Direito Civil Comentado - Art. 1.238 - continua
Da Usucapião - VARGAS, Paulo S. R.
Parte Especial - Livro III – Título III –
Da Propriedade
(Art. 1.238 ao 1.244) Capítulo II – Da Aquisição da
Propriedade Imóvel
Seção I – Da
Usucapião –
digitadorvargas@outlook.com
– vargasdigitador.blogspot.com
Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem
interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a
propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que
assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório
de Registro de Imóveis.
Parágrafo
único.
O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver
estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou
serviços de caráter produtivo.
Acabando com quaisquer dúvidas, Francisco
Eduardo Loureiro define a Usucapião (termo que o atual Código Civil utiliza no
feminino), como modo originário de aquisição da propriedade e de outros
direitos reais pela posse prolongada e qualificada por requisitos estabelecidos
em lei. É modo originário de aquisição da propriedade, pois não há relação
pessoal entre um precedente e um subsequente sujeito de direito. O direito do
usucapiente não se funda sobre o direito do titular precedente, não
constituindo este direito o pressuposto daquele, muito menos lhe determinando a
existência, as qualidades e a extensão. São efeitos do fato da aquisição ser a
título originário: não haver necessidade de recolhimento do importo de
transmissão quando do registro de sentença, com a ressalva, porém, que a
negativa fiscal do IPTU dos últimos cinco anos deve ser apresentada; o título
judicial ingressar no registro independentemente de registro anterior, ou seja,
constituir exceção ao princípio da continuidade e mitigação ao princípio da
especialidade registrárias; os direitos reais limitados e eventuais defeitos
que gravam ou viciam a propriedade não se transmitirem ao usucapiente; e, caso
resolúvel a propriedade, o implemento da condição não resolver a propriedade
plena adquirida pelo usucapiente, constituir esplêndido instrumento jurídico;
sanar os vícios de propriedade defeituosa adquirida a título derivado.
A usucapião tem por objeto tanto a
propriedade plena como outros direitos reais limitados que implicam em posse
dos objetos sobre os quais recaem, especialmente os direitos reais de gozo e
fruição sobre coisa alheia, como o domínio útil na enfiteuse, a superfície, o
usufruto, o uso, a habitação e a servidão aparente. Com exceção da servidão
aparente, os demais direitos reais sobre coisa alheia, normalmente, serão
adquiridos por usucapião ordinária, com justo título, constituído por quem não
é o verdadeiro proprietário, no caso clássico de aquisição a non domino.
Já as servidões aparentes, contínuas ou descontínuas, podem ser usucapidas com
ou sem justo título, bastando a posse prolongada do titular do prédio
dominante, com os demais requisitos estabelecidos em lei. A usucapião é modo
não só de adquirir a propriedade, mas também de sanar os vícios de propriedade
ou outros direitos reais adquiridos com vícios a título derivado.
Somente são usucapidas as coisas in
commercio. Os bens públicos, qualquer que seja sua natureza, não são
passíveis de usucapião, como expressam os CC 102, e 183 e 191 da Constituição
da República. Ainda na vigência do Código Civil de 1916, a Súmula n. 340 do
Supremo Tribunal Federal já consagrava igual entendimento, apenas positivado no
Código Civil de 2002. Exceção a tal regra é a possibilidade de se usucapir
terras devolutas rurais, desde que o lapso quinquenal tenha transcorrido
anteriormente à vigência da Constituição Federal de 1988, pois desde a
Constituição de 1934, passando pela Lei n. 6.969/81, havia previsão para
usucapião especial rural de terras devolutas. Os arts. 183 e 191 da atual Carta
Política passara a vedar tal possibilidade, mas não retroagem para alcançar
períodos aquisitivos anteriores com prazo já consumado. A restrição à
usucapião, porém, não alcança os bens pertencentes a empresas públicas e de
sociedade de economia mista, pois se regem pelas normas das pessoas jurídicas
de direito privado, consoante entendimento reiterado do STJ, salvo se tiverem
destinação pública. Isso porque “tratando-se de bens públicos propriamente
ditos, de uso especial, integrados no patrimônio do ente politico e afetados à
execução de um serviço público, são eles inalienáveis, imprescritíveis e
impenhoráveis” (STJ, REsp n. 242.073/SC, rel. Min. Luis Felipe Salomão).
Os imóveis sem registro, ou com titular
não localizado no registro imobiliário, podem ser usucapidos, devendo o poder
público provar a propriedade sobre eles. A falta de localização do registro não
significa, por si só, que o imóvel seja público. No que se refere à herança
jacente, os CC 1.829 e 1.844 deixam claro que o Estado não é herdeiro, por não
se encontrar na ordem de vocação hereditária, mas recebe a herança, na falta ou
renúncia dos herdeiros. Não se aplica ao Estado o direito de saisine, ou
seja, não se torna proprietário e possuidor no momento da morte, havendo
necessidade da sentença de vacância dos bens. É esse o entendimento majoritário
da jurisprudência (RSTJ 94/215, 133/101 e 142/216; RT 721/285, 727/131,
755/201, 773/194, 728/236 e 787/207), embora haja precedente do Supremo
Tribunal Federal no sentido de que a sentença de vacância é declaratória e
retroage à data na qual o óbito completa cinco anos, sem habilitação de
herdeiros (RTJ 101/267, RT 709/56).
Podem ser usucapidos bens de família,
ou gravados, com cláusula de inalienabilidade, pois a usucapião é modo
originário de aquisição, não ocorrendo transmissão por parte do titular
registrário da propriedade. Não se confundem inalienabilidade e a
imprescritibilidade, salvo demonstração de fraude à lei, ou seja, de a usucapião
ser modo oblíquo de contornar a cláusula restritiva de alienação, na hipótese
de usucapião ordinária.
Ainda no que se refere ao objeto, o
entendimento dos tribunais é do cabimento da usucapião entre condôminos no
condomínio tradicional, desde que seja o condomínio pro diviso, ou haja
posse exclusiva de um condômino sobre a totalidade da coisa comum. Exige-se, em
tal caso, que a posse seja inequívoca, manifestada claramente aos demais
condôminos, durante todo o lapso temporal exigido em lei. Deve estar
evidenciado aos demais comunheiros que o usucapiente não reconhece a soberania
alheia ou a concorrência de direitos sobe a coisa comum.
No que tange a possibilidade de
usucapião sobre área comum de condomínio edilício, o entendimento é outro,
embora persista divergência nos tribunais. As áreas comuns, por norma cogente,
são inalienáveis separadamente da unidade autônoma e não podem se usadas com
exclusividade por um dos condôminos, razão pela qual não podem ser usucapidas
por um contra os demais (RTJ 80/851; RJTJSP 129/266, 180/43 E 207/15; RT
734/343 e 753/236). Em casos excepcionais, admite-se usucapião sobre áreas
comuns específicas, especialmente se não houver oposição da parte dos demais
condôminos (RSTJ
130/367). O Superior Tribunal de Justiça, em mais de uma oportunidade, entendeu
que o prolongado uso de área comum de condomínio edilício não gera usucapião,
mas a posse deve continuar em poder do condômino, em razão da prolongada
inércia do condomínio, gerador de supressio (ver jurisprudência a seguir). Nada
impede, porém, que tenha a usucapião por objeto a própria unidade autônoma,
inclusive garagem, caso em que a propriedade será declarada também sobre a
correspondente fração ideal de terreno, determinada na constituição do
condomínio edilício. Em tal caso, não há necessidade da citação de todos os
demais condôminos, mas apenas do condomínio na pessoa do síndico. A razão da
desnecessidade da citação de todos os demais condôminos é simples: recairá a
usucapião sobre propriedade plena da unidade autônoma, com a indissociável
fração ideal constante da instituição do condomínio edilício. Perderá a
propriedade apenas o titular registrário da unidade autônoma, sendo a usucapião
indiferente aos demais condôminos, que não verão afetadas as respectivas
frações ideais. Não se cogita também da possibilidade de invasão dos imóveis
confinantes, levando em conta a natureza peculiar e delimitada da unidade
autônoma.
Quanto
ao objeto, finalmente, controvertem doutrina e jurisprudência sobre a
possibilidade da usucapião incidir sobre imóveis rurais de área de superfície
inferior ao módulo rural, ou sobre imóveis urbanos de área inferior à Lei do
Parcelamento do Solo Urbano (Lei n. 6.766/79) ou leis municipais. O melhor
entendimento é admitir a usucapião, salvo prova de marcada fraude à lei,
levando em conta o modo originário de aquisição c a consolidação de situação
jurídica já sedimentada de fato. De igual modo, a ausência da menção à existência de acessões não impede o registro da sentença, pois a aquisição originária
do solo inclui a das construções acessórias. Controverte a doutrina sobre
questões atinentes a parcelamentos do solo clandestinos, ocupação de áreas de
mananciais e de proteção ambiental, de risco ou inadequadas para moradias. É
preciso entender, porém, que eventuais ilegalidades dizem respeito à ocupação
do solo, e não à declaração de propriedade. Parece pouco lógico que se negue a
usucapião, mas se mantenham as posses sobre imóveis irregulares, perpetuando
situação de incerteza. A usucapião não gera a ocupação irregular do solo, mas
apenas é o primeiro passo para futura rurbanização.
Requisitos
da posse: Dois elementos estão sempre presentes, em qualquer modalidade de
usucapião, o tempo e a posse. Não basta a posse normal (ad interdicta),
exigindo-se posse ad usucapionem, na qual, além da visibilidade do
domínio, deve ter o usucapiente uma posse com qualidades especiais, previstas
no CC 1.238: prazo de quinze anos, sem interrupção (posse contínua), nem
oposição (posse pacífica), e ter como seu o imóvel (animus domini). O
prazo é de quinze anos, contando-se pelo calendário gregoriano e observando-se
a regra de contagem de prazos do art. 132 do Código Civil. Por exemplo, posse
iniciada em 11.02.2003 consuma usucapião em 11.02.2018, à meia-noite. A posse
deve ser contínua, sem interrupção, que, caso ocorra, faz voltar o prazo ao
termo inicial. Exige-se regular sucessão de atos de posse, sem falhas ou com
intervalos curtos que não configurem lacunas. Se houver esbulho por parte do
titular do registro ou de terceiros, mas o possuidor usar a autodefesa ou mesmo
a reintegração de posse, com sucesso, não se considera a posse interrompida.
Não se exige contato físico do usucapiente com a coisa, mas somente
comportamento similar ao do proprietário, que não só usa como frui e extrai o
proveito do que é seu. A posse deve ser, na dicção da lei, sem oposição, ou
pacífica. Pacífica não se opõe à violenta, mas à posse incontestada. A oposição
eficaz parte de interessados, em especial do titular da propriedade ou de
outros direitos reais, contra quem corre a usucapião. Os atos de oposição
praticados por terceiros não favorecem o titular do domínio, se ele permaneceu
inerte. Não basta qualquer ato de inconformismo por parte de interessados ou do
titular do domínio. Estes atos não podem ser ilegais, como, por exemplo, a
retomada violenta, repelida pelo usucapiente por meio da tutela possessória.
Mesmo as oposições judiciais devem ser sérias e procedentes. Assim, eventuais
ações possessórias ou reivindicatórias somente atingem a pacificidade da posse
caso sejam julgadas procedentes. A oposição deve ser feita antes da consumação
do lapso prescricional da usucapião. Eventuais atos de defesa da posse, por
parte do usucapiente, não retiram o requisito da pacificidade. Recente
precedente do ST] assentou que “a posse mansa e pacífica não se interrompe
quando o possuidor direto propõe medidas judiciais contra o suposto turbador,
especialmente se tais medidas de proteção são declaradas improcedentes” (STJ,
AR n. 3.449/GO, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 13.02.2008). Deve o
usucapiente possuir animus domini, ou, na dicção da lei, “como seu” o
imóvel. Controverte a doutrina sobre o exato sentido do animus domini,
consistente na vontade de tornar-se dono, de ter a coisa como sua, de ter a
coisa para si - animus rem sibi habendi. Existem autores que entendem
que o elemento animus domini da usucapião estaria ligado à teoria
subjetiva de Savigny. Predomina a corrente, porém, que entende o animus
estar essencialmente ligado à causa possessionis, à razão pela qual se
possui, não constituindo elemento meramente subjetivo. Possui a coisa como sua
quem não reconhece a supremacia do direito alheio. Ainda que saiba que a coisa
pertence a terceiro, o usucapiente se arroga soberano e repele a concorrência
ou a superioridade do direito de outrem sobre a coisa.
A
parte final do CC 1.238 diz que o usucapiente adquire a propriedade, “
independentemente de título e boa-fé”. Dispensa o legislador a existência de
uma causa jurídica que justifique a posse ad usucapionem, por se fundar
a usucapião na posse e não no direito à posse. Mais ainda, admite-se que o
possuidor usucapiente conheça os vícios que acometem sua posse. Disso decorre a
posse injusta poder gerar usucapião, ao contrário do que afirma parte da
doutrina. Remete-se o leitor aos comentários do CC 1.200 do Código Civil. As
posses violenta e clandestina somente nascem quando cessam a violência e a
clandestinidade, nos exatos termos do CC 1.208, parte final, do Código Civil.
Antes, são elas meras detenções, pois impedem a reação do esbulhado, por este
desconhecer o ato ilícito ou o conhecer, mas se ver acuado pelo comportamento
violento do detentor. Cessadas a violência e a clandestinidade, nasce, então,
posse, mas viciada, porque sua origem é ilícita. Pode o esbulhado reagir contra
o ato ilícito, usando da tutela possessória. Caso não o faça, a inércia faz
fluir contra si o prazo da usucapião.
No
que se refere à posse precária, é ela imprestável para usucapião não por ser
injusta, mas por faltar ao possuidor animus domini, já que reconhece a
supremacia do direito de terceiro sobre a coisa. Caso, porém, o precarista
inverta a qualidade de sua posse, quer alterando a causa (exemplo, o locatário
ou comodatário que adquirem a posse indireta sobre a coisa locada ou
emprestada), quer por atos de oposição, que demonstrem ao titular do domínio de
modo inequívoco o não reconhecimento do direito alheio, deixando clara a
vontade do possuidor de alterar a natureza da posse, inverte-se sua qualidade.
Continua injusta, mas o esbulho faz nascer ao esbulhado o direito de retomar a
coisa, usando a tutela possessória. Caso permaneça inerte em face do esbulho,
passa a fluir daí o prazo da usucapião. A existência somente da vontade não
altera o caráter da posse, segundo o CC 1.203. Ninguém pode, apenas mudando de
vontade, transformar uma relação possessória existente. A transformação decorre
da inversão do título da posse, que decorre de ato negociai ou de conduta
inequívoca do possuidor frente ao esbulhado. São casos comuns o de locatários,
ou de comodatários, ou de promitentes compradores inadimplentes, que almejam usucapir
os imóveis ocupados. A princípio, não se admite tal prática, pois aludidos
possuidores diretos admitem a supremacia da situação dos possuidores indiretos,
salvo se inverterem a qualidade da posse por atos ostensivos e inequívocos,
deixando claro aos titulares do domínio que não mais os reconhecem como tais,
ou que não se curvam à sua posição jurídica.
Usucapião
de posse-trabalho: Finalmente, o parágrafo único do art. 1.238 do Código Civil
dispõe que o prazo se reduz a dez anos se o possuidor houver estabelecido no
imóvel a sua moradia habitual, ou nele tenha realizado obras ou serviços de
caráter produtivo. É o que o prof. Miguel Reale denomina posse-trabalho, uma
“posse socialmente qualificada, isto é, a posse além do exercício de fato de
uma das faculdades inerentes à propriedade” (“Visão geral do projeto de Código
Civil”. In: Revista dos Tribunais. São Paulo, Revista dos Tribunais,
junho/l 998, v. 752, p. 24). O legislador, em tal caso, encurta o prazo da
usucapião, como estímulo à conduta socialmente relevante do possuidor. Os
requisitos adicionais da posse-trabalho, consistentes na moradia ou realização
de investimentos e serviços de caráter produtivo, são alternativos e não
cumulativos. Um ou outro atendem à função social da posse. Note-se que tal
modalidade não exige a pessoalidade da posse, de tal modo que se aplicam as
figuras da accessio e da successio possessionis.
Direito
intertemporal e a redução dos prazos de usucapião: Os CC 2.028 e 2.029 das
disposições finais do Código Civil de 2002 contêm regras de direito
intertemporal sobre prazos prescricionais. O CC 2.028 alude apenas aos prazos
prescricionais, mas se aplica também aos prazos alterados das modalidades de
usucapião, em atenção ao que contém o CC 1.244 do Código Civil. Se as causas que
obstam, suspendem ou interrompem a prescrição se aplicam à usucapião, parece
razoável que igual extensão incida também sobre as normas de direito
intertemporal que disciplinam a redução dos prazos prescricionais. A defeituosa
redação do CC 2.028 merece interpretação criativa, seguindo as seguintes
regras: no caso de prazo ampliado, aplica-se a lei nova, computando o prazo já
decorrido na vigência da lei antiga; no caso de prazo reduzido, já consumado cm
mais da metade na vigência da antiga lei, aplica-se o antigo Código Civil; no
caso de prazo reduzido com porção igual ou inferior à metade consumado na
antiga lei, aplica-se por inteiro o prazo da lei nova a partir de sua vigência.
Em tal hipótese, o prazo menor será aplicado, mas se antes de seu vencimento
completar-se o prazo antigo, este prevalecerá. Além disso, o prazo da usucapião
por posse-trabalho, reduzido para dez anos, teve um acréscimo de mais dois anos
(portanto, doze anos), nos primeiros dois anos de vigência do Código Civil de
2002, a fim de não surpreender os titulares registrários do domínio em seu
poder de reação e retomada da coisa. Parte da doutrina e da jurisprudência
entendeu que a usucapião com posse-trabalho constitui nova modalidade de
usucapião, razão pela qual todo o prazo decenal (ou de doze anos, nos primeiros
dois anos de vigência do atual CC/2002) somente poderia ser computado a contar
de janeiro de 2003. Por essa razão o Tribunal de Justiça de São Paulo já teve
oportunidade de afirmar que o prazo de usucapião regido pelo parágrafo único do
mencionado CC 1.238 só pode ser computado a partir da vigência do Código Civil
(TJSP, Ap. cl revisão n. 449.809-4/1, rel. Des. Testa Marchi, j. 23.09.2008).
Tal
visão se mostra equivocada. Em texto recente, ainda não publicado e gentilmente
cedido por Hamid Charaf Bdine Júnior, “o fato de se tratar de nova modalidade
de usucapião não impedia o legislador de determinar que o prazo que antecedeu o
novo diploma legal fosse computado na contagem, como o fez expressamente no
referido art. 2.029 do CC, do qual consta que até dois anos após a entrada em
vigor deste Código, os prazos estabelecidos no parágrafo único do CC 1.238 e no
parágrafo único do CC 1.242 serão acrescidos de dois anos, qualquer que seja o
tempo transcorrido na vigência do anterior’. Desse modo, é possível concluir
que o tempo decorrido na vigência do Código revogado deverá ser computado para
os fins dessas novas modalidades de usucapião. Essa contagem, porém, poderia
surpreender o proprietário que, no dia seguinte ao da entrada em vigor do
Código Civil, em janeiro de 2003, perderia a propriedade, para alguém que
exercesse posse originalmente injusta - já que na usucapião em exame o justo
título e a boa-fé são dispensados. De fato, se o possuidor tivesse posse do
imóvel há doze anos, independentemente de justo título e boa-fé no primeiro dia
de vigência do Código Civil, e nele houvesse estabelecido sua moradia habitual
ou realizado obras e serviços de natureza produtiva, a propriedade lhe seria
conferida por intermédio da usucapião disciplinada no parágrafo único do CC
1.238, sem mais delongas. Nessa hipótese, note-se, o proprietário perderia o
imóvel sem tempo para agir em defesa de seu direito, surpreendido pelo abrupto
encurtamento do prazo, o que não se pode admitir, nem era intenção do
legislador, que procurou afastar essa possibilidade com a regra do art. 2.029
do Código Civil. Como, porém, o parágrafo único do CC 1.238 contempla uma nova
modalidade de usucapião, o encurtamento de prazo permitiria, cm uma primeira
análise, que a aquisição do domínio pelo possuidor pudesse ocorrer nos
primeiros dias de vigência do Código. Assim seria, porque os dois anos
acrescidos singelamente ao prazo do CC 1.238, parágrafo único, autorizaria a
usucapião com prazo de doze anos, em qualquer hipótese. Para evitar tal
conclusão e impedir que o proprietário seja abruptamente surpreendido, a
interpretação do CC 2.029 deve ser feita de modo sistemático, com especial
destaque para sua parte final, que prevê o acréscimo de dois anos ‘qualquer que
seja o tempo transcorrido na vigência do anterior’. Tal compreensão do texto
remete à afirmação de que a usucapião por posse-trabalho só será possível após
os dois primeiros anos de vigência do Código Civil, o que assegura proteção ao
antigo proprietário, sem desprezar o prazo antigo. Destarte, ainda que a posse
tenha sido exercida por doze anos antes do novo Código, para a aplicação
adequada do mencionado CC 2.029, o prazo para usucapir só se completaria em
2015. Assim, ‘qualquer que seja o tempo transcorrido na vigência do anterior’
(doze anos no exemplo dado), haverá acréscimo de dois anos, o que impede, em
absoluto, que a usucapião surpreenda o proprietário. A favor dessa
interpretação, pesa o fato de que a frase do parágrafo anterior seria
dispensável, assim como todo o dispositivo seria dispensável, se o prazo de
posse anterior à vigência do Código não pudesse ser computado para fins dc
incidência do disposto no parágrafo único dos arts. 1.238 e 1.242 do CC. E,
como é sabido, não é regra adequada de interpretação concluir pela
inaplicabilidade ou pela inutilidade do dispositivo. Acrescente-se que a
situação ora em exame não se confunde com as dos arts. 183 e 191 da CF, cuja
incidência só foi admitida pela jurisprudência para período posterior à da
edição do texto constitucional (STF, AI no Ag. Reg. n. 290.022, rel. Min.
Nelson Jobim, j. 20.02.2001), pois, para essas situações não havia regra de
transição expressa e o risco de prejuízo aos proprietários acabou sendo a razão
determinante para a imediata incidência da regra”. Em suma, o CC 2.029 contém
regra explícita de direito intertemporal que preserva o direito de defesa do
proprietário registrário, o qual perderá o imóvel por usucapião. Admite-se a
utilização do prazo já decorrido no regime do Código Civil de 1916, desde que o
biênio adicional a que alude o CC 2.029 decorra na vigência do Código Civil de
2002, permitindo ao dono evitar a consumação da prescrição aquisitiva. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código
Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002.
Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.212-17.
Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 25/09/2020. Revista e atualizada nesta data
por VD).
Historicamente,
O dispositivo foi objeto de duas emendas, ambas da parte da Câmara dos
Deputados. A primeira, no período inicial de tramitação do projeto, para
redução dos prazos da usucapião extraordinária. O relatório Ernani Satyro
registra ser aqui mais “um dos casos em que se pretendeu diminuir o ‘tempus
possessionis’, para efeito de aquisição da propriedade. Nessa matéria
defrontam-se os conservantistas, que pretendiam manter os longos prazos
estabelecidos pelo Código Civil vigente e, do outro, os progressistas, que
consideram tais prazos excessivos, exigindo reduções que chegam até o limite de
dois anos... No Projeto, ditos prazos já sofreram diminuição, mas, de maneira
geral, tem-se reconhecido que seus autores ainda se houveram com excessiva
prudência. Mas, também, não se justifica o exagero oposto, sobretudo num País
como o nosso de áreas sono-econômicas tão diversas, com índices demográficos
gigantescamente diferentes. A alegação de que os atuais meios de comunicação
ensejam ao proprietário modos de mais fácil e pronta vigilância de sua propriedade,
além de ser procedente só em parte, não corresponde ao valor que se deve, em
princípio, atribuir à propriedade, por mais que se diga que ‘quem detém a posse
está em posição social mais respeitável do que aquele que se desinteressou ou a
perdeu’. Embora fazendo essa observação, andou bem o douto Relator especial
colocando-se numa posição intermediária: no caso de usucapião extraordinário,
não acolhe nem os 20 anos, pretendidos no Projeto, nem os 10 anos exiguamente
reclamados nas Emendas”. A segunda emenda deu-se no período de tramitação final
do projeto, substituindo-se as expressões “transcrição” e “Registro de Imóveis”
pela palavra “registro” e por “Cartório de Registro de Imóveis”,
respectivamente, visando adequar o texto do artigo à Lei dos Registros Públicos
(Lei n. 6.01 5/73).
Mostra
a doutrina de Ricardo Fiuza que Usucapião é a aquisição da propriedade pela
posse prolongada; que, o Código Civil/2002 adotou a palavra “usucapião no
gênero feminino, que não é usual, mas também correta, já que são admitidas as
duas formas no vernáculo; que, semelhante ao art. 550 do Código Civil de 1916,
trata o dispositivo em comento da usucapião extraordinária, tendo seu prazo
sido reduzido de vinte anos para quinze anos, prazo este que pode ser a soma da
posse de seus antecessores, desde que seja contínua (RT, 691193). Na hipótese
de o possuidor residir no imóvel ou nele desenvolver atividades produtivas, o
prazo de que fala o caput do artigo será reduzido para dez anos. A propriedade
tem de cumprir sua função social, e o possuidor não pode esperar, por longo
tempo, para adquirir o domínio ‘pela prescrição aquisitiva; do contrário, seria
beneficiado o proprietário negligente.
(Direito
Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 640, apud Maria Helena Diniz
Código Civil Comentado já impresso
pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 25/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Segundo o lecionar de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, a usucapião
é uma das formas de aquisição da propriedade imóvel, também denominada prescrição
aquisitiva, que se realiza pelo exercício contínuo da posse, de forma
ininterrupta, em relação ao bem imóvel. Difere-se da prescrição extintiva,
que é aquela em que a pretensão não é exercida por um determinado lapso de
tempo, como na hipótese de o credor deixar de cobrar uma certa dívida, nascendo
para o devedor um direito de não ser cobrado judicialmente pela obrigação
(Coelho, 2006, p. 88)
De fato, exercendo o possuidor
a posse mansa e pacífica sobre o bem, com o animus domini, pelo lapso de
tempo legal, passa aquele a ter direito de propriedade, pelo transcurso
temporal, enquanto o antigo proprietário o perde. O direito à propriedade
nasce, assim, em favor do possuidor, em razão da posse contínua e sem oposição.
A prescrição, aqui, é geradora de direitos e não extintiva.
É modo originário de aquisição
da propriedade, pela posse contínua no tempo, uma vez que não há vínculo
jurídico ou relação negocial entre o atual possuidor e o anterior proprietário.
O art. 191 da Constituição Federal dispõe que os bens públicos não podem ser
adquiridos por usucapião.
O CC 1.238 trata da usucapião
extraordinária, de forma mais tradicional de prescrição aquisitiva,
determinado que adquire a propriedade aquele que exercer a posse sobre o bem
imóvel por quinze anos, como se fosse seu (animus domini), de forma ininterrupta
e sem oposição, independentemente da prova de justo título ou boa-fé,
que estão presumidos. É desnecessária a comprovação de qualquer título hábil à
transferência do domínio (justo título) ou da boa-fé no momento da
aquisição da posse, posto que estes são elementos que a lei considera, muito
embora essenciais, como absorvidos pela modalidade de usucapião
extraordinária, em face do longo lapso temporal exigido (praescrptio
longi temporis).
O parágrafo único do CC 1.238
trata de uma situação particular, que gera o encurtamento do lapso temporal
para a usucapião extraordinária. Assim, o atual Código passou a tratar da posse-trabalho
(ou posse social), exigindo o prazo de dez anos de posse contínua em
caso de moradia habitual do possuidor ou da realização de obras ou serviços de
natureza produtiva em relação ao bem. De observar-se que basta, para esta
modalidade de prescrição aquisitiva, a prova da moradia efetiva ou da
realização de obras de caráter produtivo, de maneira alternativa e
não-cumulativa. Impende destacar, também, que são consideradas obras ou
serviços aquelas atividades que representam uma fixação do possuidor ao bem,
valorizando-o e exteriorizando a nítida intenção de mantê-lo sob seu domínio. O
pagamento de tributos é apenas um início de prova em relação a tal aspecto.
Enunciado 497 do Conselho da Justiça
Federal: “O prazo, na ação de usucapião, pode ser completado no curso do
processo, ressalvadas as hipóteses de má-fé processual do autor”.
Enunciado 564 do Conselho da Justiça
Federal: “As normas relativas à usucapião extraordinária (CC 1.238, caput)
e a usucapião ordinária (CC 1.242, caput), por estabelecerem redução de
prazo em benefício do possuidor, têm aplicação imediata, não incidindo o
disposto no CC 2.028)”. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e
Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 25.09.2020,
corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Nenhum comentário:
Postar um comentário