Direito Civil Comentado - Art. 978,
979, 980
Da Capacidade - VARGAS, Paulo S. R.
Parte
Especial - Livro II – (Art. 966 ao 1.195) Do
Direito de Empresa
Título
I – Do Empresário (Art. 966 ao 980-A) Capítulo II - Da Capacidade
Art. 978. O empresário
casado pode, se necessidade de outorga conjugal, qualquer que seja o regime de
bens, alienar os imóveis que integrem o patrimônio da empresa ou gravá-los de
ônus real.
No entendimento de Barbosa Filho, o CC 978 dispensa a outorga conjugal
para a alienação de bens imóveis, bem como a instituição de ônus real, desde
que incluídos no ativo do empresário individual casado. Cuida-se de uma
dispensa específica e que se refere tanto ao ativo circulante, quanto ao
permanente, tudo dependendo da destinação conferida à coisa, excepcionando a regra
geral exposta no inciso I do CC 1.647 e sempre incidente quanto o regime de
bens adotado não é o da separação absoluta. Pretende-se dar maior liberdade ao
empresário individual evitando fique ele tolhido na necessidade de agilidade e
rapidez na celebração de negócios jurídicos, i.é, extirpando obstáculos ao
desenvolvimento da atividade empresarial. A falta da aquiescência do cônjuge do
empresário individual, portanto, não causará qualquer mácula à validade de
alienações e constituições de direitos reais incidentes sobre imóveis
utilizados no exercício da empresa, merecendo aplausos a inovação legislativa.
Os bens enfocados continuam, no entanto, compondo a comunhão de bens mantida
pelo casal, sendo passíveis, inclusive, ao final da sociedade conjugal, de
partilha, mas estão, simplesmente, submetidos a um regime jurídico diferenciado
e mais benéfico ao empresário. Merecerá cuidado, nestas circunstâncias, para a
prevenção de litígios, a elaboração do instrumento público tendente à
aquisição, alienação ou oneração de imóveis, devendo constar, expressa e
claramente, se possível, com detalhes, a vinculação do imóvel à atividade
empresarial. A afetação de bens imóveis precisa, ainda, ser divulgada e para
que a outorga conjugal seja dispensada, é preciso promover específica averbação
junto às respectivas matriculas, com o assentimento do próprio cônjuge do
empresário individual.
O presente dispositivo
legal não tratou, porém, da concessão da outorga uxória para a consecução do
aval, inovação trazida pelo atual Código que mereceria maior atenção. É
possível compatibilizar as restrições decorrentes da necessidade do
consentimento do cônjuge com as regras estabelecidas, de modo a concluir que a
concessão de aval pelo empresário individual, visando a expansão de sua
atividade profissional, prescinde da obtenção da outorga uxória, ou seja, a
declaração cartular não pode ser anulada, se bem que seus efeitos não possam,
também, ser opostos ao cônjuge que não forneceu sua aquiescência. (Marcelo
Fortes Barbosa Filho, apud Código
Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002.
Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 990 - Barueri,
SP: Manole, 2010. Acesso 18/05/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).
Referindo-se ao histórico do artigo em comento, em sua redação
original, o dispositivo constante do projeto proposto pela Câmara estabelecia
que “O empresário casado pode, sem necessidade de outorga conjugal, qualquer
que seja o regime de bens, hipotecar ou alienar os imóveis que lhe são próprios
e os adquiridos no exercício da sua atividade”. Emenda da iniciativa do Senador
Gabriel Hermes promoveu a alteração adotada na redação final. Ainda que o
Código Civil de 1916, em sua redação primitiva, não contivesse norma
semelhante, o art. 30 da Lei n. 4.121/62 (Estatuto da Mulher Casada) veio a
prescrever que, “pelos títulos de dívida de qualquer natureza, firmado por um
só dos cônjuges, ainda que casados pelo regime de comunhão universal, somente
responderão os bens particulares do signatário e os Comuns até o limite de sua
meação”. Essa norma, segundo a melhor doutrina comercialista (Rubens Requião, Curso
de direito comercial, São Paulo, Saraiva, 1971, v. I, p. 62; Waldírio
Bulgarelli, Direito comercial, São Paulo, Atlas, 1987.)
Como dispõe a doutrina de Ricardo Fiuza, esse dispositivo constante do
CC 978 veio a consolidar o entendimento mais evoluído de que qualquer dos
cônjuges pode, sem necessidade de outorga uxória, alienar ou gravar de ônus
reais bens que integrem o patrimônio da empresa de que cada um, isoladamente,
participe.
No caso das sociedades comerciais, a aplicação desse princípio decorre,
diretamente, da separação patrimonial objetiva entre os bens da sociedade e os
bens particulares dos sócios. No que se refere às firmas individuais, que não
adquirem personalidade jurídica própria, a norma em referência estabelece que,
relativamente ao patrimônio imobiliário destinado pelo empresário para o
exercício de sua atividade, tais bens poderão ser alienados ou gravados de ônus
reais sem a necessidade de consentimento do respectivo cônjuge, uma vez que os
bens imóveis diretamente afetados à atividade da empresa não estão
compreendidos no patrimônio conjugal. (Direito
Civil - doutrina, Ricardo
Fiuza – p. 512, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012,
pdf, Microsoft Word. Acesso em 18/05/2020,
corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Mayara Souza Laureano Schimtz, em seu artigo “O Empresário
Individual Casado e A Dispensa (ou Não) da Outorga Conjugal Para Alienar e
Gravar Bens do Casal: À Luz dos Artigos 978 e 1.647, Inciso I, do Código Civil
de 2002”, remete-se à problemática do artigo,
liga o conteúdo dos CC 978 e 1.647, inciso I, todos do código civil brasileiro
de 2002, e contrapõe a problemática da (des) necessidade de autorização
conjugal para alienar os bens imóveis que integram o patrimônio dos consortes
ou ainda gravá-los de ônus real, quando da atuação de um dos cônjuges na esfera
empresarial, especificamente na qualidade de empresário individual de
responsabilidade limitada. Com a edição do Código Civil de 2002, modificações
relevantes foram introduzidas no que concerne às relações empresariais e
conjugais. Exemplo desta alteração é a regra do citado artigo 978, que passou a
dispensar a outorga conjugal para alienar e gravar bens imóveis, para o caso do
empresário individual (pessoa física) casado, isto independente do regime de
bens. De outra baila, tem-se ainda a disciplina do artigo 1.647, inciso I, do
mesmo diploma legal, que versa sobre a proibição da prática de tais atos sem a
anuência do cônjuge. Neste contexto de aparente contradição legal, faz-se
necessário elevar o estudo para alcance da compreensão da norma, com vista a
extrair a correta interpretação desta aparente antinomia. Isso poderá ser
acessado na íntegra (Mayara Souza Laureano Schimtz, publicou no site ambitojuridico.com.br, em
23/07/2019, acesso em 18/05/2020, corrigido e
aplicadas as devidas atualizações VD).
Art. 979.
Além de no registro Civil,
serão arquivados e averbados, no Registro Público de Empresas Mercantis, os
pactos e declarações antenupciais do empresário, o título de doação, herança,
ou legado, de bens clausulados de incomunicabilidade ou inalienabilidade.
Nas palavras de Barbosa Filho, é necessário dar total conhecimento
a todos os interessados, das características fundamentais da concreta situação
patrimonial do empresário individual, induzidas por seu estado civil e pelas
circunstâncias de aquisição de determinados bens. Nesse sentido, o presente
artigo ressuscitou norma constante do art. 37, II, da revogada Lei n. 4.276/65,
passando a exigir que o empresário individual traga, para arquivamento perante
a Junta Comercial competente, os documentos constitutivos ou comprobatórios de
tal situação, correspondentes à certidão extraída do instrumento público do
pacto antenupcial (CC 1.640, parágrafo único) ou, quando se tratar de bens
adquiridos em razão de sucessão causa
mortis ou liberalidade e clausulados com a inalienabilidade ou
incomunicabilidade (CC 1.848 e 1.911), certidão da transcrição ou matrícula de
bens imóveis ou, ainda, quando se tratar de bens móveis, do registro do
testamento (art. 735 do CPC em vigor, antigo art. 1.126 do CPC/1973) e,
alternativamente, cópia ou certidão do instrumento do contrato de doação. Em
todas as circunstâncias aqui apontadas, haverá restrições à disponibilidade dos
bens do empresário individual e nem todos eles poderão ser utilizados para a
satisfação dos credores, permanecendo excluídos na eventual hipótese de uma
execução, impondo-se, por isso mesmo, a divulgação geral de cada uma das
situações restritivas, multiplicada a publicidade com o uso adicional do
Registro Público de Empresas Mercantis, específico ao presente âmbito de
atividade econômico-jurídico. Ressalte-se, enfim, não haver sido prevista
específica sanção para o descumprimento do comando inserto no presente artigo,
de maneira que a eficácia das restrições patrimoniais enfocadas, desde que já
dadas ao conhecimento público, seja pelo registro Civil das Pessoas Naturais,
seja pelo Registro de Imóveis, não sofrerá qualquer abalo. (Marcelo
Fortes Barbosa Filho, apud Código
Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002.
Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 991 - Barueri,
SP: Manole, 2010. Acesso 18/05/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).
No entendimento de Ricardo
Fiuza, para a correta e adequada certificação jurídica dos bens pessoais do
empresário que podem ser objeto de garantia em face de suas obrigações diante
de credores, afigura-se necessário que terceiros que venham a com ele contratar
estejam cientes quanto ao regime de bens adotado no âmbito da respectiva
sociedade conjugal. Se o regime for o da completa e total separação de bens,
somente o patrimônio pessoal do cônjuge que contraiu a obrigação poderá ser
alcançado nas hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica da
sociedade de que participe. No caso dos pactos antenupciais, estes estarão
sujeitos a registro perante a Junta Comercial da sede da empresa. Já os demais
bens sujeitos a restrições de plena disponibilidade, adquiridos a título de
doação, herança ou legado, tais condições restritivas deverão ser objeto de
averbação no Registro Público de empresas Mercantis, para conhecimento e
eficácia perante terceiros. (Direito Civil -
doutrina, Ricardo
Fiuza – p. 512, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012,
pdf, Microsoft Word. Acesso em 18/05/2020,
corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Leonardo
Gomes de Aquino, explicita que a norma do art. 979 do CC/2002 tem como
destinatários todos os empresários, mas a preocupação fundamental se destina ao
empresário individual e os empresários que integrem sociedades
não-personificadas ou que se submetam aos riscos da responsabilidade ilimitada,
posto que nestes casos os empresários submetam o seu patrimônio à execução de
seus credores, em caso de falência ou inadimplemento. Sendo assim, os credores
ou consumidores destes empresários contarão com uma garantia maior na
fiscalização e controle sobre o patrimônio disponível. (Leonardo Gomes de
Aquino, é articulista do Jornal Estado
de Direito (estadodedireito.com.br) e responsável pela Coluna descortinando o Direito Empresarial, postado
em 07 de novembro de 2019, Acesso em 18/05/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Art. 980. A sentença que decretar ou homologar a separação judicial do empresário e
o ato de reconciliação não podem ser opostos a terceiros, antes de arquivados e
averbados no Registro Público de Empresas Mercantis.
No entender de Barbosa Filho, em se tratando de empresário
individual, o arquivamento dos documentos comprobatórios da separação judicial
e da reconciliação, correspondentes à certidão extraída do assento de
casamento, no órgão competente do Registro Público de Empresas Mercantis, i.é,
perante a Junta Comercial em que o empresário se achar inscrito, constitui,
diante de terceiros, fator de eficácia das implicações patrimoniais de tais
alterações do estado civil. Há, portanto, a imprescindibilidade de uma
publicidade adicional, além daquela já produzida pelo Registro civil das
Pessoas Naturais, condicionando-se, ao arquivamento previsto, a assunção de
efeitos da eventual dissolução de uma comunhão e partilha sobre os credores do
empresário. O texto legal apresenta três falhas. De início, refere-se à
sentença decretatória da separação judicial ou declaratória da reconciliação,
quando, pura e simplesmente, deveria fazer referência à própria separação
judicial ou à reconciliação, não bastando, para a regular realização do
arquivamento, a exibição de certidão da decisão proferida, pois, após seu
trânsito em julgado, a publicidade da alteração do estado civil se perfaz,
naturalmente, com sua averbação, no Registro Civil das Pessoas Naturais, junto
ao assento de casamento, por meio da expedição de mandado (art. 10, I) e, por
isso, deve ser exibida, perante a Junta Comercial certidão de dito assento.
Persiste, ainda, no presente artigo, uma omissão, deixando de se referir ao
divórcio, que, na legislação atual, prescinde da separação judicial, podendo
ser pleiteado diretamente e é, ele sim, causa efetiva do rompimento do vínculo
conjugal, cabendo seja, também, quando de sua ocorrência, formalizado
arquivamento. Ressalte-se, por último, que o parágrafo único do CC 1.577 exclui
a possibilidade da reconciliação prejudicar terceiros, não havendo como opô-la
a esses mesmos terceiros, apresentando, nesse caso, o arquivamento efeitos mais
tímidos. (Marcelo Fortes Barbosa Filho, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n.
10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e
atual., p. 991 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 18/05/2020. Revista e
atualizada nesta data por VD).
No entender da Doutrina de Ricardo Fiuza, o arquivamento da
sentença que decretar ou homologar a separação judicial, como também o divórcio
do empresário (Lei n. 6.515/77, estará a gerar efeitos civis a partir do
momento em que for registrada no cartório de registro civil competente.
Todavia, para a produção de efeitos perante terceiros, em especial perante
credores comerciais ou financeiros do empresário, essa sentença, que estabelece
e homologa a partilha de bens entre os cônjuges, somente terá efeitos após seu
arquivamento na Junta Comercial da sede da empresa. Esse procedimento foi
adotado com a finalidade de dar publicidade à situação relativa à
disponibilidade dos bens do empresário, modificada pela alteração em seu estado
civil e na consequente partilha do patrimônio anteriormente detido pelo casal
em razão do regime de casamento, pois o divórcio ou a separação judicial, nos
casos de comunhão de bens, total ou parcial, após a partilha, sempre implica
uma redução do patrimônio do cônjuge que exerce atividade empresarial. (Rubens
Requião, Curso de direito comercial,
São Paulo, Saraiva, 1971, v. 1; Waldirio Bulgarelli, Direito comercial, São Paulo, Atlas, 1987.); (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p.
512, apud Maria Helena Diniz Código Civil
Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf,
Microsoft Word. Acesso em 18/05/2020,
corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Não se pode ignorar ao final do artigo, as alterações da MP 881 ao Código Civil - parte II, apontada por Anderson Schreiber, em
18/06/2019, onde merece destaque,
em primeiro lugar, a inclusão de um novo parágrafo no artigo 980-A, que
disciplina a empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI). Como se
sabe, a EIRELI é espécie de pessoa jurídica que se caracteriza por dois
elementos: (a) tem composição unipessoal, ou seja, totalidade do capital social
concentrada em um único titular; e (b) tem como objeto a exploração de
atividade econômica com intuito de lucro. A EIRELI foi introduzida em nosso ordenamento
jurídico pela Lei nº 12.441/2011, buscando contornar a exigência de composição
pluripessoal que se extraía, tradicionalmente, do próprio conceito de
sociedade. Houve, no entanto, forte resistência ao projeto de lei originário
que tratava da EIRELI,
diante da preocupação de que o instrumento fosse empregado para perpetrar
fraudes aos direitos trabalhistas. Tal preocupação acabou por resultar na
previsão de algumas cautelas na Lei 12.441/2011, como a exigência de um capital
social não inferior a 100 vezes o maior salário-mínimo vigente no País (CC,
art. 980-A, caput). O novo §7º,
incluído no artigo 980-A pela MP 881, parece ignorar todo esse histórico ao
afirmar que “somente o patrimônio social da
empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade
limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o
patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude.”
Ao que
parece, o novo parágrafo pretendeu suprir uma suposta lacuna deixada pelo veto
ao §4º do art. 980-A, de redação similar à nova regra. A norma foi vetada, à
época, por recomendação do Ministério do Trabalho e Emprego, com receio de que
o texto pudesse causar dúvidas acerca da possibilidade de desconsideração da
personalidade jurídica de EIRELI. A própria mensagem de veto explicitava que a distinção
patrimonial entre o titular e a pessoa jurídica não restava prejudicada,
podendo ser extraída – senão do próprio conceito de pessoa jurídica, que
somente pode ser entendida como tal quando dotada de autonomia patrimonial – do
§6º do art. 980-A, que manda aplicar subsidiariamente à EIRELI a disciplina das sociedades
limitadas, cuja personalidade não se confunde, naturalmente, com a
personalidade de seus sócios. O forte consenso doutrinário nessa matéria
amparou, inclusive, a aprovação do Enunciado nº 470 da V Jornada de Direito
Civil do CJF, em que se lê: “O
patrimônio da empresa individual de responsabilidade limitada responderá pelas
dívidas da pessoa jurídica, não se confundindo com o patrimônio da pessoa
natural que a constitui, sem prejuízo da aplicação do instituto da
desconsideração da personalidade jurídica.”
Nesse
cenário, a introdução do novo §7º do art. 980-A revela-se inteiramente
desnecessária, pois destinada a explicitar algo sobre o qual não se
controverte. Pior: o dispositivo suscita, por sua redação defeituosa, dúvida
quanto ao seu real significado. O trecho que alude a “hipótese em que não se
confundirá, em qualquer situação”, por exemplo, não esclarece qual
seria a “hipótese”
contemplada, parecendo ter pretendido tratar não de uma hipótese, mas da
própria regra que é a autonomia patrimonial da pessoa jurídica. O maior risco,
entretanto, está na parte final do dispositivo, em que restam “ressalvados os casos de fraude”.
A expressão promete atrair a mesma dúvida que justificou, no passado, o veto ao
§4º: está-se estabelecendo uma hipótese de desconsideração distinta daquela
prevista no art. 50 do Código Civil? Com efeito, o art. 50 admite a
desconsideração no caso de “abuso
da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela
confusão patrimonial”. Não se emprega ali o termo “fraude”. A alusão à
“fraude” configura
nova hipótese de desconsideração? Cria um regime de desconsideração diverso
(mais restrito ou mais amplo) para a EIRELI? Ao aludir genericamente a “casos de fraude” no
§7º do art. 980-A, a MP 881/2019 parece ter incorrido em verdadeira
incongruência interna: enquanto (a) o acréscimo dos §§1º e 2º ao art. 50 teve o
evidente propósito de delimitar os conceitos de desvio de finalidade e confusão
patrimonial, (b) o acréscimo deste §7º do art. 980-A abre um oceano de
possibilidades interpretativas ao utilizar a imprecisa noção de fraude. De todo
modo, resplandece o óbvio: não há qualquer razão para aludir à desconsideração
da personalidade jurídica – nem à autonomia patrimonial da pessoa jurídica – na
disciplina da EIRELI,
que, como pessoa jurídica que é, já sofre a incidência das regras gerais sobre
essa matéria. O legislador deve resistir à tentação de repisar matérias em
diferentes setores da legislação, sob pena de, não empregando idêntica
linguagem, suscitar dúvidas e ambiguidades que deveria evitar.
Ainda
no campo do Direito Empresarial, a Medida Provisória 881 acrescentou um
parágrafo único ao art. 1.052, que disciplina a sociedade limitada, dispondo: “A sociedade limitada pode ser
constituída por uma ou mais pessoas, hipótese em que se aplicarão ao documento
de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato
social.” Introduziu-se, assim, a figura da sociedade limitada unipessoal no
direito brasileiro. A figura da sociedade unipessoal não é uma completa
novidade em nosso ordenamento: em 2016, a Lei nº 13.247 introduziu nos arts. 15
e 16 do Estatuto da OAB a sociedade unipessoal de advocacia. No plano teórico,
contudo, sempre foi controvertida a possibilidade de constituição de sociedade
por apenas um sócio, situação encarada com desconfiança por parcela da
doutrina, como já destacado – e que havia gerado, como também já visto, o
recurso à figura algo assistemática da EIRELI. Agora, contudo, a MP 881 rompe, em
definitivo e em termos amplos, com a tradicional exigência de
pluripessoalidade, ao menos no âmbito das sociedades limitadas. À parte o fato
de que torna inútil a existência da EIRELI no catálogo das pessoas jurídicas –
não se vislumbrando porque alguém optaria pela EIRELI em vez de constituir sociedade
limitada unipessoal, conforme se verá mais adiante –, esta opção da MP
881/2019, por si só, não merece censura, parecendo mesmo mais afinada à
dinâmica empresarial contemporânea e mais adequada ao nosso sistema jurídico
que a criação de uma nova espécie de pessoa jurídica, como ocorreu com a EIRELI.
O
novo parágrafo único do art. 1.052, no entanto, não tem a melhor redação. Em
primeiro lugar, a palavra “hipótese”
também foi aqui empregada de modo incorreto. O termo refere-se necessariamente
ao trecho anterior: “ser
constituída por uma ou mais pessoas”. A rigor, contudo, a “hipótese” versada
no texto é apenas aquela em que a sociedade limitada é constituída por uma
única pessoa, quando então “se
aplicarão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as
disposições sobre o contrato social.” Destaque-se, ainda, que a MP
limitou-se a acrescentar o parágrafo único no art. 1.052 sem realizar qualquer
outro complemento no regime jurídico das limitadas, todo construído a partir da
premissa da pluripessoalidade destas sociedades, o que poderá provocar alguma
insegurança na adoção desta nova modalidade de sociedade limitada.
Em uma análise
sistemática, repita-se, causa alguma perplexidade a inserção da sociedade
limitada unipessoal paralelamente à EIRELI, ambas submetidas a
um regime praticamente igual – vale lembrar, nesse sentido, a aplicabilidade à EIRELI das regras previstas
para as limitadas, por força do §6º do art. 980-A. Veja-se situação curiosa que
decorre desse tratamento: a sociedade limitada que, por qualquer razão, tiver
suas quotas concentradas em um único sócio, se converterá em EIRELI, por força do §3º do
art. 980-A, e não em sociedade limitada unipessoal, como se esperaria. Há,
ainda, inconsistências mais preocupantes. Perdem importância as restrições
impostas pelo legislador ao regime da EIRELI, como o já
mencionado capital mínimo integralizado e a limitação a que pessoa natural
figure como titular de uma única EIRELI (art. 980-A,
§2º), não parecendo haver qualquer vantagem na opção pela EIRELI em vez da sociedade
limitada unipessoal. Melhor que o remendo apressado feito pelo Poder Executivo
seria um debate amplo, em sede legislativa, acerca da conveniência ou não da
manutenção destas restrições no regime da EIRELI, criando uma
modalidade única de pessoa jurídica unipessoal com fins de lucro, conferindo
maior lógica ao sistema e segurança ao mercado. (Anderson Schreiber, em 18/06/2019, Acessada na
Carta Forense Mobile em 18/05/2020, corrigido
e aplicadas as devidas atualizações VD).
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