Direito Civil Comentado
- Art. 1.197, 1.198, 1.199 - continua
Do Direito das Coisas - VARGAS, Paulo S. R.
- Livro III
– Título I – Da Posse (Art. 1.196 ao
1.368)
Capítulo I – Da
Posse e Sua Classificação
(Art. 1.196 a 1.203) – digitadorvargas@outlook.com –
Art. 1.197. A posse direta, de pessoa
que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em virtude de direito
pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela foi havida, podendo o
possuidor direto defender a sua posse contra o indireto.
No entender de Francisco
Eduardo Loureiro, h
ouve nítida melhoria da redação do dispositivo, com a definição clara e técnica
das figuras dos possuidores direto e indireto. Abandonou o legislador o sistema
do antigo Código Civil que exemplificava quem eram possuidores diretos,
mencionando o credor pignoratício, o locatário e o usufrutuário. É evidente que
tais figuras caracterizam, mas não esgotam as possibilidades de posse direta,
que pode perfeitamente vir amparada em relações jurídicas diversas, como o
comodato, a alienação fiduciária, o depósito e o leasing, entre tantas outras. Como foi visto acima, o possuidor é
aquele que se comporta como proprietário, de modo consciente, mantendo de fato
o exercício de alguns dos poderes inerentes à propriedade. Para obter seu
aproveitamento econômico, é possível tanto a utilização direta como a cessão a
terceiros da coisa, vale dizer, mediante utilização indireta. Se assim age o
proprietário, que usa e frui o que é seu, assim pode agir o possuidor, que tem
a aparência de proprietário. Se o proprietário desdobra as condutas possíveis
de aproveitamento da coisa, assim também o faz o possuidor. Na lição de Caio
Mário da Silva Pereira, de tal desdobramento resulta a duplicidade excepcional
da posse sobre a mesma coisa. Há dois possuidores. Um que cede o uso da coisa,
chamado de possuidor indireto ou mediato. Outro que recebe o uso da coisa, por
força de relação jurídica de direito real ou obrigacional, chamado de possuidor
direto ou imediato (Instituições de direito civil, 18. ed., atualizada por
Carlos Edison Rego Monteiro Filho. Rio de Janeiro, Forense, 2002, v. IV, p.
32-3). O possuidor indireto, embora não tenha poder físico imediato sobre a
coisa, sem dominação direta, é também possuidor, porque se comporta como
proprietário. As duas posses coexistem em planos diferentes, sem contradição
entre si. Tomem-se como exemplos as figuras do locatário e do locador, do
comodatário e do comodante, do credor e do devedor pignoratício, entre outras.
Os primeiros (locatário, comodatário, credor pignoratício) têm posse direta,
porque a receberam temporariamente em virtude de relação jurídica real ou
pessoal. Os segundos têm posse indireta, porque a cederam. Não colidem nem se
excluem as duas posses, porque se referem a poderes distintos sobre a mesma
coisa. A figura da posse direta somente tem sentido na teoria objetiva de
Ihering, uma vez que para Savigny e para os defensores da teoria subjetiva, a
ausência de animus domini a converte
em mera detenção. Se o possuidor direto tem relação jurídica com o possuidor
indireto e, portanto, sabe que não pode ser dono da coisa, a relação é de mera
detenção, segundo a teoria subjetiva. Os desdobramentos da posse podem ser
sucessivos. Feito um primeiro desdobramento, poderá o possuidor direto
reproduzi-lo, criando novas e repetidas situações de posse direta e indireta.
Basta lembrar a hipótese da locação. Se o locatário, que é possuidor direto,
subloca o imóvel a terceiro, teremos então dois possuidores indiretos - locador
e sublocador - e um possuidor direto - sublocatário. O mesmo acontece com o
usufrutuário que loca ou empresta a coisa a terceiros. Note-se que somente terá
a posse direta aquele que tiver a coisa consigo, ou seja, o último integrante
da cadeia. Todos os demais terão posse indireta, em gradações sucessivas
(Gonçalves, Marcus Vinicius Rios. Dos
vícios da posse. São Paulo, Oliveira Mendes, 1998, p. 35). Como acentua
Moreira Alves, o possuidor indireto em grau mais elevado tem posição peculiar
em relação aos demais, porque não reconhece e existência de posse superior à
sua. Isso lhe confere o animus domini
necessário ao usucapião, requisito que falta aos demais integrantes da cadeia,
em grau inferior, ou ao possuidor direto, que reconhecem a supremacia de
direito de terceiro quanto à coisa. Tanto o possuidor direto como o indireto
podem afastar os ataques injustos de terceiros à posse, utilizando a tutela
possessória e o desforço próprio. A parte final do artigo diz que pode o
possuidor direto defender a sua posse contra o possuidor indireto, o que se
mostra exato. Basta lembrar a hipótese, comum na periferia das grandes cidades,
do locador que pretende retomar a coisa locada para uso próprio, ou por ter se
escoado o prazo, ou mesmo por falta de pagamento, sem usar a ação de despejo,
retirando o locatário à força, ou praticando atos turbativos, como o corte da
energia elétrica ou da água corrente. Tem o locatário ação possessória contra o
locador, em razão da conduta ilícita deste, que molesta a sua posse. Embora a
parte final deste artigo não diga, o inverso também é possível, ou seja, pode o
possuidor indireto usar a tutela possessória contra o possuidor direto. Isso
porque tem o possuidor indireto o direito à restituição futura da coisa, o que,
no presente, se reflete nas prerrogativas de fiscalizar e vigiar, para
preservá-la e conservá-la. Se a substância da coisa for ameaçada ou estiver
sendo destruída, pode o possuidor indireto usar os remédios possessórios contra
o possuidor direto. Tomem-se como exemplos os casos do comodatário que está
destruindo o imóvel emprestado e vendendo os materiais a terceiros, ou, então,
do locatário que impede a entrada do locador no imóvel locado para vistoriar o
prédio, como previsto em contrato. Diga-se que, dos enunciados aprovados na
Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do
Conselho da Justiça Federal no período de 11 a 13 de setembro de 2002, sob a
coordenação científica do Ministro Ruy Rosado, do STJ, tirou-se a seguinte
conclusão a respeito do tema: “o possuidor direto tem direito de defender a sua
posse contra o indireto e este contra aquele (CC 1.197, in fine, do novo Código Civil)”. Da lição de Tupinambá Miguel
Castro do Nascimento extrai-se, ainda, que a pretensão à restituição da coisa
cujo uso foi cedido ao possuidor direto integra a esfera jurídica do possuidor
indireto, de modo que pode ser cedida a terceiro, para que este a obtenha no
momento devido (Posse e propriedade,
3. ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2003, p. 25). Disso decorre que o
adquirente da coisa, que recebe a titularidade da posse indireta e se sub-roga
na sua posição, pode ajuizar contra o possuidor direto ação possessória, se não
houver a restituição no tempo devido. De outro lado, como alerta Ernane Fidélis
dos Santos, “não há posse onde o fato não existe. Daí, a inocuidade da pretensão
possessória do adquirente que recebe do proprietário, por contrato, direito e
posse, quando, na verdade, não tinha este o poder fático sobre a coisa”
(Comentários ao Novo Código Civil, v. XV, coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira,
Rio de Janeiro, Forense, 2007). Não se confundem o possuidor direto e o
detentor. O possuidor direto tem posse própria, enquanto o detentor (servidor
da posse) não possui para si, mas em nome alheio e atendendo a ordens e
instruções de terceiro. A diferença entre o possuidor direto e o detentor está
na relação de subordinação. O detentor é obediente, é subordinado a terceiro,
sem independência. O possuidor direto, embora receba a coisa com dever de
restituir, tem relativa liberdade na sua utilização e o faz em proveito econômico
próprio. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado:
Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar
Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.137-38. Barueri, SP:
Manole, 2010. Acessado 03/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).
Historicamente,
O
presente dispositivo não foi objeto de emenda, quer por parte do Senado
Federal, quer por parte da Câmara dos Deputados, no período final de tramitação
do projeto. A redação atual é a mesma do anteprojeto. Encontra disposição similar no CC de 1916 no
art. 486.
A
doutrina apresentada por Ricardo Fiuza, sem maiores dificuldades, percebe-se
que o legislador deixou de acolher, nesse dispositivo, a orientação da doutrina
dominante das últimas décadas, diferentemente do que fez em tantas outras
passagens do NCC. Na verdade, a redação desse artigo apresenta-se bastante
truncada, o que dificulta sensivelmente a sua aplicabilidade e compreensão,
valendo ressaltar que problemas de ordem prática, sobretudo por se tratar de
artigo de larga aplicabilidade, certamente surgirão. Por isso, apresentou-se
proposta de alteração ao ilustre Relator, Deputado Ricardo Fiuza, para
modificação do dispositivo, durante a vacatio
legis.
Ainda,
o dispositivo versa sobre os desmembramentos voluntários e classificação das
posses com base nos poderes de ingerência dos titulares sobre o mesmo bem da
vida, sem que sobre eles as posses se sobreponham ou se anulem (v. g. arrendante e arrendatário, locador
e locatário). Em outras palavras, como a posse pressupõe a existência de poder
fático, e não necessariamente o seu exercício, que é uma forma de
exteriorização deste poder, classifica-se em dois grupos distintos: a) posse
absoluta (própria); e b) posse relativa ‘(imprópria) fático que tem origem no
desmembramento de um direito (posse non
domino), não gerando efeitos à prescrição aquisitiva (posse ad usucapionem). (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 616, apud Maria Helena Diniz
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No site de Direito.com,
Luís Paulo Cotrim Guimarães e
Samuel Mezzalira, instrui (1) Quando o titular de um direito real
(proprietário) usa e goza da coisa de forma direta e pessoal, pode-se dizer que
ele exerce posse de maneira plena, ocorrendo
verdadeira conjunção entre a posse direta e a indireta. (2) Entretanto, o
titular deste direito real poderá transferir ou ceder o uso da coisa a
terceiro, por meio de negócio jurídico, como se dá no usufruto, onde o
beneficiário (usufrutuário) passará a
ter direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos sobre o bem. Com
o proprietário restará a nua-propriedade,
despida do uso e gozo. Ocorreu, aqui, o desdobramento da posse, passando o
titular do domínio a ter a posse indireta e o usufrutuário a direta. (3) O CC
1.197 procura distinguir – embora com uma redação nada digerível, mas bem
melhor que a do Código revogado – a posse direta da indireta, sendo a primeira
(direta) caracterizada pela apreensão da coisa, de forma temporária, ou seja,
trata-se do poder físico do titular sobre o bem (como se verifica no direito do
locatário ou do usufrutuário), referindo-se, pois, tanto aos direitos pessoais
como aos reais. Já a indireta surge com a cessão do uso a terceiros. (4) Como
já mencionado, verifica-se o desdobramento da posse plena sobre o mesmo bem: de
um lado, a posse direta (ou
imediata), daquele que a recebe por força de uma relação jurídica estabelecida
(contrato); e de outro lado, a posse
indireta, daquele que cede o uso da coisa, também chamado de possuidor
mediato. (5) Cabe aqui observar que o possuidor indireto não é, necessariamente,
o proprietário do bem, cuja posse direta foi cedida. Destarte, poderá ser
possuidor indireto o sublocador de um imóvel ou mesmo o usufrutuário. Nestes
casos, nenhum deles é proprietário. (6) As posses direta e indireta não
sofrem colisão. Ao contrário, coexistem harmonicamente, em relação ao mesmo
bem. Ambas são igualmente tuteladas pelo direito, e tanto o possuidor direto, como o indireto, pode defender sua posse
autonomamente, independentemente do outro, caso sejam molestados por terceiros.
(7) De igual maneira, caso o possuidor indireto venha a molestar a posse do possuidor direto, este último poderá se
valer dos interditos de defesa a seu favor. Assim, na hipótese de o locador
ocupar, indevidamente, o bem cedido para locação, o possuidor direto (inquilino) poderá se utilizar dos interditos
possessórios previstos no ordenamento contra o primeiro, restabelecendo-se a
normalidade jurídica, o que vem previsto na parte final do CC 1.947. (8) Convém
ressaltar que não tem a posse direta
aquele que exerce atos possessórios em nome de terceiros, como se dá com o detentor, eis que não possui para si
próprio (CC 1.198). Da mesma forma o possuidor
direto, vinculado a um determinado título
jurídico, não poderá exercer a posse para fins de usucapião, já que sua posse é derivada de um ato negocial (posse derivada ou imediata), não se
cogitando de animus domini, essencial
para todas as espécies de usucapião. É como sucede com o locatário ou o comodatário.
(9) Enunciado 76 do Conselho da Justiça Federal: “O possuidor direto tem direito de defender a sua posse contra o
indireto, e este, contra aquele (CC 1.197, in fine, do novo Código Civil)”. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e
Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 03.09.2020,
corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Art. 1.198. Considera-se detentor aquele que,
achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome
deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas.
Parágrafo único. Aquele que começou a
comportar-se do modo como prescreve este artigo, em relação ao bem e à outra
pessoa, presume-se detentor, até que prove o contrário.
Para Francisco Eduardo Loureiro, O conceito de detenção varia
de acordo com a teoria adotada, de Savigny (subjetiva) ou Ihering (objetiva).
Para Savigny, sempre que houvesse corpus,
mas não animus (affectio tenendi + animus
domini), estaríamos diante da figura da detenção e não da posse. Para
Ihering, a posse e a detenção não se distinguem por um animus específico. Ao
contrário. Têm os mesmos elementos (corpus
e animus), são ontologicamente iguais. O que as distingue é um obstáculo
legal que, com respeito a certas relações que aparentemente preenchem a
princípio os requisitos da posse, retira delas os efeitos possessórios. Para
Ihering, é uma posse degradada, que, em virtude da lei, se avilta em detenção
(Alves, José Carlos Moreira. “A detenção
no direito brasileiro”. In: Posse e
propriedade, coord. Yussef Said Cahali, 3. ed. São Paulo, Saraiva, 1987, p.
4). O possuidor também tem animus,
vale dizer que exerce poderes de fato típicos de modo consciente e proposital.
O seu elemento subjetivo, porém, está circunscrito à affectio tenendi, dispensada a vontade de ser dono (animus domini). Claro que, se aquele que
tem poder fático sobre a coisa desconhece a existência desse poder, vale dizer,
não tem sequer consciência de sua conduta, haverá simples relação de
justaposição entre pessoa e coisa, não chegando a configurar detenção. Nosso
Código Civil, como foi visto acima, adotou a teoria de Ihering. Não distinguiu
estruturalmente a posse da detenção. Apenas criou obstáculos objetivos para
diferenciar ambos os institutos. A teoria subjetiva parte da detenção para
chegar à posse. A teoria objetiva, adotada em nosso ordenamento, faz o trajeto
inverso. A princípio, quem reúne poderes fáticos sobre a coisa semelhantes aos
poderes do proprietário é possuidor. Somente não o será se uma barreira legal,
criada pelo legislador, retirar os efeitos possessórios de tal comportamento.
O art. 1.198 do Código Civil, em comento, trata do
primeiro obstáculo posto pelo legislador, que retira de uma situação
tipicamente possessória os seus efeitos naturais, rebaixando-a para detenção. O
segundo grupo de obstáculos legais se encontra no CC 1.208, adiante examinado. Seria
recomendável que os artigos que tratam das barreiras que degradam a posse em
detenção estivessem agrupados, deixando mais clara a sua natureza, o que
eliminaria dúvidas que se instalaram na doutrina e confundem o intérprete. O
primeiro e mais conhecido impedimento que degrada a posse é o deste artigo, que
trata do caso do fâmulo ou servo da posse, ou seja, aquele que, achando-se em
relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste, em
cumprimento de ordens e instruções suas. É
o detentor de posse alheia. Como lembra Clóvis Beviláqua, são os casos, por
exemplo, do operário em relação às ferramentas e aos utensílios do patrão que
ele usa em seu mister, ou do empregado que zela pelos objetos do patrão e os
conserva, ou do mandatário que recebe coisa do mandante para entregá-la a
outrem {Código Civil dos Estados Unidos
do Brasil comentado, 4. ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1930, v. III,
p. 23). O detentor age como mero instrumento, para o verdadeiro possuidor exercer
a sua posse. Há relação de autoridade e de subordinação do possuidor sobre o
detentor. Por isso é que essa figura recebe os nomes de servidão da posse,
detenção dependente e detenção subordinada. O detentor não tem
independência, porque exerce o poder de fato sobre a coisa por conta, ordem e
em razão do interesse alheio. Tanto é assim que, se o esbulhador invade um
terreno que é guardado por um preposto, este pode exercer a autotutela, mas em
nome do possuidor. Caso seja vencido em sua resistência, a legitimidade para ajuizamento
das ações possessórias é do possuidor e não do detentor. Como salienta Moreira Alves, essa
obediência - a subordinação que marca a conduta do detentor - pode decorrer de
relação jurídica de direito privado, como a de mandato, ou de direito público,
como a arma e utensílios entregues ao poder imediato do soldado. Pode derivar
também de relação social, desde que envolva ordem e obediência (op. cit., p.
11). Note-se que a detenção, ou servidão da
posse, é inconfundível com a posse direta. Geram as duas figuras efeitos
radicalmente distintos. Apenas o possuidor pode invocar a tutela possessória,
não o detentor. As semelhanças entre ambas são que tanto o possuidor direto
como e detentor têm poder imediato sobre a coisa, assim como podem ambas as
figuras derivar de uma relação jurídica preexistente (posse direta, locação;
detenção, contrato de trabalho ou mandato). Haverá mera detenção - servidão da
posse - quando a submissão a ordens e decisões for estreita, vale dizer, não
goza o detentor de independência nem autonomia; age ele em proveito, por conta
do possuidor; dá à coisa o destino e a utilização que lhe determina o
possuidor. Já o possuidor direto, embora tenha a obrigação de devolver a coisa
para o possuidor indireto após certo tempo, enquanto permanece com ela, tem
certo grau de autonomia e exerce os poderes imediatos em proveito próprio.
As
considerações acima permitem distinguir com alguma nitidez o possuidor direto
do detentor. Algumas situações, porém, se mostram duvidosas. Marcus Vinicius
Rios Gonçalves ressalva a figura do depositário judicial, que não se confunde
com o seu homônimo, que recebe a coisa em decorrência do contrato de depósito.
O depositário judicial tem relação de fato com a coisa em decorrência de um
vínculo processual, vale dizer que não há desdobramento da posse, mas múnus
público de zelar pela guarda dos bens. Por isso, eventual ataque injusto à
coisa não pode ser defendido por ação possessória ajuizada pelo depositário,
mas sim por pedido ao próprio juízo que determinou o depósito. Assim, não é o
depositário possuidor, mas servidor da posse para o Estado (Dos vícios cia posse. São Paulo,
Oliveira Mendes, 1998, p. 28).
Finalmente,
o parágrafo único deste artigo contém a inovação do Código vigente em relação
ao Código Civil de 1916, ao preceituar que o comportamento de detentor, agindo
em relação de dependência para com outro, faz presumir a detenção, até prova cm
contrário. Trata-se de regra parelha à do CC 1.203, que dispõe sobre a posse.
Note-se que, como dito acima, o que marca a conduta do detentor é a sua
obediência, i. é, a falta de autonomia em relação à utilização da coisa. Quem
assim age presume-se detentor, cabendo-lhe o ônus da prova - porque é relativa
a presunção - de demonstrar o contrário. Podem ocorrer situações duvidosas,
como saber se alguém que ocupa um imóvel é comodatário (possuidor direto) ou
preposto (detentor). Em situações tais, valiosa será a prova da autonomia da
conduta, do grau de independência, para definir qual é a situação jurídica do
ocupante. Frise-se, ainda, que em determinados casos um possuidor pode
transformar-se em detentor. Basta imaginar a hipótese de um comodatário que
passa a receber salário para conservar a coisa. O inverso também pode ocorrer,
por exemplo o empregado que não mais reconhece a relação de trabalho e deixa de
restituir a coisa ao patrão, ou, então, do representante que arroga direito
próprio sobre a coisa, afastando a figura do mandato. Claro que não basta a
inversão do estado anímico do detentor, que deve ser acompanhado de conduta
objetiva, clara e inequívoca perante o possuidor, para que fique este ciente de
que o outro não mais lhe obedece, não mais reconhece a supremacia de sua
posição, devendo, se quiser retomar a coisa, usar do remédio possessório. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código
Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002.
Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.140-41. Barueri,
SP: Manole, 2010. Acessado 03/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).
Historicamente o dispositivo em tela não
sofreu alteração substancial, seja por parte do Senado Federal, seja por parte
da Câmara dos Deputados, no período final de tramitação do projeto. A redação
atual é, basicamente, a mesma do anteprojeto. Durante a fase final de revisão
do texto do projeto, foi apresentado ao Relator-Geral, Deputado Ricardo Fiuza,
proposta (acolhida) para substituição, no parágrafo único, da expressão a coisa
por “ao bem”. Em síntese, observou-se como justificativa que a palavra coisa
denota uma espécie mais restrita de bem da vida, enquanto os bens são o genem
e, desta feita, referem-se aos móveis, imóveis, bem como os materiais, semimateriais,
e imateriais, em toda a sua amplitude. O dispositivo praticamente repete o Art.
487 do CC de 1916.
Na
Doutrina apresentada por Ricardo Fiuza, o detentor (fâmulo da posse) não exerce poderes sobre o bem da vida, mas os
atos que pratica assim os faz em nome de outrem, isto é, do possuidor Por isso,
em relação ao detentor, presume a lei (presunção juris tantum) que a situação se mantenha indefinidamente. Caso
contrário, o ônus da prova compete ao detentor, que por inversão da situação
precedente deu origem (causa possessionis)
a atos potestativos de ingerência socioeconômica sobre determinado bem da vida,
excluindo terceiros e o legítimo possuidor. Em outras palavras, quem era mero
detentor pratica esbulho, nada obstante passe a exercer poderes (posse) sobre o
bem da vida. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 617, apud Maria Helena Diniz
Código Civil Comentado já impresso
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Na participação de Luís Paulo Cotrim
Guimarães e Samuel Mezzalira, (1) O CC 1.198 prevê a figura do detentor, explicitando tratar-se daquele
que se encontra numa relação de dependência
para com outro, conservando a posse em nome deste e em cumprimento de
ordens suas. (2) É também conhecido como fâmulo
da posse, sendo aquele que, em razão de sua dependência em relação a uma
outra pessoa, exerce sobre a coisa não um poder próprio, mas o poder de fato
desta última, dependência esta que deve ser averiguada do ponto de vista
econômico (Fulgêncio, 1994, p. 13). (3) tal relação de dependência, por si só, descaracteriza a posse natural, uma vez
que, em se tratando de detecção, o
titular do bem poderá, a qualquer momento, extinguir a relação de fato,
tornando inexistentes, assim, os atos possessórios. (4) Como se viu, são
elementos integrantes de detenção: a) existência de um titular da posse (possuidor indireto); b) aquele que
exerce a posse (detentor); c) relação
de dependência econômica de um para com o outro. (5) Nos termos da definição
legal, o detentor exerce atos
possessórios em nome do titular da posse, melhor dizendo, em estrito
cumprimento e observância das determinações
deste, eis que a posse exercida não deriva de um poder próprio, mas
derivado; esse é, aliás, o traço primordial que diferencia a detenção da posse. (6) São detentores os empregados, que têm sob
sua guarda objetos do patrão; o operário a quem o dono da obra entrega
instrumentos para realizar certo serviço; o mandatário, que recebe do mandante
algum objeto para entregar a outrem. Em suma, a detenção é o poder material exercido sobre a coisa, sem a intenção
de a ter como sua, ou seja, sem o animus
sibi habendi (Beviláqua, p. 36). Também são detentores os hóspedes em
relação aos cômodos da casa em que ocorre hospedagem. (7) Embora o detentor não possa invocar as
tradicionais medidas protetivas da posse, em nome próprio, poderá utilizar-se
da autodefesa da posse, também
chamada de desforço pessoal, ou defesa privada, assim tratada no § 1º,
do CC 1.210, que é a resistência ao esbulho ou à turbação mediante sua própria
força, uma vez que tem o dever de zelar pelo bem que lhe foi confiado,
protegendo-o integralmente. (8) Enunciado 301 do Conselho da Justiça Federal: “É possível a conversão da detenção em posse,
desde que rompida a subordinação, na hipótese de exercício em nome próprio dos
atos possessórios”. (9) Enunciado 493 do Conselho da Justiça federal: “O detentor (CC 1.198) pode, no interesse do
possuidor, exercer a autodefesa do bem sob seu poder”. (Luís Paulo Cotrim
Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso
em 03.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Art. 1.199. Se
duas ou mais pessoas possuírem coisa indivisa, poderá cada uma exercer sobre
ela atos possessórios, contanto que não excluam os dos outros compossuidores.
Com a remissão de Francisco Eduardo Loureiro, a
posse, como visto no comentário ao CC 1.196, nada mais é do que o exercício de
fato de alguns dos poderes proprietários. Tal como a propriedade, uma das
características da posse é a exclusividade, vale dizer que a posse de uma
pessoa anula a de outra, ou é antinômica à dela. Porém, em determinadas
situações, pode instituir-se condomínio e, portanto, também a composse, que é a
aparência da propriedade. Tal como no condomínio, exige-se nesta segunda
hipótese pluralidade objetiva de titulares. Cada compossuidor tem direito à
parte ideal do bem, uma vez que a composse não se fraciona em partes certas.
Note-se que o artigo em questão fala em posse sobre coisa indivisa, de modo que
não há composse se três condôminos, por exemplo, ocupam, individualmente,
partes certas e determinadas de um imóvel. Nada impede, porém, que os
compossuidores acordem que cada um utilizará a coisa comum em determinadas
datas, ou por certo tempo. Incompatível com a composse é a transformação da
posse pro indiviso em posse pro diviso, localizando a parte ocupada por cada um
dos possuidores. Ressalte-se, ainda, que o Código Civil de 2002 aboliu a
expressão “ou estiverem no gozo do mesmo direito”, que constava do art. 488 do
Código Civil de 1916. Na lição de Tupinambá Miguel Castro do Nascimento, isso é
a consolidação do entendimento segundo o qual, tal como na posse, não há
composse de direitos. O direito vale como causa
possessionis e não como seu objeto (Posse
e propriedade, coord. Yussef Said Cahali, 3. ed. São Paulo, Saraiva, 1987,
p. 52). Perante terceiros (relações externas), os compossuidores procedem como
se fossem um único sujeito. Cada um pode defender a posse do todo, ainda que
individualmente. Entre si (relações internas), a cada um é assegurada a
utilização da coisa, contanto que não exclua o direito dos demais. Disso
decorre que cada um dos compossuidores tem legitimidade para ajuizar ação
possessória contra atos ilícitos de terceiros, assim como contra os demais
compossuidores. Claro que nesta última hipótese o pressuposto é que um dos
compossuidores tenha invadido o exercício de fato dos poderes dos demais
compossuidores, por exemplo com o uso ou fruição exclusiva da coisa. A situação
de composse decorre de diversas relações jurídicas rotineiras, como o
casamento, a união estável - ainda que sobre bens próprios do outro cônjuge ou
companheiro -, a herança e áreas comuns de condomínio edilício. Cessa a
composse pela divisão em partes certas do todo (posse pro diviso) ou pela posse exclusiva de um dos possuidores sem
oposição ou com exclusão dos demais. Não se confundem a composse e as posses
direta e indireta. O ponto comum é que em ambas as figuras não há exclusividade
da posse. A distinção é que na composse há repartição quantitativa da posse.
Nas posses direta e indireta, há repartição qualitativa da posse. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código
Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002.
Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.143. Barueri,
SP: Manole, 2010. Acessado 03/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).
Para a doutrina explícita de
Ricardo Fiuza, a
posse exclusiva não se confunde com a
posse absoluta (própria e plena);
enquanto a primeira tem pertinência à titularidade do poder de fato — exclusivo
de um único possuidor — a segunda diz respeito à manifestação do conteúdo deste
poder. Assim, fica mais fácil compreender que composse é a posse comum sobre o mesmo bem (divisível ou
indivisível), exercida concomitantemente por dois ou mais sujeitos (pessoas
físicas e/ou jurídicas). Está a composse para o mundo fático, assim como o
condomínio está para o mundo jurídico. Pode verificar-se dentro da organização
vertical da posse, no tocante ao bem, a composse como se os cotitulares fossem
condôminos (posse de coisa indivisa), ou a posse de um bem através do gozo do mesmo
direito real limitado, i. é, composses absolutas ou próprias e plenas. Diz-se que a composse pode ser pra diviso ou pra indiviso. Na compossessio
pro divisa, o poder fático comum manifesta-se de maneira que cada
possuidor, individualmente, externa poderes sobre uma quota ou parte especifica
do bem. Na compossessio pra indiviso,
não existe uma parte ou quinhão determinado para atuação do poder fático, sendo
que todos os sujeitos da comunhão têm poderes sobre a coisa em sua inteireza.
Tem posse tanto o sujeito que direciona o poder fálico sobre parte determinada
da coisa como aquele outro que possui parte ideal inespecifica. Não obstante,
“... só a compossessio pro indiviso é
verdadeiramente composse (José Carlos
Moreira Alves, Posse. Estudo dogmático,
Rio de Janeiro, Forense, 1991, v. LI, t. 1, n. 31, p. 498-519).
A composse não é apenas um paralelo da
compropriedade no mundo fático, podendo apresentar-se da mesma forma com
relação aos outros direitos reais (excluída a hipoteca). Denomina-se posse periódica a relação do mundo fático
desmembrada da multipropriedade ou propriedade periódica. Essa nova variação pretende adaptar-se juridicamente ao
instituto da propriedade comum, possibilitando a utilização de imóveis, em
unidades autônomas (v. g. casas,
chalés, apartamentos), em determinados períodos ou temporadas, por pessoas que
não desejam pagar o preço total do respectivo empreendimento referente à aquisição
efetiva do bem em questão, tampouco alugar o imóvel a cada ano. Nessa
modalidade de “uso” do imóvel em períodos compartidos sucessivos, vende-se
regularmente a propriedade a diversos adquirentes de um mesmo bem com prévia
definição de utilização durante determinado mês (ou dias) do ano, variando o
preço de compra conforme o tempo de uso e temporada (alta, média ou baixa).
Essa situação fática e jurídica não foi regulamentada pelo NCC; assemelha-se ao
instituto do direito civil americano conhecido por leasehold, que significa, em síntese, o direito de usar a
propriedade alheia sob condições previamente estipuladas num contrato, tendo
por objeto, via de regra, um bem tangível. Conforme a relação fática que se
venha a formar, o sistema organizacional da manifestação do poder de ingerência
dos compossuidores sobre um bem pode criar situações diversas apresentadas num
paralelismo entre o mundo fático e o jurídico. Assim, nada obsta a que se
verifiquem: propriedade e composse; compropriedade (condomínio) e posse
singular (exclusiva ou múltipla); compropriedade e composse; ou compropriedade
sem posse ou sem composse. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 618, apud Maria Helena Diniz
Código Civil Comentado já impresso
pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 03/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Em seu padrão doutrinário, Luís Paulo Cotrim
Guimarães e Samuel Mezzalira defendem que (1) Para a caracterização da composse exige-se o exercício dos atos
possessórios por duas ou mais pessoas, configurando-se,
em verdade, uma situação excepcional de posse, pois, regra geral, o exercício
possessório é exclusivo, ou seja, o ato do titular anula por completo o de
outros. (2) No entanto, o que caracteriza a composse,
traduzida pela posse de coisa indivisa
por duas ou mais pessoas, é a existência de um contrato entre os
compossuidores, ou uma relação jurídica com base na lei, como se dá na sucessão
universal, quando os herdeiros do de cujus recebem a posse do seu
antecessor ou então quando os nubentes, casados pelo regime da comunhão
universal, passam a exercer atos possessórios conjuntamente. (3) Aqui, por
força da situação jurídica condominial, verifica-se a posse sobre coisa indivisa, i.é, sobre bens que não podem
ser partidos ou fragmentados sem que comprometam sua própria estrutura ou
natureza, como se dá com uma casa residencial. Nessa hipótese, em se tratando
de direito real de propriedade, cada condômino
será titular de uma fração ideal do todo, ocorrendo situação similar em relação
a cada compossuidor, que exercerá
atos de posse – e não de propriedade – sobre o todo, sendo tal direto extensivo
aos demais compossuidores, que não podem, assim, criar obstáculos ou empecilhos
ao exercício possessório de cada um deles. (4) Como se observa, a composse é uma situação jurídica
particular e temporária da posse como
um todo, pouco importa que o titular da ação tenha, apenas, uma fração ideal da
posse: ele defende o todo como se fosse possuidor único (Mário, 2004, p. 35).
(5) Ocorre a composse pro diviso – que
é uma outra espécie da posse em comum, já que a característica principal da
composse é ser indivisa – quando não
há uma divisão de direito sobre a posse, mas meramente de fato, onde cada compossuidor ocupa uma parte certa do
bem, como se já estivesse dividido. O exercício da composse permite essa divisão de fato para proporcionar uma
utilização pacífica do direito de posse de cada um dos compossuidores (TJ-SP,
Ap. Cível 185.521-1). (Luís Paulo Cotrim Guimarães e
Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 03.09.2020,
corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).