terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Direito Civil Comentado - Art. 1.417 e 1.418 Do Direito do Promitente Comprador – VARGAS, Paulo S. R.

 

 

Direito Civil Comentado - Art. 1.417 e 1.418

Do Direito do Promitente Comprador – VARGAS, Paulo S. R.

- Parte Especial –  Livro III – Capítulo IV – Título IX

Do Direito do Promitente Comprador – (Art. 1.417 e 1.418)

 - digitadorvargas@outlook.com - vargasdigitador.blogspot.com

 

 Art. 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel.

Historicamente, o presente dispositivo não foi objeto de emenda, quer por parte do Senado Federal, quer por parte da Câmara dos Deputados, no período final de tramitação do projeto. A redação atual é a mesma do anteprojeto, permanecendo, assim, a sugestão trazida a lume pela Comissão, no sentido de ampliar o rol dos direitos reais, incluindo, entre eles, o direito do promitente comprador do imóvel, em face das razões de natureza socioeconômicas que envolvem este instituto jurídico e as suas consequências de ordem prática.

Durante a fase final de revisão do texto legal, foi apresentada sugestão modificativa, que terminou por ser aprovada, para substituir-se a palavra “inscrita” por “registrada”, na expressão “... registrada no Cartório de Registro de Imóveis ...“, justificando-se a modificação com base na melhor técnica e harmonização jurídica, de acordo com a Lei dos Registros Públicos (cf. LRL art. 167, 1, n. 9 e 18) e a terminologia do próprio Código.

Como explica Ricardo Fiuza em sua Doutrina, o instituto jurídico da promessa de compra e venda, tal como inserida no Código Civil, decorrente da inscrição do instrumento público ou particular celebrado entre as partes, devidamente registrado no Registro de Imóveis, não confere ao promitente comprador direito real, equiparável ao direito de propriedade. O que se verifica, isto sim, é a existência de um novo direito real, voltado a garantir, efetivamente, aquele que se compromete a adquirir um imóvel. Trata-se, em outras palavras, de direito à aquisição para o futuro. É direito real em toda a sua extensão e profundidade para os fins definidos neste Título IX; contudo, a aquisição da propriedade, como consequência lógica dessa relação contratual, envolvendo, também, um direito real, dependerá da configuração de novos requisitos específicos. Para o compromisso de compra e venda, em linhas gerais, celebram as partes contrato sinalagmático, no qual definem, previamente, e em comum acordo, o cumprimento sucessivo das obrigações (parcelas vincendas), forma de aquisição e pagamento, objeto (imóvel), especificações relacionadas aos valores devidos e respectivas correções, tempo para a quitação, entre outras avenças. Diferentemente do que se verificava no regime de 1916, o NCC, ao conferir direito real ao promitente comprador, amplia a efetiva possibilidade de inserção de cláusula de imissão de posse em momento precedente ao término do pagamento, ou seja, da plena quitação (v. g., após o pagamento do sinal ou da primeira prestação), conferindo-lhe posse relativa direta (ou imprópria direta), tendo-se em conta que o promitente vendedor reservará para si, até o momento da consumação da negociação, a qualidade de possuidor absoluto (posse absoluta indireta). 

Havendo cláusula de arrependimento, não há que se falar em possibilidade jurídica de constituição do direito real em questão, por se tarde manifesto óbice, previamente estipulado pelas partes contratantes. 

Súmulas do STF: 166 — É inadmissível o arrependimento no compromisso de compra e venda sujeito ao regime do Decreto-lei 58, de 10 de dezembro de 1937; 167 — Não se aplica o regime do Decreto-lei 58, de 10 de dezembro de 1937, ao compromisso de compra e venda não inscrito no registro imobiliário, salvo se o promitente vendedor se obrigou a efetuar o registro; 168 — Para os efeitos do Decreto-lei 58, de 10 de dezembro de 1937, admite-se a inscrição imobiliária do compromisso de compra e venda no curso da ação; 412 — No compromisso de compra e venda com cláusula de arrependimento, a devolução do sinal, por quem o deu, ou a sua restituição em dobro, por quem o recebeu, exclui indenização maior, a título de perdas e danos, salvo os juros moratórios e os encargos do processo.

Sumulas do STJ: 76 — A falta de registro do compromisso de compra e venda do imóvel não dispensa a prévia interpelação para constituir em mora o devedor; 84 — É admissível a oposição de Embargos de Terceiros fundados em alegação de posse advinda de compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido de registro.

Continua em vigor toda a legislação extravagante correlata ao tema referente ao compromisso de compra e venda (v. g., Decreto-lei n. 58/37; Decreto n. 3.079/38; Lei n. 4.505/64; Lei n. 6.766/79 etc.). (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 723-24, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 29/12/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Em prólogo necessário ao comentário explica Francisco Eduardo Loureiro: “Nesta quarta edição do Código Civil Comentado, acrescentei parte do texto que escrevi recentemente sobre o compromisso de compra e venda (“Responsabilidade civil no compromisso de compra e venda”. In: silva, Regina Beatriz Tavares da (coord.). Responsabilidade civil e sua repercussão nos tribunais. Saraiva, série Direito-GV, p. 167-219). Justifica-se a inserção, pois os CC. 1.417 e 1.418 regulam apenas o direito real do promitente comprador, enquanto o contrato, de uso extremamente frequente, encontra-se disciplinado em diversas leis especiais”.

“Define-se contrato preliminar, ou pré-contrato, ou contrato promessa, ou pactum de contrahendo na lição de Pontes de Miranda, como ‘o contrato pelo qual uma das partes, ou ambas, se obrigam a concluir outro negócio jurídico’ (Pontes de Miranda. Tratado das ações. vol. V IL São Paulo, Revista dos Tribunais, 1978, p. 284). As partes, ou uma delas, prometem celebrar mais tarde outro contrato, que será o principal (Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. III. 11. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2003, p. 81). 

Múltiplas razões justificam a utilização do contrato preliminar: assegura-se a realização do contrato prometido, em um momento que existe algum obstáculo material ou jurídico à sua imediata conclusão, ou as partes não podem observar as formalidades legalmente exigidas; uma das partes não dispõe da soma ou de outros meios necessários, mas desde logo quer estabelecer vínculo negocial; vantagens fiscais em postergar a celebração do contrato prometido, com diferimento do recolhimento de impostos e emolumentos; o contrato definitivo refere-se à coisa futura ou alheia; é preciso obter o consentimento de terceiros (Costa, Mário Júlio de Almeida. Contrato-promessa. Uma síntese do regime atual. 4. ed. revista e atualizada. Coimbra, Livraria Almedina, 1996, p. 13). 

Uma nova e relevante função atípica a um contrato preliminar, via de regra não cogitada pela doutrina, é a de servir de instrumento de garantia ao recebimento do preço. Especialmente na promessa de compra e venda, é comum que o promitente vendedor retenha a propriedade do imóvel vendido, até satisfação integral de seu crédito. Ao invés de utilizar a garantia real da hipoteca, ou da propriedade fiduciária sobre imóveis (Lei n. 9.514/97), que exigem a excussão do objeto da garantia, optam pelo compromisso de compra e venda, a ser resolvido no caso de inadimplemento do promitente comprador, com consequente devolução do imóvel ao promitente vendedor. Essa escolha de mecanismos de garantia vai provocar profundos efeitos quanto à possibilidade de retomar a coisa prometida à venda e quanto à devolução das parcelas do preço pagas.

A multiplicidade e a diversidade de funções do contrato preliminar não permitem, por consequência, afirmar que o seu objeto sempre será a celebração de um contrato futuro, sem a criação de efeitos substanciais, que podem apenas ser antecipados em caráter excepcional. Claro que a celebração de um contrato preliminar que tem por objeto mediato coisa alheia, ou futura, ou que dependa do consentimento de terceiros, ou de estudos e documentos não disponíveis no momento de sua celebração, terá escassa produção de efeitos substanciais e, sem dúvida, o objeto principal será a celebração de um contrato definitivo. Situação diametralmente diversa é a dos contratos preliminares que têm por função apenas a garantia do recebimento do preço parcelado, ou a obtenção de vantagens fiscais. Em tais funções, o contrato preliminar produz desde logo efeitos substanciais e a celebração do contrato definitivo é apenas mais uma das obrigações - nem sempre a principal - assumida pelas partes.

O contrato principal, ou final, por seu turno, variará de acordo com a função do contrato preliminar, com preponderância de natureza solutória, ou liberatória, enquanto consistir no cumprimento de obrigações assumidas no contrato precedente, e constitutivo, no concernente às novas relações que dele resultarem em caráter definitivo (Andrade, Darcy Bessone de Oliveira. Da compra e venda: promessa & reserva de domínio. Belo Horizonte, Editora Bernardo Álvares S.A., 1960, p. 99).

O CC 462 dispõe que o ‘contrato preliminar, exceto quanto à forma, deve conter todos os requisitos do contrato definitivo’. Adotou nosso Código posição intermediária, exigindo a presença dos requisitos essenciais do contrato principal a ser celebrado, mas não a presença de um acordo completo. Há espaço a uma hierarquização de assuntos, deixando as partes lacunas que serão mais tarde objeto de nova regulamentação convencional, ou, na falta de consenso futuro, poderão encontrar solução na lei, nos usos ou na equidade. O que se exige para o contrato preliminar é um mínimo de precisão, de tal modo que se possibilite a identificação fundamental de seu conteúdo, permitindo a conclusão do contrato definitivo sem deixar ao arbítrio das partes questões que comprometam o seu equilíbrio (Bdine Júnior, Hamid Charaf. Compromisso de compra e venda em face do Código Civil de 2002: contrato preliminar e adjudicação compulsória, in Revista dos Tribunais, vol. 843, p. 64). Ressalvou o legislador, porém, a não incidência do princípio da atração das formas entre o contrato preliminar e o definitivo, pondo fim à dúvida doutrinária e consolidando sedimentado entendimento jurisprudencial que sempre admitiu o compromisso de compra e venda de bens imóveis por instrumento particular. Diga-se, aliás, que a liberdade de formas cumpre exatamente uma das funções do contrato preliminar, vinculando as partes até que celebrem o negócio solene.

O compromisso de compra e venda como contrato preliminar impróprio. Defende José Osório de Azevedo Júnior, em obra que já se tornou clássica sobre o tema, ser o contrato de compromisso de compra e venda preliminar impróprio. Partiu da premissa da prática negocial revelar que ‘os tradicionais poderes inerentes ao domínio (jus utendi, fruendi et abutendi) são transferidos ao compromissário comprador, enquanto o compromitente vendedor conserva para si a propriedade nua, vazia, ou menos ainda que propriedade nua (Azevedo Júnior, José Osório de. Compromisso de compra e venda. 5. ed. revista e atualizada. São Paulo, Malheiros, 2006, p. 18).

O domínio remanesce em poder do promitente vendedor afetado ao recebimento do preço, como mecanismo de garantia. E arremata José Osório, ‘à medida que o crédito vai sendo recebido, aquele pouco que restava do direito do promitente vendedor, i. é, aquela pequena parcela do poder de dispor, vai desaparecendo, até se apagar de todo’ (José Osório, op. cit., p. 19). Pago o preço, de modo paradoxal o domínio formal que se encontra em nome do promitente vendedor não lhe confere mais nenhum direito, mas apenas o dever inexorável de outorgar a escritura definitiva. 

O fato é que a jurisprudência, de modo consciente ou não da natureza imprópria do contrato de compromisso de compra e venda, ou apenas intuindo tal situação, passou gradativamente a antecipar todos os efeitos da escritura definitiva para o momento do contrato preliminar. Reconhecem os tribunais que a carga negocial, as consequências práticas, o conteúdo econômico do negócio se concentram no primeiro contrato e não no segundo. 

Os exemplos são enumerados de modo didático por José Osório de Azevedo Júnior (José Osorio, op. cit., p. 49): a) as questões relativas à capacidade das partes e vícios do negócio jurídico são examinadas tendo em vista a data da celebração do compromisso, inclusive a fraude contra credores. Disso decorre que o prazo decadencial para ajuizamento da ação pauliana tem termo inicial na data do registro do compromisso, ou na data que teve ciência do negócio o credor, o que antes ocorrer; b) o promitente comprador devidamente imitido na posse do imóvel, ainda que sem o registro do contrato, pode afastar a penhora sobre o imóvel, em execução movida por credor do promitente vendedor, se foi o negócio celebrado antes da citação do executado. Recente julgado do Superior Tribunal de Justiça bem elucida o entendimento sobre o tema: ‘É assente na jurisprudência desta Corte de Justiça que a celebração de compromisso de compra e venda, ainda que não tenha sido levado a registro no Cartório de Registro de Imóveis, constitui meio hábil a impossibilitar a constrição do bem imóvel, discutido em execução fiscal, e impede a caracterização de fraude à execução, aplicando-se o disposto no enunciado da Súmula n. 84 do STJ: É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro.’ (REsp n. 974062/RS, rel. Min. Denise Arruda, j. 20.09.2007); c) o direito de preferência do condômino sobre coisa indivisível (CC 504) e da Lei do Inquilinato pode ser exercido contra o compromissário comprador, não havendo por que se esperar a lavratura da escritura de venda e compra. O prazo começa a contar da data do registro do compromisso ou da data em que o condômino tomou ciência da promessa, o que antes ocorrer (REsp n. 198516/SP, rel. Barros Monteiro, j. 23.02.1999, LEXSTJ 129/131 e RSTJ 133/391, que, embora diga respeito a contrato de compra e venda não registrado, no corpo do voto estende a preferência ao pré-contrato); d) a superveniência de leis novas criando obstáculos ou entraves não alcança imóveis já prometidos à venda, ainda que não tenha sido o contrato registrado. Idem a indisponibilidade de bens já prometidos à venda anteriormente (Embargos de terceiro. Liquidação extrajudicial de instituição financeira. Indisponibilidade e arresto do patrimônio dos administradores, com fundamento na Lei n. 6.024/74. Prova cabal de que o embargante adquiriu o imóvel mais de uma década antes da liquidação. Compromisso de compra e venda com firmas reconhecidas e imissão do promitente comprador na posse do imóvel. Embargos procedentes. TJSP, Ap. cível n. 383.194.4/3-00, rel. Francisco Loureiro, j. 24.05.2007); e) do mesmo modo que se exige alvará para a alienação de imóvel de incapaz, também se exige em caso de compromisso de compra e venda; f) é válida a escritura definitiva outorgada após a morte do mandante, em cumprimento a compromisso de compra e venda, irretratável e irrevogável, com o preço inteiramente pago, na forma do CC 684; g) cabe ação reivindicatória ajuizada por promitente comprador com contrato irretratável levado ao registro imobiliário. Julgou em data recente o Superior Tribunal de Justiça que ‘promessa de compra e venda irretratável e irrevogável transfere ao promitente comprador os direitos inerentes ao exercício do domínio e confere-lhe o direito de buscar o bem que se encontra injustamente em poder de terceiro. Serve, por isso, como título para embasar ação reivindicatória’ (REsp n. 252020/RJ, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 05.09.2000); h) é anulável a promessa de compra e venda de ascendente a descendente sem consentimento dos demais descendentes e do cônjuge;  i)A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel’ (Súmula n. 308 do Superior Tribunal de Justiça); j) o promitente comprador com contrato não registrado, mas imitido na posse, é parte legítima para figurar no polo passivo de ação de cobrança de despesas de condomínio edilício.

Verifica-se, em resumo, que os tribunais gradativamente e de modo mais ousado antecipam para o momento do contrato preliminar impróprio de compromisso de compra e venda todos os efeitos típicos do contrato definitivo. É, sem dúvida, o reconhecimento de que em muitos casos, o compromisso, usado em função e como mecanismo de garantia do recebimento do preço, concentra a carga negocial e as consequências da escritura definitiva. 

O direito real de promitente comprador. Os CC 1.417 e 1.418 disciplinam o direito real de promitente comprador com título levado ao registro. O contrato compromisso de compra e venda, desde que subordinado a certos requisitos - impossibilidade de arrependimento e registro imobiliário -, converte-se de direito de crédito em direito real de aquisição.

O Código Civil de 1916 não contemplava o direito real de promitente comprador, que, em vez disso, tinha em seu art. 1.088 perigosa armadilha, uma vez que permitia ao promitente vendedor arrepender-se do negócio até o momento da escritura definitiva.

Leis especiais, porém, já conferiam a possibilidade de registro ao compromisso de compra e venda, garantindo-lhe eficácia contra terceiros e impossibilitando o arrependimento. A primeira delas, inspirada na legislação uruguaia, foi o Decreto-lei n. 58/37, que se destinava somente aos imóveis loteados. Posteriormente, a Lei n. 649/49 estendeu o regime jurídico do compromisso de compra e venda do Decreto-lei n. 58/37 aos imóveis não loteados. Finalmente, a Lei n. 6.766/79 disciplinou o parcelamento do solo urbano e também o compromisso de compra e venda de imóveis loteados. A Lei n. 4.591/64, que trata do condomínio edilício e da incorporação imobiliária, também contém dispositivos sobre promessa de compra de unidade autônoma futura. A doutrina apenas divergia quanto à natureza do compromisso de compra e venda levado a registro. A maioria se posicionava no sentido de que consistia verdadeiro direito real de aquisição, embora determinados autores defendessem que se tratava de mero contrato com eficácia real.

O que se extrai do preceito em estudo é a presença de dois requisitos cumulativos, para que o contrato de compromisso de compra e venda, que gera apenas direito de crédito, converta-se em direito real e ganhe oponibilidade contra todos, a saber: a) não contenha cláusula de arrependimento; b) seja registrado no Registro Imobiliário competente. 

Aos dois requisitos explicitados no artigo em exame devem ser somados os previstos nos CC 462 e 463, que disciplinam o gênero dos contratos preliminares, no qual se insere a espécie compromisso de compra e venda. Assim, os contratos preliminares, salvo quanto à forma, devem conter todos os requisitos do contrato principal, no caso a compra e venda, declinando as partes contratantes, o objeto e o preço. 

Examine-se os dois requisitos previstos neste artigo, individualmente. O primeiro é a ausência de cláusula de arrependimento. O contrato de compromisso de compra e venda não é daqueles que, nos termos do CC 473, anteriormente comentado, admitem por força de lei ou de sua natureza a resilição unilateral. A cláusula de arrependimento ou a opção de denúncia devem ser expressamente previstas no contrato. Podem importar na perda do sinal pago, como nas arras penitenciais, ou nem isso. O que importa é que, no silêncio do contrato, não há possibilidade de arrependimento unilateral de qualquer das partes. Mais ainda: no regime dos contratos relativos aos imóveis loteados (art. 25 da Lei n. 6.766/79), norma de ordem pública impõe que os contratos sejam irretratáveis. Logo, sob tal regime, eventual cláusula se considera não escrita e não impede o registro nem a aquisição do direito real. 

Mesmo nos contratos relativos a imóveis não loteados, o entendimento pacificado dos tribunais é no sentido de que o direito de arrependimento, expressamente pactuado, encontra limites nos princípios da boa-fé objetiva, equilíbrio e função social do contrato. Assim, não se admite o direito de arrependimento quando o preço se acha integralmente pago (Súmula n. 166 do STF), ou, em corrente mais avançada, quando já se iniciou a execução do contrato. Dizendo de outro modo, quando a cláusula de arrependimento se dá mediante a figura das arras penitenciais, deve ser exercida a faculdade de retratação no prazo assinado. Ultrapassado o pagamento do sinal e iniciado o pagamento do preço, não mais se fala em arras penitenciais, que passam a integrar o valor da coisa. Quando a cláusula de arrependimento é pactuada sem prazo, o exercício de ato de execução implica renúncia à faculdade de se retratar, em vista da estabilidade e da firmeza dos contratos. Em suma, o direito de arrependimento somente pode ser exercido até o início da execução do contrato de compromisso de compra e venda (José Osório de Azevedo Júnior, op. cit., p. 263; Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. 3. ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1984, v. X III, n. 3, § 1.525). 

Disso decorre que, mesmo nos casos de imóveis não loteados com cláusula de arrependimento expressa, escoado o prazo das arras penitenciais, ou iniciada a execução do contrato, não mais cabe a retratação e, por consequência, pode o compromisso ser levado a registro e se converter em direito real.

O segundo requisito é o registro imobiliário do contrato de compromisso de compra e venda. Como vimos anteriormente, o registro é constitutivo da propriedade e de outros direitos reais adquiridos a título derivado e inter vivos. Antes do registro, há mero direito de crédito entre as partes. Após o registro, converte-se em direito real, com oponibilidade contra todos, de modo que eventuais novos atos de disposição ou de oneração praticados pelo promitente vendedor em benefício de terceiros, ainda que de boa-fé, são ineficazes frente ao promitente comprador. Lembre-se que retroage ao registro - e todos os seus efeitos - à data do ingresso e à prenotação do título no registro imobiliário.

Note-se que, embora o art. 167,1, n. 9, da Lei n. 6.015/73, disponha serem títulos registráveis os contratos de compromisso de compra e venda, de cessão deste e de promessa de cessão, com ou sem cláusula de arrependimento [...]’, o Código Civil - lei posterior que, apesar de geral, trata da mesma matéria - dispôs de modo diverso, exigindo a característica da irretratabilidade. Prevalece, portanto, o disposto na lei posterior, de tal modo que, atualmente, somente podem ingressar no registro os compromissos irretratáveis. 

Das prestações principais, acessórias e os deveres laterais de conduta assumidos pelas partes no compromisso de compra e venda - Provocou o princípio da boa-fé uma revolução na maneira de encarar a relação obrigacional, que deixou de ser considerada somente um direito de crédito, em contraposição a um dever de prestar, e passou a significar uma relação jurídica total entre as partes, uma relação complexa, visualizada como um processo, composto por uma sucessão de atos tendentes a um fim, qual seja, a satisfação do interesse do credor (SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. São Paulo, Editora José Buchatsky, 1976, p. 10).

No contrato de compromisso de compra e venda, segundo a doutrina majoritária, o objeto seria a celebração do contrato definitivo. Logo, manifestar consentimento no contrato definitivo consistiria a prestação principal. Já as prestações secundárias ou acidentais consistiriam nos deveres de pagar o preço, fornecer a documentação relativa ao imóvel, certidões pessoais dos promitentes vendedores, certidões fiscais e previdenciárias, autorizações e alvarás administrativos, enfim, tudo aquilo que possa interessar à perfeição da prestação principal.

Além dos deveres de prestação, a obrigação como relação complexa, destinada à satisfação do interesse do credor, gera também deveres laterais de conduta, com o escopo de garantir o desenvolvimento regular do contrato como um todo, de modo a não frustrar a confiança da parte contrária. São deveres que não têm conteúdo fixo e nem número determinado e se revelam apenas na medida em que necessários para a realização das finalidades da própria relação obrigacional (NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais. São Paulo, Saraiva, 1994, p. 160). Criam condições para uma consecução sem estorvos do fim contratual.

Vimos acima que o contrato de compromisso de compra e venda pode ser, em determinados casos, preliminar impróprio, porque antecipa carga negocial e os efeitos do contrato definitivo. De igual modo, os efeitos principais e acessórios de prestação, bem como os laterais (ou anexos) de conduta decorrentes da boa-fé objetiva, são antecipados de acordo com a causa do contrato.

A par da prestação principal das partes manifestarem consentimento na celebração do contrato principal, há múltiplos deveres acessórios de prestação, ainda que não previstos no contrato pelas partes. Tomem-se como exemplo os deveres de fornecer toda a documentação relativa ao imóvel, bem como certidões e documentos pessoais das partes (inclusive fiscais e previdenciárias) e a regularização de construções existentes sobre o solo.

Há ainda deveres laterais (anexos) de conduta, que abrangem não somente as fases de formação e execução do contrato, como também as fases pré e pós-contratual. São deveres que não se definem a priori, mas que surgirão desde as negociações preliminares e se projetam até mesmo depois da celebração do contrato definitivo. Tomem-se como exemplos os deveres pré-contratuais, na fase da pontuação, de se alertar o adquirente sobre restrições ou limitações administrativas existentes sobre o imóvel, questões relevantes de vizinhança, alterações iminentes no zoneamento, problemas relativos à solidez da obra e de composição do solo. Os deveres pós-contratuais de fornecer documentos que porventura tenha o alienante em mãos, que auxiliem discussões dominiais, ou facilitem a retificação do registro imobiliário.

A cláusula geral da boa-fé objetiva, na sua função de controle, interfere de modo significativo na execução do contrato de compra e venda. Controla o exercício abusivo de direitos, que não tragam benefícios ao credor e gerem desproporcional sacrifício do devedor, confere efeitos à inércia prolongada (surrectio e supressió) e ao comportamento contraditório (venire contra factum proprio) dos contratantes. Evita, mais, que qualquer dos contratantes invoque em seu proveito normas que ele próprio violou (tu quoque).

Tomem-se como exemplos a resolução do contrato em razão de inadimplemento de pequena monta da outra parte, que não compromete a economia do contrato (teoria do adimplemento substancial), a prolongada inércia quanto à cobrança de determinadas verbas ou de multa moratória, e a própria exceção do contrato não cumprido, com especial enfoque para o cumprimento imperfeito (exceptio non rite adimpleti contractus).

É verdade, porém, que cada vez mais, em atenção aos princípios da boa-fé objetiva e função social, o princípio da relatividade dos contratos recebe nova leitura. A Súmula n. 308 do Superior Tribunal de Justiça dispõe: ‘A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel’.

A súmula acima referida constitui importante marco e tem relevante aplicação nas relações negociais. É o reconhecimento pelos tribunais de que, em determinadas situações jurídicas, o contrato de compromisso de venda e compra, mesmo não levado a registro, ganha eficácia frente a terceiros. Como constou de julgado do Superior Tribunal de Justiça, ‘ao celebrar o contrato de financiamento, facilmente poderia o banco inteirar-se das condições dos imóveis, necessariamente destinados à venda, já oferecidos ao público e, no caso, com preço total ou parcialmente pago pelos terceiros adquirentes de boa-fé’ (REsp n. 329.968/DF, DJ 04.02.2002).

A tendência de se conferir efeitos contra terceiros ao compromisso de compra e venda não levado a registro também se extrai da Súmula n. 84 do STJ de seguinte teor: ‘É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro’.

As obrigações do promitente comprador. O dever de consentir na celebração do contrato definitivo. O pagamento do preço. A mora. A resolução. A cláusula penal. As benfeito­rias e acessões. Na função de mero contrato preparatório, sem dúvida a prestação principal de ambas as partes no compromisso de compra e venda será a de prestar consentimento no contrato definitivo. Cuida-se de obrigação de fazer, juridicamente fungível, passível de substituição por sentença judicial, na forma dos arts. 461 do Código de Processo Civil de 1973, (hoje elencado no CPC/2015, art. 497) e CC 464. Comum tomar-se tal obrigação como devida pelo promitente vendedor em benefício do promitente comprador.

A obrigação, porém, é recíproca. Existe o direito de o promitente comprador liberar-se da obrigação de outorgar a escritura, de recuperar a sua liberdade e evitar todos os ônus de um imóvel registrado em seu nome, por exemplo, lançamento de impostos, despesas condominiais e eventual responsabilidade civil pelo fato da coisa. Na visão contemporânea do direito obrigacional, o pagamento, em sentido amplo, é não somente um dever, como também um direito do devedor para liberar-se da prestação. Cabe, assim, ação de obrigação de fazer também do promitente vendedor contra o promitente comprador, para que a sentença substitua a escritura injustamente negada pelo adquirente. Problema surge com o registro da escritura, ou da sentença que a substitui, que exige o recolhimento do IT BI e o pagamento das custas e emolumentos devidos ao registrador e ao Estado, ou de imposto predial em atraso. Em tal caso, abre-se em favor do promitente vendedor uma obrigação alternativa. Ou recolhe os impostos e taxas, faz o registro e posteriormente pede o reembolso, ou requer ao juiz a fixação de multa (art. 461 do CPC de 1973, hoje elencado no CPC/2015, art. 497) até que o promitente comprador promova o recolhimento das citadas verbas e o registro.

Em caso recente, a Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu o seguinte: ‘Ação ajuizada pelos promitentes vendedores contra os promitentes compradores para compeli-los a receber a escritura do imóvel, cujo preço se encontra integralmente pago. Interesse dos promitentes vendedores para que as taxas e tributos ou mesmo obrigações propter rem, ou responsabilidade civil por ruína do prédio, não recaiam sobre quem mantém formalmente o domínio, mas despido de todo o conteúdo, já transmitido aos adquirentes’ (TJSP, Ap. cível n. 466.654.4/8-00, 4ª Câm. Dir. Privado, j. 7.12.2006).

O contrato de compromisso de compra e venda, na frequente função de instrumento de garantia do recebimento do preço, ou de contrato preliminar impróprio, desloca a prestação principal do promitente comprador, de consentir na celebração da escritura definitiva, para o pagamento do preço. A prestação de pagar o preço, via de regra, é positiva, líquida e a termo, o que, na forma do CC 397, torna a mora ex re, independentemente de qualquer notificação ou interpelação. Vigora o aforismo dies interpellat pro homine, razão pela qual a multa e os juros moratórios são devidos desde o vencimento da dívida. Para cobrar as parcelas do preço, não há necessidade de qualquer interpelação ou notificação ao devedor. Mais de uma vez julgou o Superior Tribunal de Justiça que ‘para a simples cobrança das prestações inadimplidas, é desnecessária a interpelação judicial prevista no art. 1º do Decreto-lei n. 745, de 1969, só exigível quando se quer rescindir o contrato. Recurso especial não conhecido’ (REsp n. 480435/RJ). É por isso que ‘para a simples cobrança das prestações, a citação faz as vezes da interpelação prevista no Decreto-lei n. 745, de 07.08.69’ (REsp n. 109716/SP).

Discute-se se o crédito relativo ao preço é líquido e constitui título executivo. A questão não comporta resposta única. Dependerá da função do contrato de compromisso e do estágio de cumprimento em que se encontra. Se o promitente vendedor já tiver cumprido suas prestações substanciais - a entrega da posse do imóvel, ou a realização das obras de infraestrutura, se for o imóvel loteado, ou a conclusão da obra, se for unidade autônoma em construção - restando apenas ao promitente comprador o pagamento do preço, perde o contrato a sua bilateralidade. Resta apenas ao promitente comprador cumprir a sua prestação principal de pagamento do preço. É por isso que os tribunais, embora não seja o tema pacífico, em mais de uma oportunidade assentaram que ‘tem a jurisprudência, inclusive a do Colendo Superior Tribunal de Justiça, proclamado que o contrato bilateral pode servir de título executivo quando o credor desde logo comprova o integral cumprimento da sua prestação (arts. 585, II, e 615 do CPC de 1973, hoje elencados no CPC/2015, arts. 784, II e 799, respectivamente). (REsp n. 170.446/SP, 4ª T., rel. Min. Ruy Rosado, DJU 14.09.1998, p. 82). Ou, ainda: O contrato bilateral pode servir de título executivo de obrigação de pagar quantia certa, desde que definida a liquidez e certeza da prestação do devedor, comprovando o credor o cumprimento integral da sua obrigação (RSTJ 85/278). Essa jurisprudência formou-se em face da nova redação dada ao inciso II do art. 784 II, que considera título executivo o documento particular assinado pelo devedor e por duas testemunhas, afastando as restrições que anteriormente existiam, podendo abranger, hoje, qualquer tipo de obrigação’ (TJSP, AI n. 208.214-4/8). Caso o contrato ainda tenha prestações recíprocas a serem cumpridas, a cobrança pode ser feita pela via da ação monitoria.

A penhora, no caso de execução de parcelas do preço, pode recair nos direitos do promissário comprador sobre o próprio imóvel, ainda que o único de natureza residencial. Entendeu o Superior Tribunal de Justiça que, assumida a dívida para aquisição da moradia, não se aplica ao caso a regra da impenhorabilidade do art. 1º da Lei n. 8.009/90, mas sim as ressalvas previstas no art. 3º do mesmo diploma (REsp n. 54.740-7/DF, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar; no mesmo sentido, RT 723/417). Pode parecer estranho que o promitente vendedor, ainda titular do domínio, requeira recaia a penhora sobre bem próprio, onerado por direitos do promitente comprador. Ocorre que os direitos de compromissário comprador têm natureza patrimonial e são passíveis de alienação - cessão - a terceiros, inclusive por mero trespasse. Logo, são perfeitamente penhoráveis e aptos à excussão. O arrematante se sub-rogará na posição de promitente comprador, com os créditos e obrigações inerentes ao contrato. Pode ainda o credor adjudicar os direitos de promitente comprador, na forma prevista no Código de Processo Civil, ou arrematar para si o imóvel. 

Em razão do inadimplemento da obrigação do pagamento do preço, abre-se ao promitente vendedor obrigação alternativa: ou executa a prestação ou pede a resolução do contrato. Os efeitos econômicos são radicalmente distintos, inclusive no caso de arrematação por terceiro, pelo próprio exequente, ou de adjudicação. Isso porque não há, em tal hipótese, devolução das parcelas pagas pelo promitente comprador, não incidindo as normas cogentes do art. 53 do Código de Defesa do Consumidor e do CC 413, impeditivos ou limitativos das cláusulas de perdimento, ou de decaimento. Como decidiu em data recente o Tribunal de Justiça de São Paulo, a unidade autônoma não retorna às mãos do credor, diante da ilegalidade da incidência da cláusula comissória. O credor apenas promove a excussão do imóvel, vendendo-o em hasta pública. Se o preço apurado for superior ao crédito, a sobra é devolvida ao devedor; se inferior, remanesce crédito a ser executado (TJSP, Al n. 455.955- 4/8-00, 4ª Câm. Dir. Privado, j. 29.06.2006).

No regime dos imóveis loteados (art. 38 da Lei n. 6.766/79) cabe lembrar que o preço do imóvel somente é exigível se o loteamento se encontrar devidamente registrado e com as obras de infraestrutura concluídas dentro do prazo legal. Como decidiu recentemente o Tribunal de Justiça de São Paulo, ‘a Lei n. 6.766/79, que trata do parcelamento do solo urbano, exige que o projeto de loteamento seja aprovado e submetido a registro junto ao Oficial de Registro Imobiliário, acompanhado dos documentos elencados no art. 18. Entre esses documentos, figura o comprovante da aprovação de cronograma das obras de infraestrutura, com a duração máxima de 4 (quatro) anos’ (TJSP, Ap. cível n. 501.986.4/6-00, 4ª Câm. Dir. Privado, j. 29.11.2007). É uma espécie de exceptio non adimpleti contractus de ordem pública, que permite ao promissário comprador sustar o pagamento do preço, e ao juiz conhecer de ofício da matéria. Pode-se dizer que a regularidade do empreendimento constitui pressuposto para o válido desenvolvimento do processo, de modo que pode o juiz, já no despacho inicial, determinar ao autor que junte certidão atualizada comprovando o registro do loteamento e, se for o caso, a averbação da conclusão das obras de infraestrutura.

Como acima mencionado, a ausência de pagamento do preço, por parte do promitente comprador, abre ao promitente vendedor obrigação alternativa a seu favor: ou executa a prestação ou resolve o contrato. Como diz Caio Mário da Silva Pereira, ‘descumprido o contrato bilateral, abre-se uma alternativa para o lesado, para exigir sua execução ou resolvê-lo com perdas e danos’ (Instituições de direito civil, 11. ed. Rio de Janeiro, Forense, v. III, p. 156). A opção pela resolução, porém, não se opera de pleno direito, ainda que tenham as partes convencionado cláusula resolutiva expressa, na forma do CC 473. As leis especiais que disciplinam o contrato de compromisso de compra e venda - Decreto-lei n. 58/37, Leis n. 6.766/79 e 4.591/64 -, atenuam a dureza da cláusula e, por normas cogentes, impõem notificação premonitória para o fim de converter a mora, que, como visto, normalmente é ex re, em inadimplemento absoluto. Os prazos exigidos nas leis são, respectivamente, de 15 dias para imóveis não loteados, 30 dias para imóveis loteados e 10 dias para unidades autônomas futuras construídas pelo regime de administração (ou preço de custo).

Como o exercício do direito de resolução supõe e requer uma manifestação de vontade unilateral do contratante lesado, com o propósito de formar ou extinguir relações jurídicas concretas, a doutrina mais moderna o tem tratado como direito potestativo. Fala-se, assim, em direito formativo (porque transforma um estado jurídico) extintivo (porque essa transformação desfaz a eficácia jurídica já produzida) (Aguiar Júnior, Ruy Rosado. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor- resolução. 2. ed. atualizada. Rio de Janeiro, Aide, 2003, p. 26). Ao contrário do que afirmam alguns doutrinadores, a cláusula resolutiva expressa não se confunde com a condição resolutiva. No dizer de Pontes de Miranda, não se pode elevar o inadimplemento a uma condição, em sentido técnico. Na verdade, o inadimplemento faz apenas nascer ao credor o direito formativo à resolução. A condição seria, então, o exercício desse direito pelo credor, o que é inadmissível (Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Revista dos Tribunais, 1984, t. XXV, p. 338). Em termos diversos, ocorrendo o inadimplemento do promitente comprador, o contrato não se encontra extinto, mas nasce para o promitente vendedor a opção entre cobrar o preço ou resolver o contrato. A notificação, assim, não serve para constituir o promitente comprador em mora, mas sim para convertê-la em inadimplemento absoluto e, com isso, abrir caminho para o exercício do direito potestativo de resolução. Tanto isso é verdade que o pagamento das parcelas fora da data aprazada, mas antes da interpelação, certamente será acrescido dos juros e multa moratórios (Azevedo Júnior , José Osório de. ‘Compromisso de Compra e Venda’. In: Cahali, Youssef (coord.). Contratos nominados: doutrina e jurisprudência. Editora Saraiva, 1995, p. 286). 

O descumprimento que dá margem à resolução é o definitivo, pela impossibilidade do devedor ou pela inutilidade da prestação para o credor. Cabe invocar, aqui, a clássica lição de Agostinho Alvim, para quem ‘há inadimplemento absoluto quando não mais subsiste para o credor a possibilidade de receber a prestação; há mora quando persiste essa possibilidade’ (Alvim Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. Editora Saraiva, 1959, p. 46). Há, assim, falta imputável ao devedor, que torna irrecuperável o cumprimento da prestação, ainda que tardio. A obrigação, pois, não foi cumprida, nem poderá mais sê-lo. Disso decorre ser inviável a resolução decorrente de simples mora, ou seja, quando persiste, ainda, a possibilidade e o interesse do credor no recebimento da prestação. A mora, no caso, tem dois efeitos fundamentais: por um lado obriga o devedor a reparar os danos que causa ao credor o atraso no cumprimento; por outro, lança sobre o devedor o risco da impossibilidade da prestação. A resolução do contrato, porém, não é um efeito da mora, mas só nasce para o credor quando a mora se converter em não cumprimento definitivo da obrigação (Varela, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. 6. ed. Coimbra, Almedina, 1996, v. II, p. 124).

A notificação pode ser judicial ou extrajudicial. Já se admitiu inclusive a notificação por simples carta com aviso de recebimento, desde que resulte inequívoco que o devedor tomou conhecimento do ato (TJSP, Ap. cível n. 497.173.4/4-00, 4ª Câm. Dir. Privado, j. 25.05.1997). Não se aceitam, porém, simples convites para comparecimento à sede da credora, ou meras cartas ou avisos de cobrança, sem a ressalva expressa da finalidade de conversão da mora em inadimplemento absoluto (TJSP, Ap. cível n. 337.153.4/5-00, 4ª Câm. Dir. Privado, j. 09.03.2006). Encontra-se em plena vigência a Súmula n. 76 do Superior Tribunal de Justiça: ‘A falta de registro do compromisso de compra e venda de imóvel não dispensa a prévia interpelação para constituir em mora o devedor’. Em determinados casos, quando litigam as partes em ação diversa - consignação em pagamento, anulatória de cláusula contratual, inexigibilidade de crédito - e resulta claro que o promitente comprador não deseja purgar a mora, mas discutir ou negar a dívida, a notificação perde sua finalidade e pode ser dispensada. Nos demais casos, a ausência de notificação leva à carência da ação de resolução do contrato, por falta de inadimplemento absoluto. 

Não é qualquer inadimplemento que leva à resolução do contrato, mas somente o substancial. A sanção radical da extinção do contrato deve corresponder à falta de proporcional gravidade, sob pena de se violar o princípio da boa-fé objetiva, na sua função de controle. O melhor entendimento, adotado por inúmeros julgados do Superior Tribunal de Justiça, é o de que a extinção do contrato por inadimplemento do devedor somente se justifica quando a mora causa ao credor dano de tal envergadura que não lhe interessa mais o recebimento da prestação devida, pois a economia do contrato está afetada. O Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior, no julgado líder, assentou posição de que ‘o adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a propositura de ação para a extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda do interesse na continuidade da execução, que não é o caso’ (REsp n. 272.739/MG). 

Caso típico de incidência da teoria do adimplemento substancial é o do compromisso de compra e venda com preço diferido ao longo do tempo, quando restam apenas algumas poucas parcelas sem pagamento. As parcelas já pagas atingem percentual elevado do preço total, de modo que o equilíbrio contratual já não mais é rompido pelo descumprimento. Em tal caso, pode o promitente vendedor executar as parcelas faltantes do preço, mas não pedir a resolução do contrato. Aplica-se então a teoria da mitigação (doctrine of mitigation), segundo a qual o credor deve colaborar, apesar da inexecução do contrato, para que não se agrave, por sua ação, o resultado danoso (Aguiar Júnior, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por do devedor. 2. ed. Rio de Janeiro, Aide, p. 136).

A resolução do contrato por inadimplemento depende de intervenção judicial ou, decorrido o prazo de purgação da mora, opera extrajudicialmente? No que se refere aos imóveis não loteados, o entendimento amplamente majoritário é no sentido de que ainda na presença de cláusula resolutiva expressa, não pode a estipulação persistir, à luz do art. 1° do Decreto-lei n. 745/69, que alterou o art. 22 do Decreto-lei n. 58/37, norma de natureza cogente. O novo Código Civil não alterou as normas de leis especiais que regem a matéria. A resolução depende de reconhecimento judicial, e o pedido de reintegração de posse é cumulativo e sucessivo. Em termos diversos, a reintegração pressupõe necessariamente a resolução do contrato e dela é consequência. 

Reconheço a existência de alguma vacilação jurisprudencial, mas o entendimento predominante do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de se exigir a prévia resolução do contrato e a consequente reintegração de posse, como pedido sucessivo. Nesse sentido, assentou o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira julgado com a seguinte ementa: I - A cláusula de resolução expressa, por inadimplemento, não afasta a necessidade da manifestação judicial para verificação dos pressupostos que justificam a resolução do contrato de promessa de compra e venda de imóvel. II - A ação possessória não se presta à recuperação da posse, sem que antes tenha havido a rescisão (rectius, resolução) do contrato. Destarte, inadmissível a concessão de liminar reintegratória em ação de rescisão de contrato de compra e venda de imóvel’ (REsp n. 204.246/MG). 

Seguiu tal julgado a esteira de anterior precedente do Superior Tribunal de Justiça, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, no REsp n. 237.539/SP, nestes termos: ‘Logo, o litígio há de ser solucionado em juízo, e no processo será apreciada não apenas a existência da cláusula, mas também a verificação das circunstâncias que justifiquem a resolução do contrato, pois bem pode acontecer que o inadimplemento não tenha a gravidade suficiente para extinguir o contrato. Com isso quero dizer que a cláusula de resolução expressa não afasta, em princípio, a necessidade da manifestação judicial, para verificação dos pressupostos que justificam a cláusula de resolução. A própria lei já tratou de flexibilizar o sistema do Código ao exigir a notificação prévia (art. 1º do Decreto-lei n. 745/69), a mostrar que as relações envolvendo a compra e venda de imóveis, especialmente em situação como a dos autos, de conjunto habitacional para população de baixa renda, exigem tratamento diferenciado, com notificação prévia e apreciação em concreto das circunstâncias que justificam a extinção do contrato, atendendo ao seu fim social. No sistema brasileiro, a regra é que a resolução ocorra em juízo, uma vez que somente ali poderá ser examinada a defesa do promissário, fundada, entre outras causas, em fato superveniente e no adimplemento substancial, as quais, se presentes, impediriam a extinção do contrato’. 

No que se refere aos imóveis loteados, o art. 32 da Lei n. 6.766/79 dispõe que no caso de inadimplemento de qualquer das parcelas do preço, após interpelação dos compromissários compradores, o contrato estará automaticamente resolvido, com cancelamento do registro imobiliário, e a posse do compromissário comprador se tornará injusta, em razão da precariedade, cabendo a reintegração de posse do imóvel. Apesar do expresso texto de lei, parece melhor exigir-se a resolução judicial do contrato. As razões dessa equiparação são expostas com clareza por José Osório de Azevedo Júnior: a) inadimplemento absoluto ou relativo pressupõe culpa do devedor, sem o que é mero retardamento, e envolve o exame de matéria de fato, insuscetível de análise pelo registrador, sem prévio contraditório; b) se a resolução de compromisso de imóvel não loteado exige pronunciamento judicial, seria um contrassenso que no caso de imóvel loteado, em que há maior disparidade de forças, dispensasse-se a intervenção do Poder Judiciário; c) se a resolução opera com força ex tunc, devem retornar as partes ao status quo ante e seria impossível, na esfera administrativa, o Oficial do Registro Imobiliário apurar o quantum do preço devolvido, além de indenizações por acessões e benfeitorias (Azevedo Júnior, José Osório de. Compromisso de compra e venda. 3. ed. Malheiros, p. 112/114). Embora a jurisprudência colecione precedentes em ambos os sentidos, recente julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo assentou o seguinte: ‘Compromisso de Compra e venda. Imóvel loteado. Inadimplemento do compromissário comprador. Resolução extrajudicial do contrato, com fundamento no art. 32 da Lei n. 6.766/79. Ajuizamento de ação de reintegração de posse com pedido de concessão de liminar. Impossibilidade sem prévia resolução judicial do contrato. Extensão aos imóveis loteados do regime resolutório dos imóveis não loteados. Indeferimento da liminar mantida. Recurso não provido’ (A I n. 422.973.4/1- 00,24.11.2005).

Finalmente, no que se refere às unidades autônomas futuras, construídas por regime de administração, os tribunais admitem a aplicação do art. 63 da Lei n. 4.591/64. Após notificação do condômino inadimplente para purgar a mora em 10 dias, o contrato se resolve sem intervenção judicial, e os direitos do promissário comprador podem ser levados a leilão extrajudicial, para com o produto reembolsar os adiantamentos dos demais condôminos para levantamento da obra.

Persiste dúvida se o mesmo regime jurídico se estende às unidades futuras construídas em regime de empreitada a preço global, certo e determinável. Aparentemente existe contradição entre as regras do art. 63, que pressupõem a reversão do produto do leilão extrajudicial da uni­dade aos condôminos que custearam a obra, e a construção a preço fechado, em que a edificação é paga pela construtora/incorporadora, sem repasse da quota do inadimplente aos demais adquirentes. Ocorre que a Lei n. 4.864/65, em seu art. 1º, VII, estende às incorporações a preço fechado a possibilidade de resolução e venda extrajudicial da unidade futura do inadimplente ao construtor e incorporador. O que acima foi dito em relação ao imóvel loteado aqui se reproduz, pois a resolução e venda extrajudicial impedem a aferição de inadimplemento culposo e subtraem o mecanismo de devolução de parte do preço pago pelo adquirente.

Há, porém, precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo estendendo às incorporações por empreitada a preço certo o regime do art. 63 da Lei n. 4.591/64: ‘Incorporação. Regime de empreitada a preço certo. Alienação extrajudicial de unidade, decorrente de rescisão do compromisso em razão da mora dos adquirentes. Alegação de nulidade do leilão, por não previsto expressamente no contrato, só cabível para o regime de construção a preço de custo e inadequado para obra já pronta e com posse entregue. Vícios inexistentes. Incidência das disposições da Lei n. 4.864, de 29.11.1965, que criou medidas de estímulo à construção civil e ampliou o âmbito das vendas extrajudiciais decorrentes do inadimplemento dos compradores, com poderes, para tanto, delegados à própria incorporadora. Improcedência da ação declaratória dos adquirentes e procedência da ação de imissão de posse do arrematante. Sentença mantida. Apelação não provida’. (Ap. cível n. 180.020-4/0-00, rel. José Roberto Bedran, j. 08.082006).

A resolução, nos contratos de execução diferida e fracionada, provoca efeitos ex tunc, retornando as partes ao estado anterior, com composição das perdas e danos por parte do contratante inadimplente. No dizer de Ruy Rosado de Aguiar Júnior, a resolução produz efeitos liberatórios e recuperatórios. Produz a liberação de ambas as partes, que tornam ao estado anterior. Produz o direito à restituição das prestações já pagas, que, no caso do compromisso de venda e compra, implica na devolução da coisa ao promitente vendedor e do preço ao promitente comprador (Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. 2. ed. Aide, p. 259). O promitente vendedor devolve o preço e o promitente comprador devolve a coisa ocupada, como consequência natural da resolução e independentemente de pedido expresso da parte. Fixou o Superior Tribunal de Justiça em inúmeras oportunidades, que ‘em havendo rescisão do compromisso de compra e venda, o desfazimento da relação contratual implica, automaticamente, como decorrência lógica e necessária, na restituição das prestações pagas, reservada uma parte, que fica deduzida, em favor da alienante, para ressarcir-se de despesas administrativas, sendo desnecessário que tal devolução conste nem do pedido exordial (quando o autor é o vendedor), nem da contestação (quando o autor é o comprador), por inerente à natureza da lide’ (REsp n. 500038/SP, rel. Min. Aldir Passarinho Júnior). Logo, resolvido o contrato, não há necessidade de reconvenção ou mesmo de pedido contraposto para a devolução das parcelas pagas pelo promitente comprador, compensadas com as perdas e danos. O juiz pode de ofício determinar a restituição, como seu efeito natural. 

O retorno ao estado anterior decorrente da natureza da resolução, com composição de perdas e danos, levou à interessante situação, na qual o promitente comprador que deixou de pagar as parcelas do preço tem interesse em postular a extinção do contrato, para reaver ao menos parte do valor já pago. Como explica o autorizado Ruy Rosado de Aguiar Júnior, ‘o devedor pode propor a demanda quando fundamentar o pedido na superveniente modificação das circunstâncias, com alteração da base objetiva do negócio. É o que tem sido feito com muita intensidade relativamente a contratos de longa duração para aquisição de unidades habitacionais, em que os compradores alegam a insuportabilidade das prestações reajustadas por índices superiores aos adotados para a atualização dos salários’ (Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. 2. ed. Aide, p. 165).

O Superior Tribunal de Justiça, em dezenas de julgados, assentou admitir-se ‘a possibilidade de resilição do compromisso de compra e venda por iniciativa do devedor, se este não mais reúne condições econômicas para suportar o pagamento das prestações avençadas com a empresa vendedora do imóvel’ (EREsp n. 59.870/SP, rel. Min. Barros Monteiro, DJU 09.12.2002; REsp n. 78.221/SP, rel Min. Aldir Passarinho Júnior, j. 26.08.2003, DJ 29.09.2003 p. 253, muitos outros). 

A posição, que se encontrava absolutamente sedimentada nos tribunais, teve recente revés. Julgado do Superior Tribunal de Justiça criou limitação temporal ao direito do promitente comprador pedir a resolução do contrato por impossibilidade superveniente. Entendeu que a iniciativa somente pode ser tomada pelo adquirente até a entrega das chaves ou imissão na posse do imóvel (REsp n. 476780/MG, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 11.06.2008). 

Constam do corpo do aresto as seguintes passagens, para justificar a limitação temporal do pedido de resolução: ‘deve haver, evidentemente, um limite fático-temporal para o exercício deste direito reconhecido na situação em que, diversamente do comum dos casos, ele é investido na posse do imóvel e passa a ocupá-lo ou alugá-lo a terceiros, transformando o apartamento, que era novo, em usado, iniciando o desgaste que ocorre com a ocupação, alterando o valor comercial do bem, que naturalmente, quando vendido na denominada 1ª locação, tem maior valia’.

E arremata o julgado: ‘se a desistência unilateral pelo comprador puder ser postergada para além da ocupação do imóvel, isso ameaça a integridade de obras futuras, posto que um capital disponibilizado para um empreendimento seguinte, já em andamento, sofrerá corte pela restituição que se imporá ante a desconstituição de uma venda implementada em todos os sentidos, notadamente pela entrega e ocupação do imóvel, que passa de novo a usado’.

A crítica que se faz à recente alteração de posicionamento é que, na verdade, a justificativa do pedido de resolução por iniciativa do adquirente nunca foi o simples arrependimento, pois o contrato é irretratável, mas sim a impossibilidade superveniente de arcar com o pagamento do preço. O inadimplemento fatalmente ocorrerá, com a resolução do contrato ou a execução do preço, e a consequência prática da alteração é apenas impedir a iniciativa do adquirente, após a imissão na posse.

Parece mais razoável, ao invés de limitar a iniciativa do pedido de resolução no tempo, limitando-a à data da imissão na posse, exigir prova da impossibilidade superveniente do promitente comprador e dosar com rigor as perdas e danos sofridas pelo promitente vendedor com a utilização e depreciação do imóvel pelo adquirente. Constata-se que em sede de cumprimento de sentença de muitos julgados, as perdas e danos do promitente vendedor foram subestimados, de modo que o valor a restituir, muitas vezes, iguala-se ou mesmo supera o valor atual e depreciado do imóvel. A correção de tal distorção não se dá pela limitação da iniciativa do pedido de resolução, mas sim pelo cálculo cuidadoso das perdas e danos sofridos pelo promitente vendedor, a serem compensados com a devolução de parcelas do preço, especialmente determinando valor de mercado de retribuição pelo uso do imóvel, com termo inicial na data da ocupação.

Tem o juiz a delicada tarefa de calibrar a cláusula penal, tornando-a proporcional aos reais prejuízos do promitente vendedor. Deve levar em conta, assim, as despesas administrativas, fiscais e com intermediação da venda frustrada por circunstância superveniente imputável aos adquirentes. Não se pode esquecer de eventual depreciação, ou mesmo de valorização do imóvel, para chegar ao justo montante das perdas e danos. Deve levar em conta, sobretudo, eventual período de ocupação do imóvel pelo promitente comprador, desde a entrega da posse direta até a efetiva devolução das chaves ao promitente vendedor. Note-se que a indenização pela ocupação, ao contrário do que se vê em muitos julgados, deve ter termo inicial na data da imissão da posse, e não na data do inadimplemento, sem o que não haveria efetivo retorno das partes ao estado anterior, diante do enriquecimento sem causa do promitente comprador, que ocuparia gratuitamente o imóvel durante certo lapso de tempo. Todas essas verbas devem ser compensadas com a devolução das parcelas do preço pagas. Em certos casos, mesmo a perda integral das parcelas do preço não será suficiente para cobrir os danos da parte inocente do contrato. 

No que se refere às arras, ou sinal, é entendimento corrente do Superior Tribunal de Justiça que ‘compreendem-se no percentual a ser devolvido ao promitente comprador todos os valores pagos à construtora, inclusive as arras’ (REsp n. 355.818/MG, rel. Min. Aldir Passarinho Junior; REsp n. 23.118/MG, rel. Min. Nancy Andrighi; REsp n. 257.582/PR, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar). Entender o contrário seria, por via oblíqua, consagrar o enriquecimento sem causa do promitente vendedor, em frontal vulneração ao princípio cogente do equilíbrio contratual, especialmente quando se trate de arras confirmatórias. Também se entende ‘abusiva a cláusula que fixa a multa pelo descumprimento do contrato com base não no valor das prestações pagas, mas no valor do imóvel, onerando demasiadamente o devedor’ (Ag. Reg. nos Emb. Decl. no AI n. 664744/MG, rel. Min. Sidnei Beneti, j. 26.08.2008). 

Decidiu em data recente o Tribunal de Justiça de São Paulo que o crédito relativo à devolução das parcelas é da natureza da resolução, de modo que a pretensão está sujeita ao prazo prescricional ordinário, não ao trienal do enriquecimento sem causa (TJSP, Ap. cível n. 486.081.4/9-00, 4ª Câm. Dir. Privado j. 24.05.2007).

Além disso, o crédito correspondente à devolução de parte das parcelas pagas rende juros de mora. A dúvida que persiste é o termo inicial da contagem dos juros. Inicialmente, entendeu-se que a mora não é do descumprimento do contrato resolvido, mas sim da obrigação de devolução de parte do preço pago. Decidiu em tal sentido o Superior Tribunal de Justiça que, ‘tratando-se de responsabilidade contratual, a mora constitui-se a partir da citação, e os juros respectivos devem ser regulados, até a data da entrada em vigor do novo Código, pelo art. 1.062 do diploma de 1916, e, depois dessa data, pelo CC 406 do atual Código Civil’ (REsp n. 594486/MG, rel. Min. Castro Filho). Decisão mais recente da mesma Corte, contudo, adotou posicionamento diferente, entendendo que ‘na hipótese de resolução contratual do compromisso de compra e venda por simples desistência dos adquirentes, em que postulada, pelos autores, a restituição das parcelas pagas de forma diversa da cláusula penal convencionada, os juros moratórios sobre as mesmas serão computados a partir do trânsito em julgado da decisão (REsp n. 1008610/RJ, rel. Min. Aldir Passarinho, j. 26.03.2008). Entendo mais adequada a primeira corrente, que manda pagar os juros moratórios contados da citação, momento em que tem o promitente vendedor conhecimento da pretensão de restituição de parte do preço pago pelo adquirente. A segunda corrente, que manda pagar os juros de mora a contar do trânsito em julgado, aparentemente viola o que dispõe o CC 405, além de estimular a litigância e o retardamento dos julgamentos, com sucessivas interposições de recursos, postergando o momento trânsito.

A cláusula que determina a perda das acessões e benfeitorias erigidas pelo promitente comprador segue o mesmo regime jurídico acima referido. Tem, sem dúvida, a natureza de cláusula penal compensatória, sujeita, portanto, ao regime do CC 413. O art. 34 da Lei n. 6.766/79, norma cogente aplicável aos imóveis loteados, dispõe serem indenizáveis as benfeitorias necessárias e úteis levadas a efeito pelo adquirente. Apenas diz não serem indenizáveis as benfeitorias erigidas em desacordo com o contrato ou com a lei. Não há como acolher, porém, a tese de que a acessão não é indenizável, porque clandestina e irregular junto a órgãos municipais. O que menciona o art. 34, parágrafo único, da Lei n. 6.766/79, não é a aprovação da construção, mas sim que esteja esta de acordo com a lei. Entender o contrário significaria que a construção irregular na esfera administrativa, mas com inegável valor de mercado, seria adquirida a título gratuito pelo promitente vendedor, em manifesto enriquecimento sem causa. Claro que as despesas correspondentes à regularização do imóvel deverão ser abatidas da indenização, como decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, em caso recente (TJSP, Ap. cível n. 425.300.4/3-00, 4ª Câm. Dir. Privado, j. 01.03.2007). 

Não se pode também deixar de perceber nítida tendência dos empreendedores cm tentar a fuga das normas protetivas do Código de Defesa do Consumidor e do CC 413 sob a criação de novas formas societárias. A tendência dos tribunais é no sentido de desprezar a estrutura jurídica da empreendedora - associação, clube de investimento, cooperativa ou sociedade - com o objetivo de alienação de unidades autônomas futuras, em construção ou a construir, ou de alienação de lotes. O que se privilegia é a natureza da atividade, que sempre consiste, com maior ou menor variação, em serviços remunerados de construção de unidade autônoma futura, vinculada a fração ideal de terreno, ou de lotes (cf., entre dezenas de outros, TJSP, Ap. cível n. 479.000.4/4-00, 4ª Câm. Dir. Privado j. 24.05.2007). Questão delicada é a da necessidade das cooperativas promoverem o registro da incorporação imobiliária, antes de lançar ao público empreendimentos de venda associativa de unidades autônomas futuras ou em construção. São omissas a Lei n. 4.591/64 e as Normas da Corregedoria Geral cia Justiça de São Paulo a respeito do tema. A princípio, não há necessidade da incorporação, pois inútil aos cooperados, que constroem pelo regime associativo de preço de custo da obra. Admite-se, porém, a necessidade do aludido registro, inclusive de sua efetivação por determinação judicial, desde que presentes dois requisitos cumulativos: a) a existência de indícios de que a forma social cooperativa mascara atividade empresarial; b) a utilidade do registro aos cooperados, permitindo-lhes maior e eficaz garantia do recebimento das unidades autônomas futuras (TJSP, AI n. 471.689.4/9-00, 4ª Câm. Dir. Privado, j. 07.12.2006)”. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.489-502. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 29/12/2020. Revista e atualizada nesta data por VD). 

No lecionar de Guimarães e Mezzalira, o artigo 1.417 em comento, trata de um novo direito real de aquisição – direito do promitente comprador do imóvel (CC 1.225, VII) – não se tratando de fruição ou de garantia e diferindo em relação à propriedade por não ser um direito pleno ou ilimitado.

A promessa irretratável de venda é o contrato em que o compromitente-vendedor se obriga a vender ao compromissário-comprador determinado imóvel, pelo preço, condições e modos especificados, outorgando-lhe a escritura definitiva tão logo se dê o adimplemento da obrigação. Uma vez pago o preço, o promissário-comprador adquire direito real à aquisição do bem, podendo exigir a escritura do vendedor ou de terceiros cedidos e, em caso de recusa, socorrer-se-á da adjudicação compulsória (Diniz, 2011, p. 419).

São características do instituto a irretratabilidade do negócio, não podendo haver cláusula de arrependimento, recaindo sobre bens imóveis loteados ou não, onde o preço seja pago à vista ou mediante prestações periódicas, com registro no cartório de imóveis que assegure o direito real de aquisição mencionado.

O contrato pode ser particular ou por via de escritura pública, não exigindo a legislação civil forma preordenada. 

Súmula 239 do STJ: “O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis”.

Os devedores devem ser interpelados para resgatarem as prestações vencidas e não pagas (mora solvendi), sob pena de não configurar fundamento para a rescisão do contrato (RT 184/125)

Súmula 76 STJ: “A falta de registro do compromisso de compra e venda de imóvel não dispensa a prévia interpelação para constituir em mora o devedor”.

Enunciado 253 CJF: “O promitente comprador, titular de direito real (CC 1.417), tem a faculdade de reivindicar de terceiro o imóvel prometido à venda”. 

É necessária a outorga uxória quando relacionada à alienação de bens imóveis (CC 1.647, I), aplicando-se a mesma regra em relação ao compromisso de compra e venda, sob pena de nulificação do ato, no prazo de até dois anos após o término da sociedade conjugal, exceto no regime da separação de bens (CC 1.647). (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira  apud  Direito.com, comentários ao CC 1.417 de 2002, acessado em 29.12.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 1.418. O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel.

No entendimento de Francisco Eduardo Loureiro, nesta  quarta edição do Código Civil Comentado, tal como no artigo anterior, acrescentou-se trechos de texto escrito recentemente sobre o compromisso de compra e venda (“Responsabilidade civil no compromisso de compra e venda”. In: Silva, Regina Beatriz Tavares da (coord.). Responsabilidade civil e sua repercussão nos tribunais. Saraiva, série Direito-GV, p. 167-219). Justifica-se a inserção, pois o CC 1.418 regula apenas a adjudicação compulsória, mas não loca nas demais prestações acessórias e deveres laterais de conduta que derivam do compromisso de compra e venda e que com extrema frequência ocorrem nos tribunais. 

“As obrigações do promitente vendedor. O dever de consentir na celebração do contrato definitivo. A adjudicação compulsória. A entrega da posse. A documentação relativa ao imóvel. De modo simétrico ao que foi dito no artigo anterior, as obrigações do promitente vendedor variarão de acordo com a função, o objetivo, a operação econômica desejada pelas partes no contrato de compromisso de compra e venda. Caso cumpra o contrato o papel de mero preliminar, enquanto as partes se preparam para a celebração da escritura de compra e venda, sem dúvida a obrigação principal do promitente vendedor consistirá em consentir no contrato definitivo. Essa obrigação de manifestar vontade consiste num facere, juridicamente fungível, porque pode ser suprida por decisão judicial. Desde o Decreto-lei n. 58/37, admite-se que a emissão do consentimento prometido e injustamente negado seja suprida por sentença judicial.

A adjudicação compulsória, na lição de Ricardo Arcoverde Credie, pode ser definida como ‘a ação pessoal que pertine ao compromissário comprador, ou ao cessionário de seus direitos à aquisição, ajuizada com relação ao titular do domínio do imóvel - que tenha prometido vendê-lo através de contrato de compromisso de venda e compra e se omitiu quanto à escritura definitiva - tendente ao suprimento judicial desta outorga, mediante sentença constitutiva com a mesma eficácia do ato não praticado’ (Credie,  Ricardo Arcoverde. Adjudicação compulsória. 7. ed. São Paulo, Malheiros, 1997). 

Embora defenda José Osório de Azevedo Júnior a tese da possibilidade da dispensa da escritura definitiva, substituída pelo compromisso acompanhado de prova da quitação, tal conclusão implica violação ao disposto no CC 108 (‘O compromisso de compra e venda’. In: Franciuli, Neto , Domingos (coord.), Mendes, Gilmar Ferreira & Martins Filho, Ives Gandra da Silva. O novo Código Civil: estudos em homenagem ao prof. Miguel Reale. São Paulo, LTr, 2003, p. 450). 

Não pode prevalecer, portanto, o Enunciado n. 87 do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, por ocasião da Jornada de Direito Civil realizada entre 11 e 13 de setembro de 2002, cujo teor é o seguinte: ‘Considera-se também título translativo, para fins do CC 1.245, a promessa de compra e venda devidamente quitada (CC 1.417 e 1.418 e § 6º do art. 26 da Lei n. 6.766/79)’. 

Possível, porém, que compromissos de compra e venda de imóveis de valores inferiores a trinta salários-mínimos, desde que contenham todos os requisitos do negócio principal, sejam neste convertidos (CC 170) e, recolhidos os impostos correspondentes, levados diretamente a registro, com transferência plena do direito de propriedade, em homenagem ao que dispõem os CC 104 e 108, anteriormente comentados. De igual modo, no que se refere a imóveis loteados destinados à população de baixa renda, o art. 26 da Lei n. 6.766/79 admite a transferência da propriedade plena mediante registro do compromisso de venda e compra acompanhado da prova da respectiva quitação (Bdine Júnior, Hamid Charaf. Compromisso de compra e venda, R T 843/58 e ss).

Para que o compromisso de compra e venda gere direito à adjudicação compulsória, deve preencher determinados requisitos, a saber: a) que o contrato preliminar tenha sido celebrado com observância do disposto no CC 462, ou seja, que contenha todos os requisitos essenciais do contrato a ser celebrado, com exceção da forma; b) que do contrato preliminar não conste cláusula de arrependimento. Caso contrário, as partes terão a possibilidade de desistir da celebração do negócio definitivo, de modo que não faria sentido admitir a execução específica, restando ao prejudicado receber o valor da cláusula penal (CC 408), as arras (CC 420) ou indenização por perdas e danos. Lembre-se, porém, que a lei e a jurisprudência colocam diversos limites à cláusula de arrependimento e ao momento em que pode ser alegada; c) que o promitente vendedor esteja em mora; d) que haja adimplemento da contraprestação devida pelo promitente comprador, se exigível. 

O CC 1.418, ora comentado, menciona dever ser o compromissário comprador titular de direito real, vale dizer, o compromisso de compra e venda se encontrar registrado, para que possa exigir a adjudicação compulsória. Tal exigência constitui manifesto retrocesso e ofende todo o entendimento doutrinário e jurisprudencial construído sobre o tema. A Súmula n. 239 do Egrégio STJ condensa o entendimento dos tribunais: ‘O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis’. 

Admitir interpretação literal do CC 1.418, ou seja, o registro como requisito para a adjudicação, criaria manifesta contradição em termos. Os demais contratos preliminares admitiriam execução específica, à exceção do mais relevante deles, que é o compromisso de compra e venda. Além disso, geraria situação de manifesta injustiça. Colocaria o promitente comprador, cujo contrato não obteve registro por falha meramente formal - erro na menção de um dado pessoal das partes, ou de uma medida perimetral - nas mãos do promitente vendedor, que poderia exigir vantagem indevida para outorgar a escritura devida.

Para contornar a exigência absurda criada pelo atual Código Civil, necessária se faz interpretação construtiva, com saída técnica e razoável para a questão. Basta entender que adjudicação compulsória é espécie do gênero execução de obrigação de fazer, de prestar declaração para concluir contrato (art. 498 do CPC). Logo, o promitente comprador com título registrado usa a espécie adjudicação compulsória (CC 1.418), enquanto o promitente comprador sem título registrado usa o gênero do art. 498 do Código de Processo Civil, que alberga todos os contratos preliminares. O resultado prático é rigorosamente o mesmo e produzirá a sentença judicial todos os efeitos do contrato ou declaração não emitida. 

A única e relevante diferença entre ambas as situações - contrato registrado e sem registro - é a oponibilidade perante terceiros. Se o imóvel tiver sido alienado nesse meio tempo a terceiro de boa-fé, que obteve o registro, o promitente comprador sem título registrado terá direito apenas de exigir do promitente vendedor a devolução do preço, mais perdas e danos, mas não a sentença substitutiva da escritura de venda e compra. Se o contrato estiver registrado, produz efeito erga omnes e impede a disposição e a criação de direito real antagônico. 

Em suma, o registro do contrato preliminar no oficial competente não é requisito para que o contratante possa exigir a celebração do contrato principal, mas mero pressuposto de oponibilidade a terceiros de boa-fé. 

Situação extremamente comum é a do promitente vendedor não ter o domínio do imóvel ou, ainda, a outorga de escritura registrável depender de uma série de providências para a regularização da propriedade, tais como aprovação de loteamento, desmembramento, instituição de condomínio edilício, retificação do registro, apresentação de certidões negativas fiscais, ou outros entraves. Em tais casos, a sentença de adjudicação compulsória, ou sentença substitutiva de vontade, será inócua, porque inábil para ingressar no registro imobiliário. Lembre-se que a sentença apenas substitui o contrato definitivo e está sujeita, como qualquer título, ao exame qualificador do oficial registrador e à obediência aos princípios registrários.

O promitente comprador, diante de tais obstáculos, terá execução de obrigação de fazer distinta contra o promitente vendedor, qual seja, a de promover a regularização do imóvel para, ato subsequente, outorgar a escritura, ainda que em pedidos sucessivos formulados na mesma inicial. Se a obrigação de regularizar não for juridicamente fungível, como na prática via de regra não o é, o pedido cominatório se mostra perfeitamente adequado para compelir o devedor a cumprir com exatidão a prestação de transmitir domínio hígido ao adquirente. Muitas vezes, não resta outra opção ao adquirente que pretenda regularizar a situação dominial de seu imóvel que não a ação de usucapião. Ainda que a prestação de regularizar não esteja expressamente avençada, é um daqueles deveres acessórios, ou laterais, que interessam ao exato cumprimento da prestação principal, em homenagem ao princípio da boa-fé objetiva e da obrigação vista como processo. 

Em casos excepcionais, em que a regularização dos entraves formais ao registro da escritura - e da sentença que a substitui - encontre-se em vias de ser atingida, pode ter a ação de adjudicação compulsória utilidade ao promitente comprador. Estará o adquirente munido de título, ciente, porém, de que o ingresso no registro de imóveis está subordinado a prévias medidas ou providências formais. Em caso recente, assim julgou o Tribunal de Justiça de São Paulo: ‘Compromisso de venda e compra. Contrato particular quitado, porém não levado a registro perante o Oficial de Registro de Imóveis. Impossibilidade de registro de lote situado em loteamento irregular. Carência da ação afastada. Apreciação do mérito, com fulcro no art. 1.013, § 3º, do CPC. Loteamento que se encontra em vias de regularização, já obtida a aprovação da Prefeitura Municipal de Guarulhos. Interesse em postular a adjudicação. Reconhecimento do direito dos autores ao suprimento judicial da outorga da escritura definitiva do imóvel, ressalvando-se que a aquisição do domínio pelo registro somente poderá ser feita após a regularização do empreendimento. Remessa dos autos ao Ministério Público para apuração de crime previsto na Lei n. 6.766/79. Ação parcialmente procedente. Recurso provido em parte’ (TJSP, Ap. cível n. 341.210.4/0-00, j. 07.08.2008). 

O inadimplemento do promitente vendedor faz nascer obrigação alternativa em favor do promitente comprador. Pode ajuizar a execução de obrigação de fazer - ou adjudicação compulsória - ou, ainda, pedir a resolução do contrato, cumulada com perdas e danos. 

Não está sujeita a adjudicação compulsória a prazo prescricional. Cuida-se de direito potestativo, podendo ser exercido a qualquer tempo em face do promitente vendedor, que somente cede frente a usucapião consumado em favor de terceiro (STJ, REsp n. 369206/MG, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar). 

Além da obrigação de outorgar a escritura definitiva, assume o promitente vendedor outras obrigações, especialmente no caso de o compromisso de compra e venda ter a função de garantia do recebimento do preço. Ganha relevo, nessa hipótese, a obrigação de entregar a posse da coisa desimpedida ao adquirente. O inadimplemento gera ao promitente comprador a pretensão de ver-se imitido na posse, estando ou não o seu contrato registrado. Mostra-se rigorosamente irrelevante o nome que se dê à ação. O que interessa é seu fundamento no ius possidendi, vale dizer, o direito de obtenção da posse como efeito da titularidade de uma relação jurídica de direito pessoal ou real preexistente. O Superior Tribunal de Justiça, em mais de uma oportunidade, assentou não ser ‘necessário o registro para o ingresso da ação petitória de imissão de posse, na forma de precedente da Corte’ (REsp n. 25871 l/SP, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 24.04.2001). Isso porque, segundo aquele tribunal, ‘obrigando-se o promitente vendedor no contrato a proceder a entrega do imóvel ao compromissário comprador, desde logo ou em determinado tempo, a este é facultado o exercício da ação de imissão de posse, ainda que não esteja a promessa registrada no álbum imobiliário” (REsp n. 93015/PR, rel. Min. Barros Monteiro, RST) 92/283). 

Ocorre que em casos frequentes a entrega da posse ao promissário comprador está subordinada à prévia construção da acessão, especialmente sob a forma de unidade autônoma, no regime da incorporação imobiliária da Lei n. 4.591/64. A obrigação deixa de ser apenas de dar e envolve um fazer que, via de regra, é juridicamente infungível. Cabe ao promissário comprador exigir a entrega da coisa, sob pena de incidência de multa, ou, então, resolver o contrato por inadimplemento do promitente vendedor, recuperando a totalidade das parcelas pagas, acrescidas de danos materiais e, em certos casos, também morais. Note-se que aqui não se cogita de impossibilidade superveniente do adquirente, mas de inadimplemento do alienante, razão pela qual a devolução é da integralidade das parcelas pagas, sem qualquer retenção e acrescida de perdas e danos. Decidiu o Superior Tribunal de Justiça que ‘resolvida a relação obrigacional por culpa do promitente vendedor que não cumpriu a sua obrigação, as partes envolvidas deverão retornar ao estágio anterior à concretização do negócio, devolvendo-se ao promitente vendedor faltoso o direito de livremente dispor do imóvel, cabendo ao promitente comprador o reembolso da integralidade das parcelas já pagas, acrescida dos lucros cessantes’. (REsp n. 644984/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi). 

Questão ligada à entrega da posse do imóvel, interessante e atual, a ser abordada como pressuposto da resolução é a da quebra antecipada do contrato. Há situações em que se pode deduzir, conclusivamente, que o contrato não será cumprido, de tal forma que não seria razoável aguardar o vencimento da prestação, ou obrigar o contratante fiel e cumprir, desde logo, a prestação correspectiva. Não há, propriamente, quebra da prestação principal ainda não vencida, mas sim quebra da confiança no cumprimento futuro, pautada em elementos objetivos e razoáveis. Admite-se, em tais casos, a resolução do contrato, desde logo. Tomem-se como exemplos casos recentes, em que se contratou a aquisição futura de apartamento, a ser construído, mediante pagamento parcelado. Aproximando-se a data da entrega da unidade, sem que nem as fundações do edifício estivessem concluídas, razoável supor que não seria entregue na data aprazada ou próxima. Viável a resolução, abrindo desde logo ao adquirente a possibilidade de reaver os valores pagos e de exonerar-se dos pagamentos vincendos. No dizer de Ruy Rosado de Aguiar Júnior, é possível o inadimplemento antes do tempo sempre que o devedor pratica atos nitidamente contrários ao cumprimento, de tal sorte que se possa deduzir conclusivamente, diante dos dados objetivos existentes, que não haverá cumprimento. Evidenciada a impossibilidade da prestação, há quebra da confiança e desaparece o interesse social na manutenção de um vínculo que somente gerará lesão ao contratante inocente (Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. 2. ed. revista e atualizada. Aide, p. 130). Foi decidido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo o seguinte, a respeito do tema: ‘Compromisso de compra e venda. Resolução do contrato por atraso na entrega da obra. Quebra antecipada por violação positiva do contrato. Descompasso entre o cronograma e o andamento da obra, com clara indicação de não entrega na data prevista. Inadimplemento antecipado da obrigação da empreendedora. Efeito ex tunc da sentença resolutória. Restituição integral, atualizada e imediata das parcelas pagas. Ação procedente. Recurso improvido’ (TJSP, Ap. cível n. 306.617.4/1-00, 4ª Câm. Dir. Privado, j. 02.02.2006). 

Não basta a entrega física da posse do imóvel ao promitente comprador. A celebração do contrato definitivo de compra e venda exige também perfeição jurídica. Isso envolve, no caso de promessa de venda de unidade autônoma futura, a expedição do habite-se e a instituição do condomínio edilício (Lei n. 4.591/64). No caso de imóvel loteado, o prévio registro do loteamento e a realização de obras de infraestrutura (Lei n. 6.766/79). Não se pode esquecer que o compromisso de compra e venda é contrato translativo, que visa, em última análise, a aquisição da propriedade imóvel. Por isso, deve o promitente vendedor atender todos os requisitos substanciais, formais, fiscais e administrativos para que o contrato e a futura escritura possam ingressar no registro imobiliário e provocar a aquisição da propriedade. Desdobros, desmembramentos, retificações do registro, averbações de construções, certidões negativas fiscais e previdenciárias, enfim, tudo o que estiver sob o crivo do princípio da legalidade e passível de qualificação pelo Oficial do Registro constituem prestações acessórias e, ainda que não previstas no contrato, são devidas pelo promitente vendedor, para viabilizar a prestação principal e atender o interesse do promitente comprador. 

Em todos os casos, qualquer que seja o regime jurídico do compromisso de compra e venda, indispensável a apresentação de documentação completa do imóvel, do promitente vendedor e, se o caso, de seus antecessores, de modo a evitar a ocorrência de evicção total ou parcial. As certidões pessoais do alienante devem proporcionar segurança jurídica ao adquirente. Por isso, são levadas em conta as condições e as qualificações pessoais do promitente vendedor. O crescente desenvolvimento da desconsideração da personalidade jurídica faz com que sejam exigíveis pesquisas em nome da pessoa jurídica da qual o promitente vendedor é cotista, a fim de conhecer a existência de passivos fiscais, previdenciários e trabalhistas que possam afetar de algum modo o patrimônio dos sócios. 

A ausência ou deficiência da documentação podem provocar tanto o efeito da suspensão da exigibilidade de parcelas do preço, proporcionais ao risco - exceptio non rite adimpleti contractus - como em casos mais graves, nos quais se constate violação que comprometa a economia do contrato e afete de modo substancial o interesse da parte, até mesmo a resolução (TJSP, Ap. cível n. 503.502.4/3-00, 4ª Câm. Dir. Privado, j. 29.11.2007). Evidente que, violado o dever acessório de prestação, abre-se em favor do promitente comprador obrigação alternativa de exigir o exato cumprimento da obrigação ou de resolver o contrato”. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.504-08. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 29/12/2020. Revista e atualizada nesta data por VD). 

Segundo o panorama exposto na Doutrina de Ricardo Fiuza, para o promitente comprador fazer uso da ação (de direito material) cujos contornos aparecem delineados nesse dispositivo conjugado com o precedente, faz-se mister a configuração dos seguintes requisitos de ordem substantiva (mérito propriamente dito): a) cumprimento cabal do que lhe competia conforme avençado no contrato; b) recusa injustificada do promitente vendedor ou de terceiros a quem os direitos forem cedidos, em firmar a escritura definitiva de compra e venda do imóvel; c) inexistência de cláusula de arrependimento; d) registro do instrumento público ou privado no Cartório de Registro de Imóveis. Sobre esse último requisito, merece destaque a perda de eficácia da Súmula 239 do STJ, ao preconizar que “o direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis”, tendo em vista que se trata de condição necessária definida no próprio CC 1.417, ou seja, requisito que se opera ex lege para a configuração do próprio direito real, não podendo ser rechaçado por orientação pretoriana, ainda que sumulada, nada obstante perfeitamente adequada, antes do advento do novo CC. 

• Atingindo o contrato o seu termo, e cumprindo integralmente o promitente comprador com a sua pane, conforme avençado, o sistema positivado faculta-lhe a tutela jurisdicional para a obtenção da satisfação de sua pretensão resistida, por meio da utilização de diversas ações (materiais), variando conforme a relação jurídica apresentada na hipótese em concreto, senão vejamos: a) adjudicação compulsória; b) adjudicação compulsória de imissão de posse; c) indenização por perdas e danos; d) adjudicação compulsória c/c imissão de posse e perdas e danos; e) ação cognitiva de obrigação de fazer com pedido cominatório; ação de execução de título extrajudicial. A ação de adjudicação compulsória tramitará pelo rito sumário (art. 16. caput, do Decreto-lei n. 58/37 c/c arts. 275 usque 281 do CPC/1973, [V. art. 1.046, § 1.º e 1.049 e 1.063 relacionados no CPC/2015). (sobre o tema processual v. SoeI Dias Figueira Jr., Comentários ao CPC/1973, v. 42, t, 1, arts. 270 a 281, p. 306 a 483, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2001); v. interessante estudo de MI*CC16 Abelha Rodrigues e Flávio Cheim Jorge, intitulado Meios processuais para a efetivação do direito do credor titular de compromisso de compra e venda registrado e a ausência de tipicidade de ações no sistema processual brasileiro (RePro, 103t210-22).

• Legitimidade ativa e passiva: pelo princípio da aderência, donde exsurge o chamado direito de sequela (oponibilidade erga omnes), o titular do direito real de promessa de compra e venda (autor da ação = parte ativa legítima ad causam) haverá de dirigir a demanda contra o promitente vendedor ou contra terceiros, a quem os direitos forem cedidos, com a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme ajustado no contrato preliminar (parte passiva legitima ad causam). 

• Súmula do STF: 413 — O compromisso de compra e venda de imóveis, ainda que não loteados, dá direito à execução compulsória, quando reunidos os requisitos legais.

• Súmula do STJ: 239 — O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.

• Conforme já assinalado anteriormente, entende-se que esta Súmula perde sua eficácia com o advento do novo CC e a implementação do rol com o direito real de compromisso de compra e venda. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 724-25, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 29/12/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

No dizer de Guimarães e Mezzalira, o compromissário-comprador passa a ter direito real de aquisição em relação ao bem tão logo se veja quitado de todas suas prestações e obrigações, sendo titular do respectivo direito de sequela em face do vendedor – ou a quem o imóvel tenha sido transferido – dado o efeito erga omnes gerado pelo registro imobiliário. 

Havendo recusa para entrega da escritura do bem, o compromissário-comprador poderá valer-se da ação judicial de adjudicação compulsória, demonstrando o cumprimento total de suas obrigações pactuadas na avença.

A ação de adjudicação compulsória tem por finalidade obter, através de sentença, a denominada carta de adjudicação, a qual substitui a lavratura da escritura definitiva – recusada por quem tinha o dever de emiti-la – devendo a respectiva decisão ser levada a cartório para registro. 

Caso o vendedor esteja recusando, de má-fé, o recebimento das prestações faltantes, para livrar-se da adjudicação compulsória com o intuito de impedir a transferência do bem, cabe ao comprador consignar em juízo os respectivos pagamentos, para o posterior ajuizamento da competente ação (RT 783/438). 

Enunciado 95 do CJF: “O direito à adjudicação compulsória (CC 1.418), quando exercido em face do promitente vendedor, não se condiciona ao registro da promessa de compra e venda no cartório de registro imobiliário (Súmula 239 do STJ)”. 

O registro imobiliário do contrato de compromisso de compra e venda em cartório legitima o compromissário-comprador a receber a indenização integral em virtude de eventual desapropriação sobre o imóvel, desde que sua obrigação esteja quitada (STF, MS nº 24.908).

O procedimento da ação de adjudicação compulsória se operava pelo rito sumário previsto no CPC de 1973, o qual deixou de existir pela novel lei processual (Lei 13.105/2015), não tendo sido contemplada esta demanda, entretanto, dentre aquelas de procedimento especial (art. 539 e ss), o que a remete ao procedimento comum. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira  apud  Direito.com, comentários ao CC 1.418 de 2002, acessado em 29.12.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Direito Civil Comentado - Art. 1.414, 1.415, 1.416 - Da Habitação – VARGAS, Paulo S. R.

 

Direito Civil Comentado - Art. 1.414, 1.415, 1.416

- Da Habitação – VARGAS, Paulo S. R.

- Parte Especial –  Livro III – Capítulo IV – Título VIII

Da Habitação  – (Art. 1.414 a 1.416) - digitadorvargas@outlook.com

digitadorvargas@outlook.com - vargasdigitador.blogspot.com
Whatsap: +55 22 98829-9130 Phone Number: +55 22 98847-3044
fb.me/DireitoVargasm.me/DireitoVargas

 

 Art. 1.414. São aplicáveis à habitação, no que não for contrário à sua natureza, as disposições relativas ao usufruto.

Historicamente confirma-se a observação da redação inicial do projeto — “Quando o uso consistir no direito de habitar gratuitamente casa alheia, o titular deste direito não a pode alugar, nem emprestar, mas simplesmente usar dela com sua família verifica-se que o relator geral no Senado restaurou a redação do Código Civil de 1916. O que confirma, também, em sua Doutrina o Deputado Relator Ricardo Fiuza - Habitação é um direito real, temporário, limitado à ocupação de imóvel residencial de terceiro, para moradia do titular e de sua família. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 722, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 28/12/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Na visão de Francisco Eduardo Loureiro, Direito real de pouca utilização, pode ter origem em negócio jurídico inter vivos, levado ao registro imobiliário, negócio jurídico causa mortis, usucapião ou diretamente na lei. Expressa a lei que a habitação é espécie do gênero uso. É o uso com finalidade exclusiva de habitar ou ocupar um imóvel como moradia. Via de consequência, é vedado usar o prédio com finalidade diversa, como atividade empresarial. A quebra desse dever constitui mau uso e leva à extinção do direito real. Como bem adverte Tupinambá Miguel Castro do Nascimento, é tolerada a utilização mista do imóvel, desde que preponderantemente residencial (Usufruto, 2. ed. Rio de Janeiro, Aide, 1983, p. 205).

Note-se, porém, que, ao contrário do uso, a utilização do imóvel não está limitada pela necessidade do morador e de sua família. Embora não diga expressamente a lei, pode habitar o prédio não somente o titular do direito real, como também sua família, sendo inoperante qualquer cláusula em sentido contrário, porque importaria em quebra de entidade de estatura constitucional. O conceito de família é o mesmo do direito real de uso, inclusive o companheiro e outras pessoas que se encontram sob guarda ou dependência do habitador. Não se admite nem a alienação nem a cessão do exercício do direito real de habitação, dado o seu caráter personalíssimo. É direito real temporário e não ultrapassa a vida de seu titular.

Sem dúvida alguma, a mais frequente hipótese de direito real de habitação é a legal, prevista no CC 1.831 do Código Civil de 2002, que reza: “ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar”.

Houve significativa alteração no direito real de habitação do cônjuge sobrevivente em relação ao que dispunha o Código Civil de 1916. Tipifica-se o instituto como um verdadeiro legado ex lege. É legado porque recai sobre bem determinado. É ex lege porque independe do negócio jurídico do testamento, integrando capítulo da sucessão legítima.

Tem a norma o escopo de permitir ao cônjuge supérstite continuar a viver no lugar e entre as coisas nas quais se desenvolveu a vida familiar, ou ao menos a sua última parte. A primeira observação é a de que tem o cônjuge viúvo direito real de habitação qualquer que seja o regime de bens do casamento. Pode, portanto, não herdar quota de propriedade plena, em razão do regime de bens do casamento, mas lhe é assegurada, em qualquer hipótese, a permanência na habitação, bastando apenas que seja o único imóvel daquela natureza a inventariar. Não mais vigora, por consequência, a regra do sistema anterior, em que o direito ao instituto estava circunscrito aos casados pelo regime da comunhão universal, que não recebiam o usufruto vidual. 

Prossegue o CC 1.831 do Código Civil de 2002 afirmando que o direito real de habitação é atribuído sem prejuízo da participação que caiba ao cônjuge supérstite na herança, subordinado, somente, à existência de um único imóvel de natureza residencial no espólio. O Código Civil de 2002, ao atribuir ao viúvo, em determinadas situações, quota de propriedade plena e mais o direito real de habitação, criou um dilema que não existia no sistema de 1916. Basta imaginar a hipótese, nada acadêmica, de cônjuge supérstite que, em razão do regime de bens, concorre somente com um descendente. Caso o único bem do espólio seja um imóvel residencial, o viúvo receberia metade do imóvel como herança e mais o direito real de habitação vitalício sobre ele. Ao descendente restaria apenas a nua propriedade sobre a outra metade da herança, o que, a toda evidência, agrediria sua legítima. Nada impede, todavia, que o cônjuge supérstite renuncie ao direito real de habitação, como, de resto, assentou o Enunciado n. 271 da III Jornada de Direito Civil 2004 do CEJ da Justiça Federal: “Art. 1.831. O cônjuge pode renunciar ao direito real de habitação, nos autos do inventário ou por escritura pública, sem prejuízo de sua participação na herança”. Não custa lembrar que o direito real de habitação, que decorre diretamente da lei, não é constituído pelo registro imobiliário, de modo que devem adquirentes de imóveis sempre tomar a cautela de exigir a renúncia do supérstite. 

Conclui-se que o CC 1.831, ao consignar expressamente que se assegura ao viúvo o direito real de habitação sem prejuízo de sua quota na herança, criou uma exceção à regra do CC 1.846 do Código Civil, que garante aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança. São normas de igual estatura, ambas cogentes, de tal modo que o princípio secular da intangibilidade da legítima ganha uma exceção, prevista na própria lei. Essa antinomia aparente deve-se, certamente, a uma desatenção do legislador, que não notou o descompasso entre a atribuição de quota de propriedade plena ao viúvo e o acréscimo do direito real de habitação, “sem prejuízo da participação que caiba ao cônjuge”. Essa expressão ampla era compatível somente com o Código de 1916, no qual o cônjuge era herdeiro de terceira classe, sem possibilidade de concorrência com classes superiores.

Além disso, o art. 1.831 do Código Civil de 2002 não mais subordina, tal como ocorria no Código de 1916, a eficácia do direito real de habitação à persistência da viuvez. Logo passou o viúvo a dispor de direito real vitalício sobre a residência do casal, podendo, inclusive, nela habitar com o novo cônjuge, o que em alguns casos gerará situações curiosas, especialmente quando os filhos do primeiro leito não mais morarem com o genitor sobrevivente, fazendo nascer conflito entre os interesses da família e do supérstite. É certo que o Projeto de Lei n. 276, de 2007, sana a omissão, fazendo retornar ao direito positivo a condição resolutiva do CC 1.611, § 2º, vale dizer, o direito real de habitação somente existe enquanto perdurar a viuvez.

Outra inconsistência notável do Código Civil de 2002 é a ausência de menção ao companheiro sobrevivente como titular do direito real de habitação. Essa omissão apenas coroa o tratamento severo - e incompreensível - que o CC 1.790 conferiu ao companheiro no direito sucessório, retirando diversas conquistas consagradas pelas Leis nºs. 8.971/94 e 9.278/96. 

Uma interpretação literal e exegética do CC 1.831 - tão ao gosto do pensamento liberal que orientou o Código de 1916 - levaria à fácil conclusão de que o direito real de habitação é prerrogativa reservada exclusivamente ao cônjuge viúvo, excluindo-se o beneficio do companheiro viúvo. Há quem sustente que o tratamento radicalmente diverso dado ao cônjuge e ao companheiro sobreviventes nada mais é do que a melhor expressão da norma constitucional, que não equiparou o casamento à união estável, mas, em vez disso, conferiu primazia ao primeiro.

Essa conclusão, à observação, não pode prevalecer, sob a ótica civil-constitucional. Óbvio que o casamento não se equipara à união estável, podendo gerar - como gera - direitos e deveres distintos a cônjuges e companheiros. O que se discute é a possibilidade de a legislação infraconstitucional alijar, de modo tão grave, alguns direitos fundamentais anteriormente assegurados a partícipes de entidades familiares constitucionalmente reconhecidas. Como frisado anteriormente, o escopo do direito real de habitação é assegurar ao supérstite a preservação de um ambiente que lhe é caro, permitindo-lhe permanecer no imóvel residencial e entre objetos do casal, assegurando-lhe a manutenção de um bem essencial - a moradia. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.484-85. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 28/12/2020. Revista e atualizada nesta data por VD). 

Nos apontamentos dos autores Guimarães e Mezzalira, como consta, a habitação é uma espécie de uso de bem alheio com a finalidade de estabelecer a moradia gratuita ao seu titular, o qual não poderá, assim, dar o bem em locação ou emprestá-lo, servindo, tão somente, como local de ocupação residencial, na exata forma prescrita pelo texto legal, eis que qualquer alargamento do direito traçado trataria de desnaturalizar o sentido do instituto. Tem por característica ser gratuito, temporário e personalíssimo, de conceito mais restrito, inclusive, que o próprio uso e incide unicamente sobre bem imóvel, destinado à residência do titular do direito, não podendo servir como comércio, sob pena de extinção. 

O direito de habitação pressupõe o uso de jardins, varandas e todas as benfeitorias que estejam integradas ao imóvel, salvo disposição em contrário no título constitutivo. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira  apud  Direito.com, comentários ao CC 1.414, acessado em 28.12.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 1.415. Se o direito real de habitação for conferido a mais de uma pessoa, qualquer delas que sozinha habite a casa não terá de pagar aluguel à outra, ou às outras, mas não as pode inibir de exercerem, querendo, o direito, que também lhes compete, de habitá-la.

Ainda no conceito de Guimarães e Mezzalira, o direito real de habitação poderá ser conferido, por sua natureza, a mais de uma pessoa beneficiária, estabelecendo-se, pois, uma pluralidade de usuários, não gerando, entretanto, qualquer dever de pagamento de aluguel entre elas, as quais exercerão em conjunto a ocupação residencial. 

Conforme o texto legal, nenhum dos usuários do direito de habitação poderá restringir ou impedir, de qualquer maneira, o direito do cobeneficiário, quando estabelecido de forma coletiva, uma vez que a ocupação do bem para fins de moradia, nesta hipótese, possui natureza plural, e não individual.

Verifica-se a aplicação do direito real de habitação nas disposições sucessórias, em favor do cônjuge viúvo, caso sob qualquer regime de bens, desde que se trate do único bem destinado à residência familiar (CC 1.831). (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira  apud  Direito.com, comentários ao CC 1.415 de 2002, acessado em 28.12.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD). 

Como corrobora Francisco Eduardo Loureiro, consagra o princípio da divisibilidade do direito real da habitação, que pode ser concedido a mais de uma pessoa, em partes certas ou em partes ideais. Ao contrário do que ocorre no condomínio, aquele que usa com exclusividade a coisa dada em habitação comum não tem o dever de indenizar os demais cotitulares, pagando-lhes aluguel ou retribuição pela moradia exclusiva. Cabe aos demais cotitulares excluídos da habitação apenas o ajuizamento de ação possessória, ou petitória, para garantia do direito de também habitar o prédio. Não se admite, por consequência, ação de indenização entre cotitulares, em razão de habitação exclusiva de um deles. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.487. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 28/12/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Expandindo a lei, Marcio de Carvalho Valente, em “O direito real de habitação legal no Direito brasileiro”, faz uma análise conceitual e tipológica da figura em questão, incluindo seus desdobramentos dogmáticos e embates na aplicação prática. O texto fornece os contornos teóricos para a abordagem do conflito com a sucessão hereditária, ultimada em artigo diverso do Autor. 

Conceitualmente, valendo-se da definição contida no CC 1.414, pode-se dizer que o dizer que o direito real de habitação consiste no direito de habitar gratuitamente casa alheia, utilizando-a como residência sua e de sua família. Esta é a redação do comando legal referido.

Com relação à sua tipologia, predomina no Direito brasileiro a subdivisão desse modelo em duas espécies: direito de habitação convencional e legal. Por convencional entende-se o direito real voluntariamente estabelecido pelo instituidor em favor do beneficiário (habitador); direito de habitação legal, é o direito real instituído automaticamente diante da situação prevista em lei, e autoriza a permanência do cônjuge supérstite na residência do imóvel no qual mantinha a união com o de cujus após seu falecimento. É esta última espécie, direito de habitação legal, que apresenta os contornos relevantes à presente abordagem, o que é objeto de análise no presente texto. 

A propósito do direito de habitação legal, decorrente de sucessão hereditária, sua instituição deriva da simples ocorrência da situação prevista em lei, i.é, pela sobrevivência de cônjuge no imóvel destinado à residência da família. Nesse contexto, não há necessidade de registrar tal direito junto ao fólio real do imóvel, a teor do que se extrai da letra do art. 167, inciso I, n. 7, Lei 6.015/73: “No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos (Remunerado do art. 168 com nova redação pela Lei nº 6.216, de 1975): I – o registro: redação pela Lei nº 6.216, de 1975; 7) do usufruto e do uso sobre imóveis e da habitação, quando não resultarem do direito de família (Brasil, Lei n. 6015, 1973, art. 197, inciso I, n. 7). 

Quanto à aplicabilidade às uniões homossexuais – de início, vale assinalar que, alçada a igualdade de valores entre as uniões heterossexuais e as homossexuais, e assente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a plena possibilidade de celebração de casamento entre pessoas do mesmo sexo (Ação Direito de Inconstitucionalidade n. 4.277/DF), não há impedimento para que o direito de habitação seja conferido no caso de a união ou casamento homossexuais.

O Código Civil de 2002, ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens,, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar (Brasil, Lei n. 10.406, 2002, CC 1831).

Sugere o autor, Marcio de Carvalho Valente, haver o Código Civil de 2002, ter consagrado o direito real em questão, disciplinado exclusivamente de sua aplicação ao cônjuge sobrevivo, deixando de contemplar em seu texto o companheiro supérstite, e que a omissão, para muitos estudiosos do direito, significou clara vedação do instituto nas uniões estáveis, ao fundamento de que, caso pretendesse estender o direito real de habitação ao modelo de família convencional, bastaria ao legislador acrescentar a expressão correspondente ao texto da Lei, providência que preferiu não adotar.

Por outro lado, a par da respeitabilidade dos civilistas mencionados, é certo que a grande maioria da doutrina avalizada pelo entendimento jurisprudencial, perfilha entendimento contrário. Neste enfoque, parte-se da premissa de que o parágrafo único, do art. 7º da Lei n. 9.278/1996 não foi revogado, inexistindo, ademais, qualquer fundamento hábil a tratar de forma desigual o casamento e a união estável, especialmente porque a própria Constituição Federal reconhece a união estável como genuína entidade familiar. Trilhando esta linha de raciocínio, possível identificar o entendimento de Fabio Ulhoa Coelho (2012 b, p. 167), entre outros, perfilhados a esta corrente. 

Avançando na análise da figura do habitador, agora adentrando ao elenco dos requisitos de concessão da benesse, cumpre observar que não existe qualquer exigência de que o cônjuge sobrevivo tenha participação no imóvel, ou tampouco seja herdeiro do morto, para que seja contemplado com o direito real de habitação. Em outros termos, basta que a existência de vínculo conjugal ou convivencial entre o de cujus e o favorecido, a fim de constituir ipso facto o direito de habitação do supérstite.

Sob outro vértice, cabe destacar que é plenamente possível que o direito real de habitação seja conferido a mais de uma pessoa conjuntamente. Nesse caso, porém, deve ser observado mandamento expresso no Código Civil de que a habitação por um dos habitadores jamais poderá excluir a dos demais, tampouco servir de motivo pra a cobrança de aluguel para o exercício do direito pelo outro: Se o direito real de habitação for conferido a mais de uma pessoa, qualquer delas que sozinha habite a casa não terá de pagar aluguel à outra, ou às outras, mas não as pode inibir de exercerem, querendo, o direito, que também lhes compete, de habitá-la (BRASIL, Lei n°. 10.406, 2002, art. 1.415).

Admissível, ainda, segundo observação de Sebastião de Assis Neto, que dentre a família do habitador encontrem-se também pessoas que não sejam de sua família, desde que observada a condição de inexistir onerosidade da hospedagem no imóvel. Tal premissa não enseja a conclusão, porém, de que outros herdeiros do de cujus tenham a faculdade de morar juntamente com o habitador, já que o direito de habitação envolve o uso exclusivo do imóvel. Nesse sentido são os ensinamentos de Fabio Ulhoa Coelho.

A lei não é expressa a respeito, mas deve-se reconhecer ao cônjuge sobrevivo o direito de usar todo o imóvel com exclusividade. O ascendente ou descendente coproprietário do bem não pode vir morar como cônjuge, se antes não habitava o mesmo local. Assim deve ser, porque caso contrário, o CC 1831 não teria qualquer implicação. Veja-se, ser o direito do condômino usar o bem em condomínio, desde que não exclua nenhum dos outros coproprietários. O cônjuge, portando, na condição de condômino do imóvel herdado, já titula o direito de usá-lo. Para que o gravame da habitação, que a lei determina recair sobre esse bem, tenha algum significado, é necessário reconhecer ao seu titular mais direitos do que os derivados do condomínio.

Quanto ao valor do imóvel habitando – nessa seara, cumpre advertir, inexiste limitação quanto ao valor do imóvel habitando, justamente porque a mens legis que orientou a concepção do instituto teve por escopo a manutenção ao padrão de vida que o habitador desfrutava antes da morte de seu consorte. Esse entendimento encontra ressonância no Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu, em julgamento que é alvo de severas críticas, o direito de habitação à companheira supérstite no imóvel em que vivia com o de cujus, a despeito de ter adquirido outro imóvel com a indenização recebida de seguro de vida do falecido. Este é o julgado mencionado, transcrito apenas na parte de interesse: “Direito das Sucessões. Recurso especial. Sucessão aberta na vigência do código civil de 2002. Companheira sobrevivente. Direito real de habitação. Art. 1.831 do código civil de 2002. (...). 4. No caso concreto, o fato de a companheira ter adquirido outro imóvel residencial com o dinheiro recebido pelo seguro de vida do falecido não resulta exclusão de seu direito real de habitação referente ao imóvel em que residia com o companheiro, ao tempo da abertura da sucessão. 5. Ademais, o imóvel em questão adquirido pela ora recorrente não faz parte dos bens a inventariar. 6. Recurso especial provido (PODER JUDICIÁRIO, Superior Tribunal de Justiça, 4ª Turma. Recurso Especial n°. 1.249.227/SC. Partes: Maria Ivete Blanckenburg e Mariza Schwalb Rosa. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, Santa Catarina. Data do Julgamento: 17/12/2013. Data da Publicação/Fonte DJe 25/03/2014)”.

Em sentido oposto já decidiu o E. Tribunal de Justiça deste Estado de São Paulo, valendo-se de entendimento reputado mais sensato pela Turma Julgadora: Reivindicatória. Companheira sobrevivente. Direito de habitação em imóvel que servia de residência. Ré já conseguiu imóvel residencial por doação testamentária. Obtenção do bem proporciona proteção que concede moradia à companheira supérstite. Imóvel pertencente ao polo ativo não pode ampliar o direito de habitação da apelada, pois, do contrário, configuraria dupla proteção, em detrimento dos autores. Aspecto teleológico do legislador foi dar amparo de moradia a quem perdeu o companheiro por morte, e não expandir consideravelmente a proteção. Recorrida obteve moradia ante a doação, o que caracteriza que o companheiro falecido já proporcionara a habitação para a convivente. Reivindicatória apta a sobressair. !missão na posse deve prevalecer. Apelo provido (justiça Estadual, Tribunal de Justiça de São Paulo, 7ª Câmara de Direito Privado. Apelação n°. 9087291-46.2004.8.26.0000. Partes: Lourdes de Fátima Sanson Gasparini e Vera Lúcia Lopes Campanha, Relator: Natan Zelinschi de Arruda, Americana, Data de Julgamento: 28/01/2009. Data de Registro: 09/02/2009).

 

Por outro lado, aspecto que gera particular acirramento exegético é a parte final do artigo 1.831, do Código Civil, que exige que o imóvel habitando seja o único daquela natureza a inventariar, vedando, com isso e a princípio, a concepção do direito nos casos em que exista outro bem imóvel passível de divisão. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar (BRASIL, Lei n°. 10.406, 2002, art. 1.831).

 

Ao abordar a relevância desta restrição, pondera Daniel Blikstein: Essa restrição se justifica, pois, havendo mais bens imóveis residenciais na herança, o consorte sobrevivente irá receber, com certeza, a título de meação ou herança, algum dos bens deixados pelo falecido, dando-se sempre preferência ao imóvel residencial da família.

Nada obstante, subsistem doutrinadores que enxergam neste trecho do dispositivo legal nítida incongruência do sistema, como é o caso de Fabio Ulhoa Coelho. A crítica em alusão tem por cerne o fato de tal requisito representar inegável benéfico para a união estável, em detrimento do casamento. Tudo porque o art. 1.831 estabelece como requisito para a outorga da habitação ao cônjuge supérstite a inexistência de outro bem desta natureza a inventariar, enquanto, por outro lado, nada alude a respeito dessa condição a Lei n. 9.278/96, em seu art. 7º, parágrafo único, ao prever o beneplácito à união estável. 

Art. 7°. Parágrafo único. Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família. (BRASIL, Lei n°. 9.278. 1996. art. 7º, parágrafo único). 

A solução proposta pelo doutrinador nominado seria simplesmente igualar as condições, suprimindo-se o requisito de unicidade do imóvel dessa natureza para ambos os casos, conferindo assim tratamento isonômico para ambas as situações. Veja-se, a propósito: “Por fim, observo que o art. 1.831 do CC estabelece como condição, para a instituição do direito real de habitação, que o imóvel onde reside o cônjuge sobrevivente seja o único dessa natureza a inventariar”. Pelo texto da lei, portanto, se na herança houvesse qualquer outro bem imóvel, o cônjuge sobrevivente não seria titular do direito real de habitação. Aqui, estamos diante de mais uma inconstitucionalidade do Código Civil, que trata o cônjuge de forma menos vantajosa que o companheiro. O art. 7º, parágrafo único, da Lei n. 9.278/96 assegura a este último o direito real de habitação, sem o condicionar à inexistência de outros imóveis na herança. Uma vez mais, não há motivos para discriminar o cônjuge na extensão desse direito sucessório (COELHO, 2012 b, p. 595).

União estável. Reconhecimento "post mortem". O reconhecimento da união estável depende de comprovação da convivência duradoura, pública e contínua, estabelecida com o objetivo de constituição familiar (CC 1.723). Sentença de procedência. Conjunto probatório que corrobora a existência da união estável entre a autora e o falecido no período apontado na inicial. Tese de que o relacionamento consistia apenas em namoro. Descabimento. Caso em que a autora figura como dependente previdenciária do "de cujus". Eventual existência de duas residências que não macula a coabitação. Precedentes. Temática recursal desacompanhada de qualquer fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da demandante (art. 333, II, do CPC). Incidência do brocardo Allegare nihil et allegatum non probare paria sunt. Sentença mantida. União estável e direito real de habitação. Reconhecimento. Permanência da autora no imóvel utilizado pelo núcleo familiar durante a convivência. Possibilidade. Posse justa a que se dá proteção (art. 7º da Lei nº 9.278/96). Precedentes. Sentença reformada. Recurso dos réus desprovido, provido o apelo adesivo da autora.    (Justiça Estadual, Tribunal de Justiça de São Paulo, 7ª Câmara de Direito Privado. Apelação n°. 0065957-93.2010.8.26.0002. Partes: Romari De Brito Costa e Jurema Aparecida Buono, Relator: Rômolo Russo, São Paulo, Data de Julgamento: 19/08/2015. Data de Registro: 19/08/2015). 

Na quadra atinente à duração do direito de habitação, ganha relevo a distinção entre o direito de habitação convencional e legal, de acordo com ressalva já abordada em linhas anteriores. Isso porque, no que toca ao benefício convencional, é assente que o prazo de duração dependerá da manifestação da vontade e comportamento das partes, seja pelo advento do termo ou implemento da condição, ou pelo descumprimento de alguma obrigação pelo habitador.

Já com relação à duração da modalidade legal, no bojo da sucessão hereditária, importante tecer algumas considerações para a correspondente análise. Por primeiro, cumpre observar que o Código Civil de 2002, ao disciplinar o direito real de habitação do cônjuge supérstite não repetiu a limitação que havia na Codificação de 1916, que dispunha que o habitador faria jus ao direito real de habitação enquanto vivesse e permanecesse viúvo. Daí decorre a conclusão, adotada por parte dos intérpretes da norma, de que não subsiste mais impedimento para que o habitador constitua nova família no imóvel, podendo, inclusive, contrair novas núpcias enquanto beneficiário do direito, e ainda assim permanecer de forma vitalícia no bem habitando. (Marcio de Carvalho Valente, em “Direito real de habitação legal no Direito brasileiro, publicado em abril de 2016, no site Jus.com.br, acessado em 28.12.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD). 

Art. 1.416. São aplicáveis à habitação, no que não for contrário à sua natureza, as disposições relativas ao usufruto. 

Na teoria de Francisco Eduardo Loureiro diversas regras do usufruto se estendem à habitação. Tomem-se como exemplo a temporariedade, os deveres de guarda, conservação e restituição do habitador, a prestação de caução e as causas de extinção do direito real. A cláusula de acrescer, no caso de coabitação, deve ser expressa, tal como no usufruto. Não se estende ao direito real de habitação, em razão de sua natureza personalíssima, a possibilidade de cessão do exercício que se admite no usufruto. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.487. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 28/12/2020. Revista e atualizada nesta data por VD). 

No comentário de Marcio de Carvalho Valente, descendo ao exame da extinção do direito de habitação, sob o influxo da disposição contida no artigo 1.416, do Código Civil, segundo o qual “são aplicáveis à habitação, no que não for contrário à sua natureza, as disposições relativas ao usufruto” (BRASIL, Lei n°. 10.406, 2002), fica claro que a extinção do direito de habitação deve se dar por todas as demais formas de extinção do usufruto.

Nesse contexto, Orlando Gomes pontua que, por tal razão, “a morte do usuário, a renúncia, a destruição da coisa, a consolidação e os outros modos de extinção do usufruto são comuns ao uso e à habitação”. Assim, além das hipóteses já pontuadas em linhas anteriores, em que a extinção do direito de habitação se dá nos casos de implemento do termo ou condição, ou descumprimento das obrigações inerentes à habitação, é induvidoso que o direito em voga também se extingue no caso de morte do habitador. Nesse caso, é bem de ver, os demais membros da família que residiam no imóvel não poderão continuar habitando o bem, dada a natureza intuitu personae do direito, que marca sua essência com caráter personalíssimo.

Colhe-se manifestação de Daniel Blikstein a respeito da questão em epígrafe (2011, p. 198): Entretanto, em virtude da morte do cônjuge beneficiado com o direito real de habitação, tenha ele ou não constituído nova família, por seu caráter personalíssimo em relação aos demais sucessores do de cujus, haverá certamente a extinção da Habitação”. 

No mais, cumpre ressaltar que não implica a caducidade do instituto o simples fato de o habitador deixar de exercê-lo logo após o falecimento de seu consorte. Tal disposição, extremamente benéfica ao habitador, difere do adotado em outros ordenamentos, a teor do Direito Português, alhures examinado.

Consequência lógica da extinção do direito de habitação é a devolução do imóvel no estado de conservação em que o habitador o recebeu, como apregoa Caio Mário Da Silva Pereira: “Cessando a habitação pelo advento do termo ou implemento da condição, far-se-á restituição do prédio ao proprietário ou seus herdeiros, no estado de conservação convencionado, ou, em falta de estipulação, naquele em que foi recebido, salvo deterioração derivada do uso regular”. Por derradeiro, cabe obtemperar que a extinção do condomínio entre os herdeiros não encerra a extinção do direito real de habitação, que fica mantido apesar do encerramento da copropriedade.

Assim, com base no exposto, e em síntese, podem ser reunidas as seguintes características do direito real de habitação: a) É gratuito, sem que tal característica isente o habitador do pagamento dos tributos que recaem sobre o imóvel; b) O habitante deve ocupar pessoalmente o imóvel, junto com sua família, tratando-se de direito intuito personae; c) A habitação não abrange o amplo usufruto do imóvel, impedindo, por conseguinte, sua irrestrita fruição. No entanto, o regramento permite que o habitador exerça a fruição necessária para sua subsistência e de sua família; d) Em sua modalidade convencional, depende de registro no Cartório de Registro de Imóveis; já a habitação legal independe de registro; e) Pode ser conferido a mais de uma pessoa, as quais deverão coabitar o imóvel sem exigir aluguel das demais; f) É renunciável e g) Permite indenização por benfeitorias necessárias que o habitador realize no imóvel. (Marcio de Carvalho Valente, em “Direito real de habitação legal no Direito brasileiro, publicado em abril de 2016, no site Jus.com.br, acessado em 28.12.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Conclui-se o Título VIII com os comentários Guimarães e Mezzalira, lecionando que da mesma maneira observada acima em relação ao direito de uso, todos os demais dispositivos e características do usufruto são aplicáveis ao direito de habitação, por se tratar este de instituto matriz. A destinação do bem imóvel na habitação é para fins exclusivamente residencial e pessoa, o que não se aplica necessariamente no usufruto, o qual abrange, também, bens móveis. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira  apud  Direito.com, comentários ao CC 1.416 de 2002, acessado em 28.12.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).