Direito Civil Comentado - Art. 1.196
Do Direito das Coisas - VARGAS, Paulo S. R.
- Livro III
– Título I – Da Posse (Art. 1.196 ao
1.368)
Capítulo I – Da
Posse e Sua Classificação
(Art. 1.196 a 1.203) – digitadorvargas@outlook.com –
Art. 1.196. Antes,
necessariamente, segue amplo texto
introdutório que contém as noções preliminares necessárias à compreensão do
livro. São as noções ou princípios básicos para o estudo de um assunto
qualquer; seus princípios, elementos. São os PROLEGÔMENOS ou – Coisas nunca antes
explicadas (Grifo nosso VARGAS, Paulo S. R.) A menção e início do
Capítulo propriamente dito, logo a seguir:
Do
Livro das coisas - Nas palavras de José de Oliveira Ascensão, considera-se que
o direito das coisas esteja em crise, em razão do declínio de um sistema de
normas que se assentava na preponderância da propriedade imóvel (A tipicidade
dos direitos reais. Lisboa, Petrony, 1968, p. 13). O deslocamento dos novos
mecanismos e das estratégias proprietárias do direito das coisas para o direito
das obrigações e para o direito comercial (ações, cotas, participações em
fundos de investimentos) teve profundas consequências. Estratificou o direito
das coisas numa “época histórica passacia, sem que a crítica e a elaboração
doutrinária tornassem possível a descoberta de novos caminhos”. O espírito que
orienta o direito das coisas encontrava-se ainda ancorado em princípios
oitocentistas, como a tipicidade, a propriedade como direito subjetivo absoluto
e instituição monolítica. Esses duzentos anos de mentalidade liberal que se
seguiram fincaram profundas raízes, das quais se procura libertar, com
dificuldade, o pensamento jurídico contemporâneo. Figuras como a igualdade
substancial, a equidade e a boa-fé objetiva e, por tabela, o tratamento
desigual aos contratantes e novas limitações cogentes à autonomia privada já
são moeda corrente no direito obrigacional. No direito de família, o pátrio
poder converteu-se em pátrio dever, hoje poder familiar. No campo do direito
das coisas, porém, embora a função social da propriedade já conste como
princípio positivado de nossas Constituições há mais de meio século, a
mentalidade de encarar o domínio como feixe de meros direitos subjetivos
continua inalterada. A função social permaneceu assim como um título de
nobreza, de que se orgulha o ordenamento, mas sem operabilidade. O Código Civil
de 2002, na seara do direito das coisas, tem a difícil tarefa de fazer valer
normas operativas, que deem concretude à função social da propriedade e dos
demais direitos reais. A efetiva mudança não é de regras pontuais, como a
criação do novo direito real de superfície ou a eliminação do antigo direito real
de enfiteuse, mas de mentalidade, sobretudo a de encarar o principal direito
real - o de propriedade - como um mero centro de interesses, ao qual podem ser
opostos outros centros de interesses não proprietários, sem que haja
necessariamente a supremacia do primeiro. O atual Código Civil manteve a
denominação de “direito das coisas” e regulou a matéria no Livro III da Parte
Especial. No Código de 1916, o tema era tratado no Livro II da Parte Especial.
Diversos autores consideram o termo “direito das coisas” como equivalente ao
termo “direitos reais”. Na verdade, o primeiro é mais amplo, porque abrange a
posse, que integra o direito das coisas, mas nem todos os autores a consideram
direito real. O direito das coisas regula o poder dos homens sobre as coisas
materiais suscetíveis de apropriação e os modos de sua utilização econômica. Em
caráter excepcional, o Código Civil admite, em determinadas situações, que
direitos reais incidam sobre bens imateriais, como a caução de créditos ou o
usufruto sobre ações ou cotas de uma sociedade. A regra, porém, é que incidam
os direitos reais sobre coisas, vale dizer sobre bens corpóreos. Embora seja
matéria afeita à Parte Geral do Código Civil, é bom lembrar que o termo “bem” é
gênero, abrangendo tudo o que satisfaz a necessidade humana. Bens jurídicos são
aqueles amparados pela ordem jurídica. São bens tudo o que pode ser objeto da
relação jurídica, ou seja, tudo o que pode se submeter ao poder dos sujeitos de
direito, como instrumento de realização de sua finalidade jurídica. O termo
“coisa” é uma espécie de bem, de natureza corpórea e suscetível de medida de
valor. Assim, a honra é um bem, mas não é uma coisa. Um imóvel é um bem e é
também uma coisa, porque corpóreo. Doutrina minoritária afirma, por outro lado,
que há coisas, como as águas do mar, que não são bens, pois inapropriáveis. A
corrente majoritária, porém, entende que não são coisas os bens não
apropriáveis. O critério não é só físico, material, mas também de possibilidade
de ocupação, dominação por alguém.
Os
direitos reais, chamados também de iura
in re, traduzem uma dominação sobre a coisa e constituem importante
categoria jurídica, que se diferencia do direito das obrigações (iura ad rem) pelo fato de este se
traduzir na faculdade de exigir do sujeito passivo determinado uma prestação.
Regem-se os direitos reais pelos seguintes princípios, que os distinguem dos
direitos de crédito, ou obrigacionais, ou pessoais: (1) Princípio do
absolutismo - O direito real é oponível erga omnes, enquanto o direito de
crédito é oponível somente a um sujeito passivo determinado ou determinável, em
razão da sua relatividade. Decorre o princípio da própria natureza dos direitos
reais, que se traduzem numa dominação direta sobre a coisa (iura in re), sem a
intermediação de terceiros pela prestação. Constitui o principal traço
distintivo entre os direitos reais e os pessoais, lembrando, porém, a
existência de exceções à relatividade no direito obrigacional, como as chamadas
obrigações reais e as propte- rem,
que irradiam efeitos em relação a terceiros. Note-se que o absolutismo não
constitui característica exclusiva dos direitos reais, porque há também outros
direitos dotados do mesmo atributo, como os de personalidade, oponíveis contra
todos. (2) Princípio da publicidade - Decorrência do absolutismo é o
princípio da publicidade. Para que todos possam respeitar os direitos reais, há
necessidade de dotá-los de visibilidade, a fim de que sejam conhecidos por
terceiros. O mecanismo da publicidade, nas aquisições derivadas e por atos intervivos,
dá-se pelo registro do título no Registro Imobiliário, tratando-se de coisas
imóveis (CC 1.227) e pela tradição, se coisas móveis (CC 1.226). A regra
comporta exceções, pois há alguns casos em que o registro não é constitutivo
dos direitos reais sobre bens imóveis, por exemplo na aquisição de bens pelo
casamento cujo regime é o da comunhão universal de bens, ou no usufruto legal
dos pais sobre os bens dos filhos, ou, ainda, nas aquisições originárias, como
no caso de usucapião. Já os contratos seguem a regra geral do consensualismo,
ou seja, reputam-se perfeitos só com a vontade das partes, porque não
necessitam de publicidade para produzir efeitos entre os contratantes. (3) Princípios
da taxatividade e da tipicidade - Os direitos reais são numerus clausus, somente podem ser
criados por lei, ao contrário dos direitos de crédito, em que prevalece a
autonomia privada em sua criação, constituindo numerus apertus. Os direitos reais estão previstos no CC 1.225, que, porém,
não esgota todas as hipóteses, já que há outros criados por leis especiais
diversas, como a alienação fiduciária sobre bens imóveis, regulada pela Lei n.
9.514/97, ou o compromisso de compra e venda de imóveis loteados, disciplinado
pela Lei n. 6.766/79. Note-se que não há por parte do legislador necessidade da
utilização de expressões sacramentais para a designação dos direitos reais,
bastando a previsão legal e que se deduza claramente do instituto a sua
natureza. Distingue-se a taxatividade - que trata do catálogo, do número dos
direitos reais - da figura da tipicidade - que define o conteúdo de cada um dos
tipos dos direitos reais. São conceitos complementares, mas distintos entre si.
A doutrina tradicional afirma que os direitos reais são numerus clausus e típicos. A doutrina contemporânea questiona o
princípio da tipicidade. Na lição de Gustavo Tepedino, se de um lado é certo
que a criação de novos direitos reais depende de lei, de outro lado também
“certo é que no âmbito do conteúdo de cada tipo real há um vasto território por
onde atua a autonomia privada e que carece de controle quanto aos limites (de
ordem pública) permitidos para esta atuação” (Multipropriedade imobiliária. São
Paulo, Saraiva, 1993, p. 83). Essa interpretação mais aberta permite dar maior
alcance a cada um dos direitos reais, como abranger a multipropriedade, o leasing imobiliário, o direito real de
superfície por cisão e a hipoteca do direito real de superfície, figuras não
expressamente disciplinadas pela lei, mas compatíveis com o sistema do direito
das coisas. Em termos diversos, mantém-se íntegro o princípio positivado da
taxatividade, mas se admite certa elasticidade no princípio da tipicidade, para
que cada um dos direitos reais, individualmente considerados, possa abrigar
situações jurídicas que, embora não expressamente previstas, sejam compatíveis
com seus princípios e mecanismos. (4) Princípio de sequela - Os direitos
reais são providos do direito de sequela, ou seja, da prerrogativa de obter ou
de perseguir a coisa que estiver em poder de quem quer que seja. É
desdobramento direto da oponibilidade do direito real e pode ser usado por um
titular de direito real contra outro, por exemplo o usufrutuário contra o
nu-proprietário que se recusa a entregar o bem. (5) Princípio da
especialidade - O objeto do direito real é sempre determinado, enquanto o
do direito pessoal pode ser determinável. (6) Princípio da atualidade -
O direito real exige a existência atual da coisa, enquanto o direito pessoal é
compatível com sua futuridade. Essa é a regra geral, que comporta algumas
exceções, como a incorporação e promessa de unidade autônoma a ser construída,
levada a registro. (7) Princípio da exclusividade - O direito real é
exclusivo, porque não podem existir dois direitos reais contraditórios sobre a
mesma coisa, ou seja, não existe mais de um sujeito com igual direito sobre a
mesma coisa. A exclusividade não conflita com o condomínio, no qual cada
comunheiro tem fração ideal da coisa. (8) Usucapião - O direito real
adquire-se por usucapião, ao contrário do direito pessoal. Os direitos de
crédito extinguem-se pela prescrição extintiva, enquanto os reais,
especialmente em relação à propriedade, somente pela prescrição aquisitiva. A
propriedade como regra geral não se perde pelo “não uso”, enquanto não se
consumar usucapião a favor de terceiro. (9) Princípio da preferência ou
privilégio - Os direitos reais, em especial os de garantia, gozam de
preferência, também chamada de privilégio, que consiste na prerrogativa de o
credor assim garantido receber preferencialmente o seu crédito, em comparação
com os demais credores. Em outras palavras, havendo concurso de credores, o
credor com garantia real, se alienado o bem garantido, tem preferência na
satisfação de seu crédito. Essa preferência, porém, não é absoluta, havendo
gradação legal na ordem de credores que gozam de privilégios legais. Alguns
autores veem a preferência por outro ângulo, de ordem temporal, ou seja, terá
melhor direito aquele que conseguir primeiro converter o direito pessoal em
direito real. Tome-se como exemplo o caso de uma coisa vendida a duas pessoas
diversas. Será proprietário o adquirente que primeiro registrar seu título, ou
obtiver a tradição. (10) Abandono - O titular de direito real pode
abandonar a coisa, por exemplo as servidões. Não se admite o abandono no
direito de crédito, que é incorpóreo e se consubstancia numa conduta do
devedor. (11) Posse - Os direitos reais são passíveis de posse, ao
contrário dos direitos pessoais. Essa matéria foi muito controvertida no
passado, quando diversos autores admitiam a posse de direitos pessoais. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n.
10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e
atual., p. 1.131-34. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 02/09/2020. Revista e
atualizada nesta data por VD).
Há muito o Título do Livro II do Código Civil,
“Direito das Coisas”, sofre severas críticas da doutrina contemporânea ao
procurar demonstrar que a expressão utilizada afigura-se restritiva e
incompatível com a amplitude do próprio Livro, à medida que trata da posse
(considerada como um fato socioeconômico potestativo e não como um direito
real), assim como regula todos os direitos reais. Por outro lado, a palavra
“coisas” denota apenas uma das espécies de “bens” (gênero) da vida, razão pela
qual seria manifesta a técnica jurídica continuar conferindo a um dos Livros do
Código Civil o Título de Direito das coisas, uma vez que regula as relações
fáticas e jurídicas entre sujeitos e os bens da vida suscetíveis de posse e
direitos reais. Em face dessas ponderações e considerando-se que o novo Código
primou por conferir a melhor terminologia aos institutos jurídicos, títulos,
capítulos e seções, seria de boa índole que se corrigisse este lapso,
conferindo ao Livro III a denominação adequada: “Da Posse e dos Direitos
Reais”. (Direito Civil - doutrina, Ricardo
Fiuza – p. 614, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012,
pdf, Microsoft Word. Acessado em 02/09/2020,
corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
TÍTULO I - DA POSSE - CAPITULO I - DA POSSE E
SUA CLASSIFICAÇÃO
Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou
não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.
No discernimento de Francisco Eduardo Loureiro, não
houve profunda alteração no capítulo da posse em relação ao Código anterior,
mas sim aprimoramento da redação de diversos dispositivos, eliminando
imperfeições técnicas ou consolidando, no texto da lei, o entendimento já
sedimentado na doutrina e nos tribunais. Vê-se, na disciplina da posse, a
incidência do princípio da operabilidade, que exclui dúvidas teóricas que
atrapalham a aplicação da lei. Isso porque o nosso sistema possessório foi
durante quase um século sedimentado por sólida construção doutrinária e
jurisprudencial. A base dominial no Brasil padecia de sérios problemas de
origem, especialidade e continuidade, o que deslocou imenso volume de discussões
do juízo petitório para o juízo possessório. Com isso, testou-se o sistema e
criaram-se boas soluções para as questões possessórias mais controvertidas. Tal
fato se constata nas reformas do Código português e do italiano nas décadas de
1970 e 1980, oportunidades em que diversas soluções foram inspiradas no direito
brasileiro, num processo de reenvio ao direito continental.
Definição: Na posse há sempre um senhorio de fato
sobre a coisa, um poder efetivo sobre ela. Segundo a lição de Caio Mário da
Silva Pereira, há “uma situação de fato, em que uma pessoa, que pode ou não ser
a proprietária, exerce sobre uma coisa atos e poderes ostensivos, conservando-a
e defendendo-a” (Instituições de direito civil, 18. ed., atualizada por Carlos
Edison Rego Monteiro Filho. Rio de Janeiro, Forense, 2002, v. IV, p. 14) e
dando-lhe a sua natural função socioeconômica.
Diz o artigo ora comentado que o possuidor tem, de
fato, o exercício, pleno ou não, de alguns ou de todos os poderes inerentes à
propriedade. Age o possuidor como agiria o proprietário em relação ao que é
seu. Não se confunde a posse, que é senhorio de fato, com a propriedade, que é
senhorio jurídico. A posse “é ação, conduta dirigida à coisa, exercício”
(Nascimento, Tupinambá Miguel Castro do. Posse
e propriedade, 3. ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2003, p. 16). Já
a propriedade é o “vínculo jurídico que conduz ao senhorio da coisa”, mas não
necessita estar acompanhado de efetivo exercício cie poderes fáticos.
Tem o possuidor os poderes de fato inerentes à
propriedade. Age como proprietário. Como o proprietário dispõe daquilo que lhe
pertence, usa, frui, conserva e defende o que é seu, assim também age o
possuidor. Tal como o proprietário, tira o proveito da coisa, dando-lhe a
natural destinação econômica e social. Pode o possuidor ser pessoa natural ou
jurídica, inclusive a coletividade desprovida de personalidade, como a massa
falida, o espólio e o condomínio edilício. Confira-se a respeito o Enunciado n.
236 da III Jornada de Direito Civil 2004: “CC 1.196, 1.205 e 1.212:
Considera-se possuidor, para todos os efeitos legais, também a coletividade
desprovida de personalidade jurídica”.
Lembre-se, porém, como adiante será visto, que a
propriedade está impregnada por função social, que não mais é vista como um
limite, mas como o próprio conteúdo do instituto. De igual modo, não basta ao
possuidor agir como proprietário, mas sim como bom proprietário, dando à coisa
função social. O Código Civil de 2002 prestigia o bom possuidor, abreviando,
por exemplo, o prazo de usucapião daquele que houver estabelecido no imóvel a
sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo
(CC. 1.238, parágrafo único, e 1.242, parágrafo único). Também os §§ 4º e 5º do
CC 1.228 permitem apenas a determinados possuidores, com perfil e atuação
social específicos, adquirir compulsoriamente do proprietário o imóvel
reivindicado. É o que Miguel Reale denomina de “posse trabalho”, situação
socialmente desejável e estimulada pelo legislador mediante incentivos,
cumprindo a função promocional cio direito.
Elementos da posse: Em toda posse há dois
elementos, consistentes numa conduta e numa vontade, que traduzem a relação de
uso e de fruição. São eles o objetivo, denominado corpus, e o subjetivo, denominado animus. O corpus é o
elemento exterior da posse, é o comportamento ostensivo do possuidor imitando o
proprietário. É o aspecto visível da posse, que se traduz não só pelo contato
material com a coisa, como também pela conduta de dar a ela a sua destinação econômica
e social. O animus é o elemento
subjetivo da posse. Nada mais é do que manter a conduta exterior semelhante à
do proprietário (corpus) de modo
proposital, intencional. Em outras palavras, trata-se da consciência e do
desejo de agir como agiria o proprietário, da dominação intencional e
consciente da coisa.
Os dois elementos são cumulativos e indissociáveis.
Na lição de Ihering, o corpus e o animus estão ligados entre si como a
palavra e o pensamento. Na palavra incorpora-se o pensamento, até então
puramente interno. No corpus
incorpora-se a vontade, até então puramente interna (Serpa Lopes, Miguel Maria
de. Curso de direito civil, 4. ed.,
atualizada pela Biblioteca Jurídica Freitas Bastos. Rio de Janeiro, Freitas
Bastos, v. V I, p. 124). A existência de corpus
sem animus, ou seja, sem a
consciência de agir como dono, configura mera justaposição da pessoa à coisa,
um simples contato físico, que não caracteriza posse, nem sequer detenção.
Teorias sobre a posse: Há duas teorias tradicionais
sobre a posse, denominadas teoria subjetiva e teoria objetiva. Savigny criou a
teoria subjetiva. Afirmou que os elementos da posse são o animus e o corpus.
Definiu o corpus como o poder físico
da pessoa sobre a coisa, o fato exterior da posse. Para ele, é a faculdade real
e imediata de dispor fisicamente da coisa. Em obra posterior retificou sua
posição, admitindo posse sem contato físico. Definiu o animus como a intenção
de ter a coisa como sua (animus domini).
Não é a convicção (opinio domini),
mas a intenção de ser dono. Para haver posse, portanto, para Savigny, devem
existir elemento físico (corpus) mais a vontade de proceder em relação à coisa
como procede o proprietário (affectio
tenendi) mais a intenção de tê-la como sua (animus domini) (Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, 18. ed., atualizada por Carlos
Edison Rego Monteiro Filho. Rio de Janeiro, Forense, 2002, v. IV, p. 14). Caso
falte o terceiro elemento, qual seja, a vontade de ter a coisa como dono, não
haverá posse, mas mera detenção. Assim, para Savigny, quem tem a coisa em seu
poder, mas em nome de outrem, por razão jurídica, não tem posse, mas detenção,
sem proteção jurídica. Enquadrar-se-iam nessa categoria o locatário, o
comodatário e o credor pignoratício, entre outros.
Rudolf Von Ihering elaborou a teoria objetiva da
posse, em oposição e crítica à teoria subjetiva. Corpus, para ele, é a relação exterior que há normalmente entre o
proprietário e a coisa, é a conduta cie quem se apresenta com relação
semelhante à do proprietário (imago
domini), com ou sem apreensão da coisa. Pode, portanto, haver posse sem
contato ou poder físico entre a pessoa e a coisa. Lembre-se de que o
proprietário exerce as prerrogativas do domínio, muitas vezes sem o contato
físico ou material com a coisa, como por exemplo a locação ou o empréstimo da
coisa a terceiros. O mesmo, portanto, ocorre com o possuidor, porque ele age
como o proprietário (Ihering, Rudolf Von. A
teoria simplificada da posse. São Paulo, Saraiva, 1986, p. 106-15).
Para Ihering, animus
não é a intenção de ser dono, mas simplesmente de proceder como procede
habitualmente o proprietário (affectio
tenendi). A teoria chama-se objetiva porque dispensa a intenção de ser
dono. O animus está intimamente
ligado ao corpus, porque é extraído
da conduta visível do possuidor. É o que aparece perante terceiros (aparência
de dono), pouco importando o simples desejo não ostensivo do possuidor. Para
caracterizar a posse, basta examinar o comportamento do agente,
independentemente de uma pesquisa de intenção. Normalmente, o proprietário é o
possuidor. Logo, possuidor é aquele que tem a aparência de proprietário. Posse,
segundo Ihering, é a visibilidade do domínio. Pela teoria objetiva, o
locatário, o comodatário etc., são possuidores, o que acarreta profundos
efeitos concretos, visto que tais pessoas podem defender a posse pelos chamados
interditos possessórios. Segundo o autor, o poder de fato sobre a coisa indica
posse, embora nem sempre isso ocorra. O que importa, para efeito de posse, é a
destinação econômica da coisa, é a utilização da coisa por atos adequados à sua
natureza. Para Ihering, corpus + affectio tenendi = posse. O animus domini
não é elemento da posse.
Outra importante distinção entre as duas teorias é
o modo como abordam a figura da detenção. Para Savigny, sempre que houver corpus, mas não animus (affectio tenendi +
animus domini), estar-se-á diante da
figura da detenção e não da posse. A posse, assim, é a detenção acrescida de animus domini. Para Ihering, a posse e a detenção não se distinguem por
um animus específico. Ao contrário.
Têm os mesmos elementos (corpus e animus). O que as distingue é um
elemento objetivo, que se traduz num dispositivo legal que, com relação a
certas relações que preenchem a princípio os requisitos da posse, retira delas
os efeitos possessórios. A detenção, para Ihering, é uma posse degradada, que,
em virtude da lei, se avilta. A teoria subjetiva parte da detenção para chegar
à posse. A objetiva faz o trajeto inverso, partindo da posse para chegar à
detenção.
Nosso Código inclinou-se pela teoria objetiva,
embora em alguns artigos pontuais faça concessões à teoria subjetiva. O CC
1.196 define o possuidor adotando nitidamente a teoria objetiva. Para nós,
portanto, posse é a relação de fato entre a pessoa e a coisa, tendo em vista a
utilização econômica desta. É a exteriorização da conduta de quem normalmente
age como proprietário. É a visibilidade do domínio. A questão relativa ao
objeto da posse, em especial sobre bens incorpóreos e bens públicos, será
examinada nos comentários aos CC 1.210 e 1.223. (Francisco
Eduardo Loureiro, apud Código
Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002.
Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.135-36. Barueri,
SP: Manole, 2010. Acessado 02/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).
Historicamente, o dispositivo em tela não foi
atingido por qualquer espécie de modificação, seja da parte do Senado Federal,
seja da parte da Câmara dos Deputados, no período final de tramitação do
projeto. A redação atual é a mesma do anteprojeto. Assinala-se que o teor do
dispositivo é, praticamente, o mesmo contido no art. 485 do CC de 1916, apenas
com a acertada supressão da palavra “domínio”, tomando-se assim a redação mais técnica
e correta, tendo-se em conta que a expressão rechaçada é limitada aos bens
corpóreos, enquanto a posse, como situação potestativa socioeconômica de
projeção no plano fatual do mundo jurídico nele, pode refletir-se, tendo por
objetos bens semimateriais ou semi-incorpóreos (energias elétrica, térmica,
nuclear, gasosa e solar, ondas de transmissão de frequência radiotelevisiva,
linhas telefônicas (infovias). Por isso, a expressão poderes inerentes à
propriedade” designa de maneira muito mais adequada o instituto em questão.
Na Doutrina apresentada, a posse é uma situação
fática com carga potestativa que, em decorrência da relação socioeconômica
formada entre um bem e o sujeito, produz efeitos que se refletem no mundo
jurídico. O seu primeiro e fundamental elemento é, portanto, o poder de fato,
que importa na sujeição do bem à pessoa e no vínculo de senhoria estabelecido
entre o titular e o bem respectivo. A posição de senhoria exterioriza-se
através do exercício ou da possibilidade de exercício do poder, como
desmembramento da propriedade ou outro direito real, no mundo fático. Por sua
vez, o poder exteriorizado ou a possibilidade do seu exercício estará, via de
regra, em consonância com o direito real que ele representa na órbita do mundo
de fato. Em outras palavras, a situação potestativa do mundo fático
corresponderá àquela pertinente ao mundo jurídico, dentro de suas limitações.
Assim, por exemplo, todo aquele que possui, como se fosse dono, tem o poder de
fato pertinente ao respectivo direito real de propriedade. A posse do exercício do poder mas sim o
poder propriamente dito que tem o titular da relação fática sobre um
determinado bem, caracterizando-se tanto pelo exercício como pela possibilidade
de exercício. Ela é a disponibilidade e não a disposição; é a relação
potestativa e não, necessariamente, o efetivo exercício. O Titular da posse tem
o interesse potencial em conservá-la e protegê-la de qualquer tipo de modéstia
que porventura venha a ser praticada por outrem, mantendo consigo o bem numa relação
de normalidade capaz de atingir a sua efetiva função socioeconômica. Os atos de
exercício dos poderes do possuidor são meramente facultativos — com eles não se
adquire nem se perde a senhoria de fato, que nasce e subsiste independentemente
do exercício desses atos. Assim, a adequada concepção sobre o poder fático não
pode restringir-se às hipóteses do exercício deste mesmo poder. O possuidor
dispõe do bem, criando, em relação a ele, um interesse em conservá-lo. Por tudo
isso, perdeu-se o momento histórico para corrigir um importantíssimo
dispositivo que vem causando confusão entre os jurisdicionados e, como
decorrência de sua aplicação incorreta, inúmeras demandas. Ademais, o
dispositivo mereceria um ajuste em face das teorias sociológicas, tendo-se em conta
que foram elas, em sede possessória, que deram origem à função social da
propriedade. Nesse sentido, vale registrar que foram as teorias sociológicas da
posse, a partir do início do século XX, na Itália, com Silvio Perozzi; na
França, com Raymond Saleilles e, na Espanha, com Antonio Hemandez Gil, que não
só colocaram por terra as célebres teorias objetiva e subjetiva de Ihering e
Savigny como também tornaram-se responsáveis pelo novo conceito desses
importantes institutos no mundo contemporâneo, notadamente a posse, como
exteriorização da propriedade (sua verdadeira “função social”).
Isto posto, o conceito traz em seu bojo o principal
elemento e característica da posse, assim considerado pela doutrina e
jurisprudência o poder fático sobre um bem da vida, com admissibilidade de
desmembramento em graus, refletindo o exercício ou possibilidade de exercício
de um dos direitos reais suscetíveis de posse. Assim, evolui-se no conceito
legislativo de possuidor, colocando-o em sintonia com o conceito de posse, em
paralelismo harmonizado com o direito de propriedade, como sua projeção no
mundo fatual. Por isso, afigura-se de bom alvitre uma nova redação para este
dispositivo. (Direito Civil - doutrina, Ricardo
Fiuza – p. 614, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012,
pdf, Microsoft Word. Acessado em 02/09/2020,
corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Na salutar opinião dos mestres Luís
Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, (1) Do ponto de vista histórico, a posse, como situação de fato, antecede a
propriedade – situação de direito – e era tida como a mera apreensão e
utilização das coisas do mundo externo, para satisfação das necessidades do
homem (Beviláqua, s.d., p. 17). (2) Tal como a codificação anterior, o novo
texto não define exatamente o que seja posse,
que é explicada tradicionalmente por duas principais teorias: a subjetiva e a objetiva. (3) a teoria subjetiva, de autoria de Savigny, propala a
ideia de que a vontade de possuir para si, aliado ao corpus, é que origina a posse jurídica, sendo que quem possui por
outro modo é tido como simples detentor.
Assim, todo aquele que não tem animus
possidentis não é tido como possuidor, como se dá com o locatário, o
comodatário e outros. (4) Já de conformidade com a teoria objetiva de Rudolf
Von Ihering, o corpus se traduz pela
simples aparência de propriedade, ou seja, pela forma como a propriedade se
apresenta aos olhos de terceiros. Não se exige a intenção de dono (animus domini) na caracterização da
posse. (5) Assim, por esta teoria, basta que o possuidor intervenha sobre a
coisa, tal como faria normalmente seu proprietário, zelando por ela,
independentemente de ter que externar sua intenção de tê-la como sua, pois que
seus atos assim já o demonstram por si mesmo. (6) Com efeito, possuidor é todo
aquele que aparenta ser proprietário. Como se vê, o possuidor poderá ser, ou
não, o verdadeiro proprietário, uma vez que, para Ihering, posse é mera visibilidade do domínio. (7) O Código
Civil brasileiro adota a teoria objetiva de Ihering, sendo esta, destarte, a
mais conveniente para o estudo da posse, vez que não se encontra na relação
possessória o animus domini previsto
por Savigny, até pela extrema dificuldade de se demonstrar, criteriosamente,
este tipo de intenção. Assim, o simples proceder como se fosse o dono é
suficiente para a caracterização da posse, distinguindo-se da mera detenção. (8) Enunciado 236 do Conselho
da Justiça Federal: “Considera-se
possuidor, para todos os efeitos legais, também a coletividade desprovida de
personalidade jurídica”. (9) Enunciado 492 do Conselho da Justiça federal:
“A posse constitui direito autônomo em
relação à propriedade e deve expressar o aproveitamento dos bens para o alcance
de interesses existenciais, econômicos e sociais merecedores de tutela”. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 02.09.2020,
corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
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