aplicação da noção de função social do contrato se dê com observância da
liberdade econômica é uma contradição nos seus próprios termos e parece
exprimir uma absoluta falta de conhecimento do próprio conceito de função
social. O acréscimo somente não merece crítica mais aguda porque é inócuo:
afirma, a rigor, que a liberdade de contratar deve ser exercida em razão e nos
limites da função social do contrato, observada a própria liberdade de
contratar.
Embora tautológica,
a nova redação do Caput do art. 421 não promete trazer qualquer transformação
concreta no modo como nossa doutrina e jurisprudência aplicam a noção de função
social do contrato – noção que, de resto, derivaria diretamente da
Constituição, independentemente de atuação do legislador ordinário, na medida
em que a funcionalização dos institutos jurídicos ao atendimento de valores
sociais relevantes resulta da própria primazia que o Constituinte atribui a
tais valores, mesmo quando tutela a livre iniciativa, não como liberdade vazia,
mas em atenção ao seu “valor social” (CR, art. 1º, IV).
Indo além, a MP
881/2019, também introduziu no artigo 421, um parágrafo único, que estabelece a
prevalência de um assim chamado “princípio da intervenção mínima do Estado” e
reserva caráter “excepcional” à revisão contratual “determinada de forma
externa às partes”. Mais uma vez, o equívoco salta aos olhos. Não existe um “princípio
da intervenção mínima do Estado”; a intervenção do Estado nas relações
contratuais de natureza privada é imprescindível, quer para assegurar a força
vinculante dos contratos, quer para garantir a incidência das normas jurídicas,
inclusive das normas constitucionais, de hierarquia superior à referida Medida
Provisória. A MP 881/2019 parece ter se deixado levar aqui por uma certa
ideologia que enxerga o Estado como inimigo da liberdade de contratar, quando,
na verdade, a presença do Estado – e, por conseguinte, o próprio Direito –
afigura-se necessária para assegura o exercício da referida liberdade.
No que tange à
revisão contratual, também parece ter incorrido a Medida Provisória nessa falsa
dicotomia entre atuação do Estado-juiz e liberdade de contratar, quando, ao
contrário, a revisão contratual privilegia o exercício dessa liberdade ao
preservar a relação contratual estabelecida livremente entra as partes, ao
contrário do que ocorre com a resolução contratual, remédio a que já tem
direito todo contratante nas mesmas situações em que a revisão é cabível, em
conformidade com o art. 478. Se a intenção da MP foi evitar que revisões
judiciais de contratos resultem em alterações excessivas do pacto estabelecido
entre as partes, empregou meio inadequado: afirmar que a revisão contratual
deve ser excepcional nada diz, porque não altera as hipóteses em que a revisão
se aplica, hipóteses que são expressamente delimitadas no próprio Código Civil.
O novo parágrafo único acrescentado pela MP tampouco indica parâmetros,
critérios ou limite à revisão contratual, o que leva a crer, mais uma vez, que
a alteração não produzirá qualquer efeito relevante no modo como a revisão contratual é aplicada
na prática jurisprudencial brasileira – aplicação que, de resto, já se dá com
bastante cautela e parcimônia, sem interferências inusitadas no conteúdo
contratual. (Artigo de
Anderson Schreiber, publicado por Flávio Tartuce, aqui reproduzido 10.07.2019,
corrigido e aplicadas as devidas atualizações (VD)) existe uma Medida Provisória em Abril/2019 de MP
881/2019, com alterações ao Código Civil – Parte 1).
Art. 422. Os contratantes são
obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os
princípios de probidade e boa-fé.
No diapasão de Nelson Rosenvald, a
excepcional ascensão da boa-fé objetiva nas mais recentes legislações é fruto
da superação de um modelo formalista e positivista que cominou os ordenamentos
jurídicos no século XIX, sobrevivendo até o fim da II Guerra Mundial.
O dispositivo
é a consagração do princípio da Treu und Glauben (lealdade &
confiança), radicado no § 242 do BGB (Código Civil Alemão) de 1900: “o devedor
está adstrito a realizar a prestação tal como exija a boa-fé, com consideração pelos
costumes do tráfego”.
Com
a edição de conceitos abertos como o da boa-fé, é possível ao magistrado
adequar a aplicação do direito aos influxos de valores sociais, pois os limites
dos fatos preconizados nas cláusulas gerais são móveis e passíveis de concretização
variável.
Há
que salientar que existem duas acepções de boa-fé, uma subjetiva e outra objetiva.
O princípio da boa-fé objetiva – circunscrito ao campo do direito das
obrigações – é o objeto de nosso enfoque. Compreende ele um modelo de conduta
social, verdadeiro standard jurídico ou regra de conduta, caracterizado
por uma atuação de acordo com determinados padrões sociais de lisura,
honestidade e correção de modo a não frustrar a legítima confiança da outra
parte.
Em
sentido diverso, a boa-fé subjetiva não é um princípio, e sim um estado
psicológico em que a pessoa possui a crença de ser titular de um direito, que em
verdade só existe na aparência. O indivíduo se encontra em escusável situação de
ignorância acerca da realidade dos fatos e da lesão a direito alheio. Localiza-se
como atributo qualificativo de posse (CC, 1201) e requisito da usucapião ordinária
(CC, 1.242); também como elemento de apreciação de indenização de acessões e
benfeitorias (CC, 1.219 e 1.255).
Esse
dado distintivo é crucial: a boa-fé objetiva é examinada externamente, vale
dizer que a aferição se dirige à correção da conduta do indivíduo, pouco
importando a sua convicção. De fato, o princípio da boa-fé encontra a sua
justificação no interesse coletivo de que as pessoas pautem seu agir pela
cooperação e lealdade, incentivando-se o sentimento de justiça social, com repressão
a todas as condutas que importem em desvio aos sedimentados parâmetros de
honestidade e retidão.
Por
isso, a boa-fé objetiva é fonte de obrigações, impondo comportamentos aos
contratantes, segundo regras de correção, na conformidade do agir do homem
comum daquele meio social.
O princípio
da boa-fé atuará como modo de enquadramento constitucional do direito das
obrigações, na medida em que a consideração pelos interesses que a parte
contrária espera obter de uma dada relação contratual mais não é que o respeito
à dignidade humana em atuação ao âmbito negocial.
Os
três grandes paradigmas do Código Civil de 2002 são eticidade, socialidade e
operabilidade. A boa-fé é a maior demonstração de eticidade da obra conduzida
por Miguel Reale. No CC/2002, o neologismo eticidade se relaciona de forma mais
próxima com uma noção de moralidade, que pode ser conceituada como uma forma de
comportamento suportável, aceitável em determinado tempo e lugar. Destarte, a boa-fé
servirá como um parâmetro objetivo para orientar o julgador na eleição das
condutas que guardem adequação com o acordado pelas partes, com correlação
objetiva entre meio e fins. O juiz terá de se portar como um “homem de seu meio
e tempo” para buscar o agir de uma pessoa de bem como forma de valoração das
relações sociais.
Note-se
que a boa-fé sempre será concretizada em consonância com os dados fáticos que
se revelarem na situação jurídica. A eficácia da boa-fé deverá variar conforme
a maior ou menor igualdade das partes no contexto espacial e temporal, enfiam,
a intensidade da aplicação do princípio será aferida nas circunstâncias,
conforme a “ética da situação”.
A boa-fé
é multifuncional. Para fins didáticos, é interessante delimitar as três áreas
de operatividade da boa-fé no Código Civil de 2002. Desempenha papel de paradigma
interpretativo na teoria dos negócios jurídicos (art. 113); assume caráter
de controle, impedindo o abuso do direito subjetivo, qualificando-o como
ato ilícito (art. 187); finalmente, desempenha atribuição integrativa,
pois dela emanam deveres que serão catalogados pela reiteração de precedentes
jurisprudenciais (art. 422).
A função
integrativa da boa-fé resulta do CC, 422. Integrar traz a noção de criar,
conceber. Ou seja, além de servir à interpretação do negócio jurídico, a boa-fé
é uma fonte, um manancial criador de deveres jurídicos para as partes. Devem elas
guardar, tanto nas negociações que antecedem o contrato como durante a execução
deste, o princípio da boa-fé. Aqui, prosperam os deveres de proteção e cooperação
com os interesses da outra parte – deveres anexos ou laterais -, propiciando a realização
positiva do fim contratual na tutela aos bens e à pessoa da outra parte.
O conteúdo
da relação obrigacional é dado pela vontade e integrado pela boa-fé. Com isso,
estamos afirmando que a prestação principal do negócio jurídico (dar, fazer e não
fazer) é um dado decorrente da vontade. Os deveres principais da prestação constituem
o núcleo dominando, a alma da relação obrigacional. Daí que sejam eles que
definem o tipo do contrato.
Todavia,
outros deveres se impõem na relação obrigacional, completamente desvinculados
da vontade de seus participantes. Trata-se dos deveres de conduta, também
conhecidos na doutrina como deveres anexos, deveres instrumentais, deveres laterais,
deveres acessórios, deveres de proteção e deveres de tutela.
Os
deveres de conduta são conduzidos ao negócio jurídico pela boa-fé,
destinando-se a resguardar o fiel processamento da relação obrigacional em que
a prestação se integra. Eles incidem tanto sobre o devedor quanto sobre o
credor, mediante resguardo dos direitos fundamentais de ambos, a partir de uma
ordem de cooperação, proteção e informação, em via de facilitação do
adimplemento, tutelando-se a dignidade do devedor e o crédito do titular ativo.
Por
fim, o grande influxo integrativo da boa-fé está localizado nas relações obrigacionais
duradouras e não naquelas instantâneas em que há coincidência temporal entre a
contratação e a execução. Nas obrigações duradouras, exige-se uma execução com
confiança recíproca e especial observância de diligência no cumprimento da
atividade assumida, pois em uma vinculação de grande período cada uma das
partes depende, mais do que em nenhum outro caso, da boa-fé no cumprimento do
convencionado.
Parece-nos
que o art. 422 não se olvidou da responsabilidade pré-contratual, tampouco da
responsabilidade post pactum finitum. Resta implícito no dispositivo que
os deveres de conduta relacionados ao cumprimento honesto e leal da obrigação também
se aplicam às negociações preliminares (tratativas) e sobre aquilo que se passa
depois do contrato. Não se pode olvidar de que estamos diante de norma de textura
aberta, que induz os operadores à sua colmatação com base em argumentações já
desenvolvidas na doutrina.
Em
verdade, mesmo antes de a relação obrigacional ser pactuada, já existe o
contato social entre as partes. Os deveres de conduta emergem no momento das
primeiras negociações, pois a boa-fé objetiva diz respeito à manutenção da
palavra empenhada. Assim, a complexidade da relação obrigacional apanha todo o
processo relacional construído pelas partes, não se podendo dissociar os acertos
e as promessas inaugurais de tudo aquilo que se verificou após a subscrição do
contrato.
O mesmo
se entende da responsabilidade pós-contratual. A confiança recíproca – que permitiu
a concretização da relação obrigacional – não termina no instante em que a
prestação principal é satisfeita. Há uma enorme expectativa de que o outro
contratante não frustrará os fins do pactuado. Isso explica a razão da
corriqueira imposição de cláusulas de confidencialidade e de não concorrência no
bojo de contratos negociados (NELSON ROSENVALD, apud Código Civil
Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord.
Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 491-492 - Barueri, SP:
Manole, 2010. Acesso 19/07/2019. Revista e atualizada nesta data por VD).
Segundo
a doutrina apresentada por Ricardo Fiuza, referente ao CC, 422, cuida-se de dispositivo
específico sobre os princípios da probidade e da boa-fé. O Código de 1916 não
ofereceu tratamento objetivo a respeito.
O
primeiro princípio versa sobre um conjunto de deveres, exigidos nas relações jurídicas,
em especial os de veracidade, integridade, honradez e lealdade, deles
resultando como corolário lógico o segundo.
O
princípio da boa-fé não apenas reflete uma regra de conduta. Consubstancia a
eticidade orientadora da construção jurídica do novo Código Civil. É, em
verdade, o preceito paradigma na estrutura do negócio jurídico, da qual
decorrem diversas teorias, dentre as quais a teoria da confiança tratada por
Cláudia Lima Marques no alcance da certeza e segurança eu devem emprestar
efetividade aos contratos.
O
dispositivo apresenta, conforme aponta Antonio Junqueira de Azevedo, insuficiências
e deficiências, na questão objetiva da boa-fé nos contratos. As principais insuficiências
convergem às limitações fixadas (período da conclusão do contrato até a sua
execução), não valorando a necessidade de aplicações da boa-fé às fases pré-contratual
e pós-contratual, com a devida extensão do regramento. As deficiências decorrem
da ausência de duas funções, do direito pretoriano, para a cláusula geral da
boa-fé: a supplendi e a corrigendi, no que dizem respeito,
fundamentalmente, aos deveres anexos ao vínculo principal, cláusulas faltantes
e cláusulas abusivas.
Direito
comparado: Código Civil italiano de 1942, art. 1.337; Código Civil português,
art. 227; § 242 do BGB.
Sugestão
legislativa:
As reflexões do eminente jurista, em proeminente estudo, fornecem ponte suficiente
para o aperfeiçoamento do dispositivo, sugerindo-se, por oportuno, ao Deputado
Ricardo Fiuza, a seguinte redação:
Art. 422. Os
contratantes são obrigados a guardar: assim nas negociações preliminares e
conclusão do contrato, como em sua execução e fase pós-contratual, os
princípios da probidade e boa-fé e tudo mais que resulte da natureza do
contrato, da lei, dos usos e das exigências da razão e da equidade (Direito Civil - doutrina, Ricardo
Fiuza – p. 227, apud Maria Helena
Diniz, Código Civil Comentado já impresso
pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 19/07/2019, corrigido
e aplicadas as devidas atualizações VD).
Na
esteira de Guimarães e Mezzalina, são apresentados: caracterização, jurisprudência,
origem histórica da boa-fé objetiva e tipos de atos abusivos que distinguem
este artigo 422.
A caracterização mostra o princípio da boa-fé
objetiva representadas pela ampliação da responsabilidade civil às fases pré-contratual
(culpa in contrahendo) e pós-contratual (culpa post pactum finitum)
e aos deveres laterais.
Jurisprudência:
Direito civil. Responsabilidade civil pré-contratual. A parte interessada em se
tornar revendedora autorizada de veículos tem direito de ser ressarcida dos
danos materiais decorrentes da conduta da fabricante no caso em que esta – após
anunciar em jornal que estaria em busca de novos parceiros e depois de
comunicar àquela a avaliação positiva que fizera da manifestação de seu
interesse, obrigando-a, inclusive, a adiantar o pagamento de determinados
valores – rompa, de forma injustificada, a negociação até então levada a
efeito, abstendo-se de devolver as quantias adiantadas. A responsabilidade
civil pré-negocial, ou se já, a verificada na fase preliminar do contrato, é
tema oriundo da teoria da culpa in contrahendo, formulada
pioneiramente por JHering, que influenciou a legislação de diversos
países. No Brasil, o CC/1916 não trazia disposição específica a respeito do
tema, tampouco sobre a cláusula geral de boa-fé objetiva. Todavia, já se
ressaltava, com fundamento no art. 159 daquele diploma, a importância da tutela
da confiança da necessidade de reparar o dano verificado no âmbito das
tratativas pré-contratuais. Com o advento do CC/2002, da qual se extrai a
necessidade de observância dos chamados deveres anexos ou de proteção. Com base
nesse regramento, deve-se reconhecer a responsabilidade pela reparação de danos
organizados na fase pré-contratual caso verificadas a ocorrência de consentimento
prévio e mútuo no inicio das tratativas, a afronta à boa-fé objetiva com o
rompimento ilegítimo destas, a existência de prejuízo e a relação de
causalidade entre a ruptura das tratativas e o dano sofrido. Nesse contexto, o
dever de reparação não decorre do simples fato de as tratativas terem sido
rompidas e o contrato não ter sido concluído, mas da situação de uma das partes
ter gerado à outra, além da expectativa legítima de que o contrato seria
concluído, efetivo prejuízo material. REsp 1.051.065/AM, Rel. Min.
Ricardo Vllas Bôas Cueva, julgado em 21/2/2013.
A
doutrina distingue os deveres contratuais em primários, secundários e laterais (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé
no direito privado. São Paulo: RT, 2000, p. 439) São estes: a) deveres de cuidado
previdência e segurança; b) deveres de aviso de esclarecimento; c) deveres de
informação (CDC, arts. 12, 14, 18, 20, 20, 31); d) dever de prestar contas; e)
deveres de colaboração e de cooperação; f) deveres de proteção e de cuidado com
a pessoa e o patrimônio da contraparte (ex.: adimplemento substancial do
contrato); g) deveres de omissão e de segredo.
Origem
histórica da boa-fé objetiva. Exceptio doli: instituto de direito romano
contra a utilização de particularidades formais das declarações de vontade ou
do aproveitamento de incompletudes de regras jurídicas, absorvido,
modernamente, pelos demais institutos que concretizam o princípio da boa-fé.
Tipos
de atos abusivos: Venire contra factum
proprium: comportamento
que contraria ato do próprio agente e agride a confiança gerada na parte
contrária. A conduta contrária à lei e às cláusulas contratuais configura
ilicitude e violação do contrato, não configura o venire... Para a
aplicação do venire... é necessário um comportamento não previsto em
regras primárias ou secundárias, que induza confiança da contraparte. Ex.:
Trabalhador que pretende rescisão de contrato por atraso no pagamento de
salários após aprovar plano de recuperação da empresa em que é acordada
moratória; locador que requer o despejo por falta de pagamento após receber
aluguel em local diverso do ajustado por três anos; locador que requer o
despejo por ter o locatário alterado a estrutura do prédio após ter sido
autorizado pelo mesmo locador a realizar as obras de responsabilidade deste; proprietário
que exige a devolução de terreno após autorizar plantação; mulher casada que
vive com terceiro e reclama do marido o pagamento de alimentos.
Supressio
(Verwirkung): limitação do conteúdo contratual: ausência de exercício de
direito subjetivo durante lapso de tempo suficiente para gerar a confiança na
contraparte de que não mais será exercido.
A
consagração dogmática da supressio ocorrer com a inflação na Alemanha
após a I Guerra Mundial: “Em consequência dessas alterações econômicas, o
exercício retardado de alguns direitos levava a situações de desequilíbrio inadmissível
entre as partes” (MENEZES
CORDEIRO, Antônio M. da R. Da boa fé no direito civil, p. 801).
A supressio considera-se
prejudicada pelos mesmos fatos que interrompem ou suspendem a prescrição (CORDEIRO, Antônio Menezes. Tratado
de direito civil português, v. I, t. IV.
Coimbra: Almedina, 2005, p. 322)
Requisitos: um não exercício prolongado; uma
situação de confiança; uma justificação para essa confiança; um investimento de
confiança; a imputação da confiança ao não-exercente. Ex.: Em contrato de
fornecimento o comprador que alega defeitos da coisa vendida e deixa de
comprová-los como solicitado pelo vendedor não pode requerer o cumprimento do
contrato dois anos depois. Uma parte que deixa de cobrar certa quantia e é
compensada pela contraparte como favores em razão do não exercício do direito,
por longo tempo, perde o direito de cobrar o crédito. Parte que deixa de reajustar
contrato para mantê-lo por 6 anos, não pode exigir, retroativamente a correção
monetária (STJ. REsp 1.202.514/RS. Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 21.7.2011). O
condomínio não pode reivindicar área originalmente comum, destinada a corredor,
que veio a ser ocupada com exclusividade por um dos condôminos por mais de 20
anos, com a concordância dos demais e aprovação de projeto de alteração das
partes comuns em assembleia (STJ. REsp 214.680/SP. Rel. Min. Ruy Rosado de
Aguiar, j. 10/08/1999).
Surrectio (Erwirkung): é considerada “vantagem conferida à outra parte por efeito da supressio” (J. SCHMIDT apud MENEZES
CORDEIRO, Antônio. Da boa fé no
direito civil, p. 821). No mesmo sentido: FARIAS, Cristiano
Chaves de: ROSENVALD, Nelson. Direito dos
contratos, p. 192). Ex.: Deve-se manter
a forma de distribuição de lucros conforme realizada durante mais de 20 anos
apesar de em desconformidade com o contrato social.
Inalegabilidades formais: Abuso na alegação da falta de forma. O agente alega nulidade de um
negócio por ausência de forma depois de ter incentivado a contratar e de ter
recebido a parte que lhe cabia.
Requisitos: Boa-fé subjetiva; efeitos insuportáveis para a contraparte se a
nulidade vier a ser declara; que o escopo da forma preterida não tenha sido
defraudado; inexistência de regra que exclua a inalegabilidade; inexistência de
outra solução para o caso. Ex.: Depois de receber os créditos de herança, o cessionário
alega nulidade da cessão, por não ter sido feita mediante escritura pública, a
fim de se esquivar do pagamento de débitos relativos à mesma herança; construtora
que nega a validade de contrato e afirma ter sido firmado por quem não tinha
poderes para tanto, embora realizado em seu escritório e com papel timbrado
dela própria. Não pode o locador alegar nulidade de distrato, buscando manter o
contrato rompido, e ainda obstar a devolução dos valores desembolsados pela
locatária, ao argumento de que a lei exige forma para conferir validade à
avença, se a posse do imóvel já lhe havia sido devolvida e o distrato, embora não
assinado, já tivesse sido acertado. (STJ. REsp 1.040.606/ES. Rel. Min. Luís
Felipe Salomão. J. 24.04.2012).
Tu quoque (Tu também): quem viola norma jurídica não pode prevalecer-se da
situação decorrente; exercer a posição violada; ou exigir de outrem o
acatamento da situação violada (turpitudinem
suam allegans non auditur).
Concretizações:
artigos 129, 180,
945, 1.216, 1.218, 1.220, 1.521, VII, 1.814, I, todos do Código Civil. Ex.: O
locador não pode despejar o locatário que abandonou imóvel inundado por falta de
obras de responsabilidade daquele; um contratante não pode alegar a nulidade do
contrato cujas vias tiver perdido; condômino que se recusa a assinar ata de
assembleia não pode impugná-la pela falta de sua própria assinatura (Direito
Civil Comentado, Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalina, apud Direito.com acesso em 19.07.2019,
corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Art.
423. Quando
houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á
adotar a interpretação mais favorável ao aderente.
A esse
respeito, Nelson Rosenvald. fala dos contratos de adesão que traduzem um modelo de
sociedade marcado pela massificação das relações econômicas. Segundo seu
entendimento, não se trata de uma espécie de contrato, como a compra e venda ou
a doação, mas de um instrumento contemporâneo de contratação no qual a
manifestação de vontade não se exterioriza pelo consentimento tradicional, mas
pela forma de adesão. O contrato por adesão convive com o tradicional contrato partidário,
marcado pela existência de uma etapa de negociação de cláusulas.
A contratação
por adesão possui uma grande características: elimina a fase das conversações
preliminares, pois uma das partes estabelece unilateralmente as condições
gerais do contrato, sendo que o consentimento do outro contratante será a
própria adesão em bloco – take it or leave it.
O art. 423
reconhece a contratualidade da adesão, mesmo que ela seja privada do espaço de discussão
de cláusulas pela existência de certo desequilíbrio entre os contratantes. Em virtude
desse desequilíbrio prévio, caberá ao ordenamento uma intervenção mais drástica
sobre os contratos dessa natureza, a fim de que a parte mais débil possa se
relacionar com total intelecção da avença.
Este artigo
cuida da interpretação do contrato de adesão. As suas cláusulas dúbias ou
vacilantes serão interpretadas contra quem redigiu o contrato. Porém, deve o
dispositivo em estudo ser sempre aferido em conjugação com a norma geral de interpretação
da boa-fé. No plano da otimização do comportamento contratual e do estrito
cumprimento do ordenamento jurídico, o art. 113 dispõe que os negócios jurídicos
devem ser interpretados de acordo com a boa-fé. O magistrado não apelará a uma
interpretação literal do texto contratual, mas observará o sentido
correspondente às convenções sociais ao analisar a relação obrigacional que lhe
é submetida. Deverá aferir a celeuma conforme os costumes e o tráfego jurídico do
local em que se estabeleceu o contrato.
Há um equívoco em supor que os contratos de adesão sejam
específicos das relações de consumo. Apesar de o Código de Defesa do Consumidor,
por excelência, constituir-se em sede de tais contratos, nada impede que de
relações privadas, envolvendo dois empresários ou particulares, nasçam
contratos de adesão, sem que em um dos polos exista a figura do consumidor.
Normalmente os contratos são uniformes e
direcionados a um número indeterminado de pessoas, posto que são confeccionados
em formulários-modelo, despersonalizando-se as relações daí produzidas. Mas,
como vimos no tópico anterior, nem todo contrato de adesão é padronizado ou estandardizado, sendo suficiente à sua caracterização a inexistência de negociação entre
as partes.
Isso explica a redação diferenciada do art. 47 do
Código de Defesa do Consumidor: “as cláusulas contratuais serão interpretadas de
maneira mais favorável ao consumidor”. Ou seja, nas relações entre os
desiguais, a tutela ampla do vulnerável, demanda critérios de interpretação mais
elásticos, exclusivamente em benefício do consumidor. Já nas relações civis,
haver-se-á de prestigiar especialmente o aderente tão somente no que for pertinente
às cláusulas contraditórias.
Aliás, no diálogo de fontes, as normas gerais do Código Civil podem ser
utilizadas subsidiariamente pelo consumidor, quando forem mais favoráveis que as
do microssistema (art. 7º do CDC). Todavia, a recíproca não se aplica. Vale dizer,
tendo o Código Civil silenciado sobre o conceito do contrato de adesão, que
descabe o recurso à definição emprestada pelo art. 54 do Código consumerista (NELSON ROSENVALD, apud Código Civil Comentado: Doutrina e
Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários
autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 493 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 19/07/2019.
Revista e atualizada nesta data por VD).
Na doutrina apresentada por Ricardo Fiuza, a referência
a contrato de adesão sugere, por conceituação legal, espécie e não gênero. Em verdade,
porém, não existe um contrato de adesão; são existentes contratos celebrados por adesão, como
pontifica Agostinho de Arruda Alvim em sua Exposição de Motivos, complementar ao
anteprojeto do CC revisto (25.3.1973). o mesmo ocorre com relação aos contratos
aleatórios e os atípicos, que se pretendem regulados em seções do Título V do
Livro I da Parte Especial. Nessa categoria, existem diversos contratos por adesão
caracterizados por técnicas comuns de contratação de massa, com visível desequilíbrio
de forças dos contratantes e fone atenuação na liberdade de contratar diante de
cláusulas pré-elaboradas. Não foi dispensada, todavia, regulação própria aos
contratos por adesão, tal como observada pela Lei n. 8.078 de 11.9.1990 (Código
de Proteção e Defesa do Consumidor), a permitir a crítica do eminente jurista
Nelson Nery que aponta um tratamento tímido dado pelo CC de 2002 a essa técnica
de formação de contrato ao dispensar-lhe apenas dois de seus dispositivos.
O art. 54 do CDC define: “Contrato de adesão é
aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou
estabelecidas pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor
possa discutir ou modificar substancialmente o seu conteúdo”. A norma alcança,
segundo a doutrina de Orlando Gomes, as duas formas de contratação, a de
estipulação produzida pelo poder público, onde manifesta a irrecusabilidade das
cláusulas (contrato de adesão) e a estabelecida, unilateralmente, pelo
particular, em face do potencial aderente (contrato por adesão).
A definição contrats
d’adhesion foi oferecida por Raymond Saleilles, em sua obra Dela déclaration de volonté (Paris, LGDJ, 1929, p. 229-30) quando examinou o Código Civil alemão em
sua Parte Geral.
Direito comparado: Ai. 1.370 do Código Civil italiano de 1942, instituidor da regra interpretatio contra stipulatorem ou interpretatio contra proferentem.
O princípio de interpretação contratual mais favorável ao aderente
decorre de necessidade isonômica estabelecendo em seus fins uma igualdade
substancial real entre os contratantes. É que, como lembra Georges Peipert, “o único
ato de vontade do aderente consiste em colocar-se em situação tal que a lei da
outra parte é soberana. E, quando pratica aquele ato de vontade, o aderente é
levado a isso pela imperiosa necessidade de contratar”. O dispositivo, ao preceituar
a sua aplicação, todavia, em casos de cláusulas obscuras ou ambíguas, vem limitá-lo
a essas hipóteses, o que contraria o avança trazido pelo Art. 47 do CDC
prevendo o princípio aplicado a todas as cláusulas contratuais. O aderente como
sujeito da relação contratual deve receber idêntico tratamento dado ao
consumidor, diante do significado da igualdade de fato que estimula o princípio
(Direito Civil -
doutrina, Ricardo Fiuza – p. 228, apud Maria Helena Diniz, Código
Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf,
Microsoft Word. Acesso em 19/07/2019,
corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Abordando Guimarães e Mezzalina, o Código de Defesa
do Consumidor conceitua o contrato de adesão no artigo 54: Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas
tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas
unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor
possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.
Os contratos de adesão são caracterizados pela menor
possibilidade de uma das partes, chamada aderente, estabelecer o conteúdo do
contrato. Em razão disso, a lei civil permite que o aderente seja beneficiado
com a interpretação mais favorável.
A referida regra não exclui
a possibilidade de a intenção das partes ser aclarada por outros elementos,
pois, nos termos do CC, 112, o fundamental é a intenção consubstanciadas nas
declarações de vontade. Desse modo, por exemplo, a própria prática que os
contratantes estabeleceram para cumprimento do contrato revela o intento delas
ao contratar. A interpretação mais favorável ao aderente é, portanto, uma regra
subsidiária (Direito Civil Comentado, Luís Paulo Cotrim Guimarães
e Samuel Mezzalina, apud Direito.com acesso
em 19.07.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
A MP 881/2019
acrescentou, ainda, um parágrafo único ao artigo 423, repleto de equívocos
redacionais. Alude, em primeiro lugar, a “contratos não atingidos pelo
disposto no caput”, quando normas jurídicas evidentemente não atingem
contratos, mas os abrangem ou contemplam. Afirma, ainda, que, em tais casos, “a
dúvida na interpretação beneficia” a parte que não redigiu a cláusula
controvertida, quando dúvidas não beneficiam ninguém: é a interpretação da
cláusula que deve ser benéfica a uma ou outra parte. Abstraindo-se as questões
linguísticas, o novo dispositivo parece ter pretendido ampliar a incidência da
chamada interpretativo contra preferentem ou contra stipulatorem:
quem redige a cláusula não pode se beneficiar da sua falta de clareza, devendo
tal cláusula ser interpretada em favor da contraparte. Não se pode, contudo,
generalizar demasiadamente a referida orientação hermenêutica. Em relações
paritárias, nem sempre é fácil identificar quem redigiu a cláusula: um
contratante pode não ter elaborado a redação de uma certa cláusula, mas pode
ter tido a oportunidade de modifica-la, optando por não fazê-lo. Em tais
hipóteses, lançar sobre o redator todo o ônus interpretativo pode se revelar
desproporcional. Daí ter o Código Civil, em sua redação original, limitado a
regra às relações contratuais de adesão. A extensão promovida pela MP 881/2019
deve ser, portanto, aplicada com cautela (Artigo
de Anderson Schreiber, publicado por Flávio Tartuce, aqui reproduzido 19.07.2019,
corrigido e aplicadas as devidas atualizações (VD)) existe uma Medida Provisória em Abril/2019 de MP
881/2019, com alterações ao Código Civil – Parte 1).
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