MANUAL
DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – Capítulo
7-A – DO INQUÉRITO - NOTITIA CRIMINIS,
INICIO DE INQUÉRITO, AUTORIDADE
POLICIAL TEM O DEVER DE INSTAURAR INQUÉRITO?, PODE A AUTORIDADE POLICIAL
INDEFERIR REQUISIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO?, PROVIDÊNCIA QUE O OFENDIDO PODE
TOMAR, A DELATIO CRIMINIS, INQUÉRITO POLICIAL NOS CRIMES DE AÇÃO PENAL PÚBLICA
CONDICIONADA, A HIPÓTESE DE REQUISIÇÃO DO MINISTRO DA JUSTIÇA - VARGAS
DIGITADOR.
“Notítia
criminis”
É
com a notitia criminis que a
Autoridade Policial dá início às investigações. Essa notícia do crime pode ser
de “cognição imediata”, de “cognição mediata” e até mesmo de “cognição
coercitiva”. A primeira ocorre quando a Autoridade Policial toma conhecimento
do fato infringente da norma por meio das suas atividades rotineiras. Diz-se
que há notitia criminis de cognição
mediata quando a Autoridade Policial sabe do fato por meio de requerimento da
vítima ou de quem possa representá-la, requisição da Autoridade Judiciária ou
do órgão do Ministério Público, ou mediante representação. Ela será de cognição
coercitiva nas hipóteses de prisão em flagrante, visto que, nesses casos, ao
tempo em que a Autoridade Policial toma
conhecimento do fato criminoso, o seu autor lhe é apresentado, conduzido
que foi sob coerção.
Início do inquérito
Mas
como se inicia o inquérito policial? Qual a sua primeira peça? Depende da
natureza do crime. Tratando-se de crime de ação pública incondicionada, isto é,
aquele cuja propositura da ação penal pelo órgão do Ministério Público
independe de qualquer condição – e tais crimes constituem a regra geral, nos
termos do art. 100 do nosso CP - , a Autoridade Policial, dele tomando
conhecimento, instaura o inquérito: a)
de ofício, isto é, por iniciativa própria, quando o fato chegar ao seu
conhecimento; b) mediante requisição
da Autoridade Judiciária; c) mediante
requisição do órgão do Ministério Público, ou, enfim, mediante requerimento do
ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo, nos termos do art. 5º,
do CPP. Qual o conteúdo do requerimento? Deverá a pessoa que fizer, narrar o
fato com todas as suas circunstancias; individuar o pretenso culpado ou dar-lhe
os sinais característicos e as razões de convicção ou de presunção de ser ele o
autor da infração, ou ainda os motivos da impossibilidade de o fazer; e, finalmente,
nomear testemunhas, com indicação de sua profissão e residência, sempre que
possível. Assim também deverá ser a requisição ministerial ou judicial. Se
houver prisão em flagrante, a peça inaugural do inquérito será o auto de prisão
em flagrante de que trata o art. 304 do CPP, consoante dispõe o art. 8º do
mesmo estatuto processual. Tratando-se de infração de menor potencial ofensivo
(contravenções e crimes cuja pena máxima cominada in abstracto não ultrapasse 2 anos, sujeitos ou não a procedimento
especial), não haverá necessidade de inquérito. Nesse caso, a Autoridade
Policial limitar-se-á a elaborar um Termo Circunstanciado de que deverão
constar:
I
– narração sucinta do fato e de suas circunstâncias, com a indicação do autor,
do ofendido e das testemunhas;
II
– nome, qualificação e endereço das testemunhas;
III
– ordem de requisição de exames periciais, quando necessários;
IV
– determinação da sua imediata remessa ao órgão do Ministério Público oficiante
no juizado criminal competente, com as informações colhidas, comunicando-as ao
Juiz;
V
– certificação da intimação do autuado e do ofendido, para comparecimento em
juízo no dia e hora designados.
Obs.:
Veja-se, a propósito de infração de menor potencial ofensivo, a observação
feita no final do verbete “O procedimento dos processos por crimes falimentares”
(Cap. 53).
A
autoridade Policial tem o dever de instaurar inquérito?
A Autoridade Policial tem o
dever ou a faculdade de determinar a instauração de inquérito? O art. 5º diz: “Nos
crimes de ação pública, o inquérito policial será iniciado”. Com tal expressão, que demonstra imperatividade, a
própria lei criou para a Autoridade Policial o dever jurídico de instaurar o
inquérito nos crimes de ação pública. Evidente que o artigo se refere aos
crimes de ação pública incondicionada. E, nesse caso, a peça inaugural da
investigação será, normalmente, a “portaria”, em que se registra a notitia criminis, podendo ser, também,
uma requisição do Ministério Público ou do Juiz, requerimento do ofendido ou de
quem legalmente o represente, ou até mesmo o auto de prisão em flagrante,
conforme já anotamos, dando-se início, com uma dessas peças, à persecução.
Pode
a Autoridade Policial indeferir requisição do Ministério Público?
Dispõe o § 2º do art. 5º, do CPP que do indeferimento
do requeimento do ofendido ou de quem legalmente o represente cabe recurso para
o “Chefe de Polícia”. Silenciando quanto à requisição, pode-se concluir que a
Autoridade Policial não pode indeferi-la.
Observe-se que o legislador,
no inc. II do art. 5º, fala em requisição e requerimento, procurando, assim,
distinguir as duas situações. Requisição é exigência legal. Requisitar é exigir
legalmente. Já a palavra requerimento
traduz a ideia de solicitação de algo permitido por lei.
Note-se, também, que no art.
13, II,, o legislador criou para a Autoridade Policial o dever de realizar as
diligências requisitadas pelo Juiz ou pelo Ministério Público e silenciou, como
não podia deixar de ser, quanto à possibilidade de indeferir tais requisições.
Não poderá, pois, a
Autoridade Policial deixar de atender às requisições da Autoridade Judiciária
ou do Ministério Público.
E se a requisição não
fornecer nenhum dado de molde a permitir a investigação? Já vimos que a
requisição de conter aquele mínimo indispensável para permitir a investigação. Se,
contudo, os dados fornecidos forem vagos, cumprirá à Autoridade Policial
oficiar à autoridade requisitante, mostrando-lhe a impossibilidade de qualquer
investigação e, ao mesmo tempo, solicitando-lhe outras informações. E se o fato
for manifestamente atípico? Se tratar-se
de atipicidade, deve a Autoridade Policiar oficiar ao órgão requisitante
mostrando-lhe a total impossibilidade de cumpri-la por se tratar de ordem
manifestamente ilegal. E se a autoridade não atender à requisição, sem embargo
de se lhe fornecer o quantum statis
para a persecução? Poderá ser processa por desobediência, sem prejuízo de
eventuais sanções disciplinares. Tratando-se de requerimento do ofendido ou de
quem legalmente o represente, a própria lei permite o indeferimento. Não se
infira, pela redação do § 2º do art. 5º do CPP, permissiva do indeferimento,
possa a Autoridade Policial fazê-lo quando bem quiser. Isso seria absurdo e
conflitaria com o princípio de que à Polícia Judiciária incumbe investigar o fato
e sua autoria.
E quando, então poderá ela
indeferir tais requerimentos? Nas seguintes hipóteses: a) se já estiver extinta a punibilidade; b) se o requerimento não fornecer o mínimo indispensável para se
proceder à investigação; c) se o fato
narrado for atípico; d) se o
requerente for incapaz. Se a autoridade a quem for dirigido o requerimento não
tiver competência, não poderá ela indeferi-lo, mas, sim, remetê-lo à autoridade
que o for, aplicando-se, por analogia, a parte final do § 3º do art. 39 do
Código de Processo Penal.
Providência
que o ofendido pode tomar
Indeferindo o requerimento,
que providência poderá tomar o requerente? A propósito, o § 2º do art. 5º:
“do
despacho que indeferir o requerimento de abertura do inquérito caberá recurso
para o Chefe de Polícia”.
A lei não fala como deve ser
interposto tal recurso e silencia quanto ao prazo. Nada obsta, pois, que a
parte se dirija ao Chefe de Polícia, em petição fundamentada, mostrando a falta
de razão da Autoridade Policial. Como aquele despacho que indeferir
requerimento de abertura de inquérito não faz coisa julgada, pois o instituto
da res judicata é característico da
jurisdição, poderá o requerente recorrer a qualquer tempo, enquanto não estiver
extinta a punibilidade (a lei não fixa prazo), e, caso não seja “provido” seu
recurso, poderá renová-lo, apresentando novos argumentos e indicações de prova.
Nada obsta também que o requerente solicite à Autoridade Policial
reconsideração do seu despacho; nem estará ele impossibilitado de, mesmo que o
Chefe de Polícia venha a negar provimento ao seu recurso, ingressar em juízo, a
fim de que sejam tomadas as providências que se fizerem necessárias. A expressão
“Chefe de Polícia” àquela época, correspondia ao que hoje se denomina “Secretário
da Segurança Pública”. Assim, quer-nos parecer que nos Estados onde houver um
Delegado-Geral responsável por toda a Polícia Civil, ou outra Autoridade
Policial hierarquicamente superior à Autoridade Policial que indeferiu o
requerimento, o recurso a ele deve ser dirigido. Pretendia-se fosse o recurso
dirigido a alguém, na Polícia, que exercesse função superior àquela
desenvolvida pelos Delegados ou Comissários de Polícia. E o órgão superior era
o Chefe de Polícia. Atualmente há outros superiores ao Delegado e inferiores ao
Secretário da Segurança Pública, e àquela época não havia.
A
“delatio criminis”
Além dessas modalidades de
se iniciar o inquérito aos crimes de ação pública incondicionada, existem mais
duas: pelo auto de prisão em flagrante, cujo estudo será feito no final, ou,
então, por meio de delatio criminis,
nos termos do § 3º, do art. 5º do CPP.
“Qualquer
pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que
caiba ação pública, poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à
autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará
instaurar inquérito”.
Como bem se percebe pela
redação do texto supra, o legislador
deu ao cidadão a faculdade de levar ao conhecimento da Autoridade Policial a notitia criminis. Mera faculdade. Tanto é
faculdade que, se alguém deixar de fazer tal comunicação, não sofrerá nenhuma
sanção. Evidente que não se trata, aqui, de “denúncia anônima “não é uma
denúncia no significado jurídico do termo”, pelo que não pode ser tomada em consideração na lei
processual penal. Se o nosso CP erigiu à categoria de crime a conduta de todo
aquele que dá causa à instauração de investigação policial ou de processo
judicial contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente, como poderiam
os “denunciados” chamar à responsabilidade o autor da delatio criminis, se esta pudesse ser anônima? Daí a razão de o
nosso CPP não acolher tal modalidade espúria de notitia criminis.
A vingar entendimento
diverso, será muito cômodo para os salteadores da honra alheia, vomitarem, na
calada da noite, à porta das delegacias, seus informes pérfidos e ignominiosos,
de maneira atrevida, seguros, absolutamente seguros, da impunidade. Se admitida
a delatio anônima, à semelhança do
que ocorria em Veneza e em outras cidades da Itália, inclusive na própria Roma,
ao tempo da inquisitio extra ondinem, quando
se permitia ao povo jogasse nas famosas “Boca dos Leões” ou “Bocas de la Verità”
(caixas de substância análoga ao concreto, em formato de boca de leão, com
pequena abertura) suas denúncias anônimas, seus escritos apócrifos, a sociedade
viveria em constante sobressalto, uma vez que qualquer do povo poderia sofrer o
vexame de uma injusta, absurda e inverídica delação, por mero capricho, ódio,
vingança ou qualquer outro sentimento subalterno. Daí a ração de o nosso CPP
não acolher tal modalidade espúria de notitia
criminis. Por isso mesmo, apreciando o Agravo Regimental n. 355/RJ, a Corte
Especial do STJ decidiu que “o Superior Tribunal de Justiça não pode ordenar a
instauração de inquérito policial a respeito de autoridades sujeitas à sua
jurisdição com base em carta anônima. Agravo não provido” (DJ, 17-5-2004, p. 98). Se é assim em relação àquelas pessoas que
têm o STJ como seu foro privativo, nenhuma razão, lógica ou jurídica,
permitiria o contrário em relação às pessoas sujeitas à jurisdição de outros
Tribunais e, inclusive, as subordinadas ao foro comum.
Assinale-se que o nosso
Código de Processo Penal permite se façam delações à Polícia (art. 5º, § 3º). Não
anônimas. “Verbalmente ou por escrito”, diz o texto legal. Presume-se, pois,
que a delatio por escrito deva ser
assinada. O art. 164, II, do CPP português, um dos mais recentes diplomas processuais
penais, prescreve que “a junção de prova documental é feita oficiosamente ou a
requerimento, não podendo juntar-se documento que contiver declaração anônima,
salvo se for, ele mesmo, objeto ou elemento do crime”. No mesmo sentido o art.
240 do CPP italiano: “Documenti che contengono dichiarazioni anonime non
possono essere acquisiti né in alcun modo utilizzati salvo che constituiscano
corpo del reato o provengano comunque dall’imputato”.
Portanto, quem o desejar
poderá fazer a delatio. Contudo é
preciso que assuma a responsabilidade, identificando-se. A propósito, Giovanni
Leone, Trattato di diritto processuale penali,
Napoli. Jovene, 1961, v. 2, p. 11.
Sublinhe-se que o art. 340
do CP pune, com detenção, todo aquele que venha a provocar a ação da autoridade
comunicando-lhe a ocorrência de crime ou de contravenção que sabe não se ter
verificado. Assim, se o nosso diploma repressivo pune a denunciação caluniosa e
a comunicação falsa de crime ou de contravenção, parece óbvio não se poder
admitir o anonimato na notitia criminis;
do contrário, já não teriam aplicação os arts. 339 e 340 do CP, em face da
preferência que seria dada à notícia anônima... Mas uma observação pode ser
feita: se a Polícia receber uma denúncia anônima sobre fato grave nada a impede
de proceder a uma investigação sigilosa, com absoluta discrição, apenas e
tão-somente para apurar, como observou o Prof. Lauria Tucci, a verossimilhança
da informação, instaurando o inquérito se positiva for a verificação (Persecução penal, prisão e liberdade,
São Paulo, Saraiva, 1980, p. 34/35).
Inquérito
oficial nos crimes de ação penal pública condicionada
Tratando-se de crime de ação
pública condicionada à representação, diz o § 4º do art. 5º: “O inquérito, nos
crimes em que a ação pública depender de representação, não poderá sem ela ser
iniciado”. A representação nada mais é que uma manifestação no sentido de não
se opor à investigação e posterior processo. É feita pelo ofendido ou por quem
legalmente o represente. Se o ofendido vier a morrer ou for judicialmente
declarado ausente, o direito de representação passa ao cônjuge, ascendente, descendente
ou irmão, nos termos do § 1º do art. 24 do CPP. Nos crimes contra os costumes,
sendo a ofendida pobre, há certas particularidades, que serão analisadas quando
estudarmos a ação penal. É possível também ser ele iniciado se houver prisão em
flagrante e o titular do direito de representação der a devida autorização.
A
hipótese de requisição do Ministro da Justiça
Há casos em que a ação
pública fica subordinada à requisição do Ministro da Justiça. E, nessas
hipóteses, como se inicia o inquérito? Na verdade, em pouquíssimas hipóteses a
nossa lei condiciona a propositura da ação penal à requisição ministerial. De fato.
Ao crime cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil, a
instauração do processo fica subordinada, além de outras condições previstas em
lei, à requisição ministerial, nos termos do art. 7º, § 3º, b, do CP. Os crimes contra a honra do
Presidente da República ou Chefe de Governo estrangeiro, pouco importando se
cometidos publicamente ou não, são, também, de ação pública condicionada à
requisição do Ministro da Justiça, como se constata pela leitura do art. 145,
parágrafo único, do CP.
Outras hipóteses de ação
penal pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça (poucas, aliás)
vêm previstas na Lei de Imprensa. Voltaremos ao assunto quando do estudo sobre
a ação pública subordinada à requisição ministerial.
Mas, quando subordinada a
ação penal a tal condição, coo se inicia o inquérito? O Código silenciou. Subentende-se
deva a requisição ministerial ser encaminhada ao Chefe do Ministério Público
(Federal ou Estadual, conforme o caso), cabendo-lhe remetê-la ao órgão do
Ministério Público competente (Promotor ou Procurador da República do lugar
onde o processo deva tramitar), e este, então, se entender de necessidade as
diligências, requisitá-las à Autoridade Policial. Nessa hipótese, deve o
Promotor, ao requisitar o inquérito, encaminhar também a requisição
ministerial, uma vez que, se na ação penal subordinada à representação o
inquérito, encaminhar também a requisição ministerial, uma vez que, se na ação
penal subordinada à representação o inquérito sem ela não pode ser instaurado,
pela mesma razão não o poderá também se não lhe for encaminhada a requisição.