LEITURA
RACIONAL
Esse tipo de leitura exige
uma compreensão mais abrangente do texto e mobiliza, além do sentimento, as
capacidades racionais do leitor, como, por exemplo, a capacidade de analisar o
texto, separar suas partes, estabelecer relações entre elas e outros textos,
sintetizar as ideias do autor etc.
Nesse nível, estabelecemos um diálogo com o texto, fazendo
perguntas que nos levem a compreender sua forma de construção e seus
significados mais profundos. Os textos, em geral, não são construções
transparentes, não nos entregam totalmente os seus significados logo numa
primeira leitura. Temos, na verdade, de conquistar o texto, respeitando suas
características próprias que o fazem diferente dos demais.
Façamos algumas perguntas ao texto sobre sua forma de
construção. Em que tempo de verbo está escrito? Em que pessoa? Há um narrador? É
uma descrição, uma narração, um diálogo dramático? É prosa ou poesia?
Vemos que é um texto em prosa, escrito na primeira pessoa
do singular, no presente e no qual um narrador conta várias coisas.
E que coisas são essas? A vontade de escrever um livro e as
dificuldades que encontra, entre afazeres profissionais e domésticos, para
sentar e concretizar seu desejo.
Podemos nos dar por satisfeitos com essa leitura. Mas será
que o texto não nos conta mais nada? Quem é o narrador? Vamos ao texto, propriamente dito, para
buscar tais respostas?
Os instrumentos
de filosofar
Hoje é o primeiro dia
em que me sinto realmente em férias. E já é janeiro. Passou a correria da
entrega de notas, reuniões de conselhos de classe, recuperação, fechamento dos
diários de classe, seguida da outra correria, a preparação das festas de fim de
ano. As compras, as visitas, a comida, o trânsito, o calor, a árvore a ser
arrumada... Mas, hoje, finalmente em férias, posso começar a escrever outra
vez.
Hummm, estou sentindo um cheiro
estranho. O que poderá ser? Nossa! Esqueci o feijão no fogo! Queimou. Lá se foi
o meu almoço.
Ó ilusão! Agora ouço um barulho. Será a
campainha? Sempre posso fingir que não há ninguém em casa. Mas não é a
campainha. O barulho continua, sempre igual e nos mesmos intervalos de tempo. Ah!
É o telefone. Já tocou umas dez vezes. Talvez seja algo importante. Será que
aconteceu alguma coisa com as crianças e estão querendo me avisar? É melhor
atender logo.
- Alô! Bom dia, mãe... O quê? Tenho de
ir aí para ver o que está acontecendo? (Suspiro) Tá bom, mãe. Já estou indo...
Pois é, acho que vou deixar para
escrever amanhã.
Captaram o assunto?
O narrador? É uma professora, pois tem de dar conta de notas, reuniões,
recuperação, além da preparação das festas de Natal. E que situação o narrador
está vivendo no momento? Está em férias, sem ter mais nenhuma daquelas
obrigações profissionais. E, em férias, está escrevendo. Não é estranho que as
férias signifiquem um outro momento de trabalho? Escrever também é um trabalho,
prazeroso, realizador, mas, mesmo assim, um trabalho. Só que, ao lado deste,
aparecem outros trabalhos, indispensáveis: fazer a comida, tomar conta dos
filhos. Assim, começamos a perceber as dificuldades da mulher que trabalha fora
de casa: na verdade, ela tem dupla jornada de trabalho, uma em casa, outra no
emprego. Começamos a perceber as dificuldades das professoras: além de
profissionais, são também mulheres, esposas, mães, donas de casa, filhas. O nosso
olhar se modifica, pois passamos a encará-las não mais solidificadas em um
papel, mas como pessoas humanas, com várias dimensões, várias dificuldades e
várias formas de realização.
Vemos, portanto, que essa historinha, aparentemente tão
simples, tem outros significados mais escondidos. Podemos, então, dizer que a
leitura racional de um texto é uma forma de (re)
criar esse texto, visando a sua compreensão mais profunda. A (re) criação é
feita a partir das perguntas que fazemos ao texto. E, como as perguntas são
nossas, estamos, nós, leitores, tendo um papel ativo nessa recriação, nessa
leitura, nessa atribuição de significados que estão latentes no texto mas não
totalmente à mostra.
A leitura racional comporta, assim, uma subdivisão em níveis, que constituem etapas de
aprofundamento da interpretação: denotação, interpretação, crítica e
problematização. É como se entrássemos num rodamoinho e fôssemos dando voltas,
cada vez mais profundas.
(Revivendo Maria Lúcia de
Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins em Temas de FILOSOFIA) – Editora Moderna – São Paulo, 1992.
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