quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Direito Civil Comentado - Art. 1.204, 1.205, 1.206 Da Aquisição da Posse - VARGAS, Paulo S. R.


Direito Civil Comentado - Art. 1.204, 1.205, 1.206
Da Aquisição da Posse - VARGAS, Paulo S. R.
- Livro IIITítulo I – Da Posse (Art. 1.196 ao 1.368)
Capítulo II – Da Aquisição da Posse
(Art. 1.204 a 1.209)digitadorvargas@outlook.com

Art. 1.204. Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade.

De forma clara, leciona Francisco Eduardo Loureiro, a aquisição da posse, segundo dispõe o Código Civil de 2002, se dá no momento em que “se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade”. A redação é sensivelmente superior à do antigo art. 493 do CC/1916, que procurava fornecer o catálogo das condutas semelhantes às do proprietário, tarefa inglória diante de sua amplitude e das infindáveis possibilidades. Basta ver que no rol do art. 493 não se encontrava o constituto possessório, que a doutrina sempre considerou modo de aquisição e de perda da posse.

De modo simétrico, o CC 1.223 do atual Código, adiante examinado, diz que ocorre a perda da posse quando cessa o exercício de fato de poderes inerentes à propriedade. O preceito que trata da aquisição da posse tem estreita conexão com o CC 1.196, que define quem é possuidor. Seguindo a doutrina de Ihering, adotada em nosso direito, adquire a posse aquele que procede em relação à coisa, em nome próprio, da maneira como o proprietário habitualmente o faz. Assim, para verificar se alguém adquiriu a posse, basta constatar se ocorre uma situação de fato análoga à conduta do proprietário em relação às suas coisas, tendo sempre presente o binômio corpus e animus. Ou, na expressão de Ihering, “pergunte-se como o proprietário tem o hábito de agir com suas coisas, e se saberá quando admitir a posse e quando rejeitá-la”.

O CC 1.204, em exame, faz a ressalva de que o exercício dos poderes deve ser em nome próprio, para distinguir a aquisição da posse da mera detenção, em que se tem poder sobre a coisa, mas esse poder é dependente - em nome, por conta e em proveito de terceiros. É por isso que nas hipóteses dos CC 1.198 e 1.208, primeira parte, embora o ocupante aja como dono e possa ter affectio tenendi, não adquire posse, porque a sua conduta apenas representa ou instrumentaliza a posse de terceiro, este sim o verdadeiro possuidor. Já na segunda parte do CC 1.208, tem-se que a detenção, embora independente, não é posse, porque encontra obstáculo previsto em lei, que degrada situação tipicamente possessória.

Claro que os diversos modos de aquisição da posse particularizados no Código de 1916 - apreensão da coisa ou do direito, disposição de coisa ou do exercício do direito - encontram-se abrangidos na boa redação genérica deste artigo, uma vez que, cm todos os casos, alguém passa a agir como dono, com ou sem contato físico com a coisa, mas dando-lhe a natural destinação econômica ou social. Cabe aqui breve alusão à distinção entre a posse civil e a posse natural, a que se referia o inciso I do revogado art. 493. A posse civil adquire-se como consequência de uma relação jurídica, sem que haja necessidade de apreensão da coisa. Já a posse natural é resultado do simples comportamento do possuidor, que passa a agir de fato como dono, independentemente de prévia relação jurídica que confira direito à posse. Na lição de Clóvis Beviláqua, pode a posse ser adquirida por ato unilateral, por ato bilateral, quando o possuidor a transfere a outrem, ou por sucessão causa mortis (Direito das coisas, 3. ed. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1951, 1. 1, p. 49). Na aquisição por ato unilateral, diz-se que a posse é adquirida a título originário. Na aquisição por ato bilateral, ou por sucessão hereditária, diz-se que a posse é adquirida a título derivado. Embora o Código Civil de 2002 não trate expressamente da figura do constituto possessório, como fazia o Código Civil de 1916, cuida-se de instituto ainda aplicável, que merece breve menção, porque se amolda ao critério genérico de aquisição da posse previsto no CC 1.203. Como consta do Enunciado n. 77 da I Jornada de Direito Civil 2004, “CC 1.205: A posse das coisas móveis e imóveis também pode ser transmitida pelo constituto possessório”.

No constituto possessório, o possuidor de uma coisa em nome próprio passa a possuí-la em nome alheio. Exemplo clássico é o que se verifica quando o alienante conserva a coisa em seu poder mediante cláusula contratual denominada cláusula constituti. O adquirente, assim, recebe a coisa por mera convenção, sem posse física. O alienante apenas deixa de possuir para si mesmo e passa a possuir em nome do adquirente, ou seja, converte sua posse em detenção, sem nenhum ato exterior que ateste essa mudança. Parte da doutrina diz que também se configura o constituto possessório quando o alienante que tinha posse plena passa a ter posse direta, como nos casos do locatário, do comodatário ou do depositário. Tal posição, exata somente para a teoria subjetiva da posse, parece não se ajustar ao nosso sistema objetivo, porque, para nós, o locatário, o comodatário e o depositário também são possuidores, com todos os efeitos inerentes à posse, salvo a usucapião, porque lhes falta o animus domini. Em termos diversos, o constituto possessório, nos exemplos citados anteriormente, não seria modo de aquisição ou perda da posse, mas apenas de mudança de categoria da posse, de posse plena para posse direta. Por isso é que, ao tratarmos o constituto possessório como modo cie aquisição e de perda da posse, o mais correto é restringi-lo aos casos em que o alienante se converte de possuidor em detentor, passando a possuir em nome alheio. Operação inversa ocorre na traditio brevi manu, pela qual o possuidor de uma coisa em nome alheio (detentor - fâmulo, ato de permissão ou tolerância), ou com mera posse direta (locatário, comodatário, usufrutuário etc.), passa a possuir ou em nome próprio ou com posse plena, sem necessidade de se promover ato físico de entrega da coisa. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.153-54. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 09/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Em sua doutrina, Ricardo Fiuza passa a impressão de desagrado e desconformidade ao citar “A alteração a que se procedeu no texto original do anteprojeto, modificando a sua redação, suprimindo a referência ao constituto possessório, foi providência, no mínimo, infeliz, que está a merecer reparo legislativo urgente, sem contar com outros aspectos de ordem técnica doutrinária que não podem passar despercebidos, em face da importância do dispositivo e da reformulação implementada com a reforma do Código.” E continua: “Em primeiro lugar, a posse não se adquire pelo “exercício” do poder, mas pela obtenção do poder de fato ou poder de ingerência socioeconômica sobre um determinado bem da vida que, por sua vez, acarreta a abstenção de terceiros em relação a este mesmo bem (fenômeno dialético).” Portanto, basta que se adquira o poder de fato em relação a determinado bem da vida e que o titular deste poder tenha ingerência potestativa socioeconômica sobre ele, para que a posse seja efetivamente adquirida. Ademais, para se adquirir posse, não se faz mister o exercício do poder; basta a possibilidade de exercício. Não se pode prescindir é da existência do poder de ingerência.

Em segundo lugar, é importante fazer a referência ao instituto jurídico do constituto possessório neste CC 1.204, excluído acertadamente do atual CC 1.205, que versa apenas sobre os sujeitos da aquisição (diferentemente do que se verificava no CC de 1916, Art. 494, que mesclava formas distintas de aquisição), mas eliminado sem razão do dispositivo em questão, para não se correr o risco de fazer crer (erroneamente). Aos mais afoitos, que ele teria desaparecido do sistema material. Por outro lado, a sua não inclusão neste dispositivo, por si só, não teria o condão de do sistema, sobretudo porque aparece mencionado em outros dispositivos do Livro dos Direitos Reais, e porque também, na qualidade de instituto jurídico milenar transcende tal circunstância. De qualquer sorte, é de boa técnica e sistematização adequada que exista previsão normativa específica no Titulo 1 (Da Posse), a respeito do constituto possessório, prevenindo-se quaisquer dúvidas sobre tão importante matéria. • Ademais, não se pode ainda esquecer de que se trata de instituto jurídico que encontra grande aproveitamento nos dias de hoje, notadamente nas relações contratuais envolvendo a posse (v.g., arrendamento mercantil, leasehold, leaseback, leasing etc.).

Por último, veja-se, a esse respeito, a redação do CC 1.223 sobre a “perda da posse”, cujo teor vai justamente ao encontro do nosso entendimento (CC 1.223. Perde-se a posse quando cessa, embora contra a vontade do possuidor, o poder sobre o bem, ao qual se refere o CC 1.196).  Em outros termos, o que se há de propor é a manutenção da redação primitiva do texto do anteprojeto, com pequenas alterações, tendo-se em conta que atende a melhor técnica jurídica e redacional.  Constituto possessório é o instituto jurídico que se verifica quando o possuidor na qualidade de absoluto (posse própria e plena), transfere a outrem a posse absoluta indireta (ou própria e mediata) e reserva para si a posse relativa direta (não-própria imediata). O constituto possessório não se presume (clausula constituti). É forma de aquisição e perda da posse. É instituto muito utilizado também para obtenção rápida de capital de giro (working capital), à medida que se convertem os custos de ocupação em aluguel (leaseback).

Sugestão legislativa: Pelas razões antes expostas, oferecemos ao Deputado Ricardo Fiuza a seguinte sugestão: CC 1.204. Adquire-se a posse de um bem quando sobre ele o adquirente obtém poderes de ingerência, inclusive pelo constituto possessório. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 620-21, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 09/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

No lecionar de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, é como registro imobiliário do título de transferência que se opera a aquisição da propriedade imobiliária, inter vivos, de acordo com a sistemática civil pátria (CC 1.245). no que tange à posse, em geral, a prova desta aquisição não se viabiliza, por se tratar de uma mera situação fática, ainda que sob a proteção do direito. Assim sendo, a posse tem início, do ponto de vista legal, a partir da manifestação de quaisquer dos atos que representem a exteriorização do domínio, praticados em nome próprio. Isso é importante, pois não são considerados atos tipicamente possessórios aqueles realizados por detentor, qual seja, aquele que exerce atos de posse, subordinado às ordens ou determinações de terceiros.

De fato, para efeito da contagem do prazo de ano e dia, previsto no art. 558 do CPC/1973, (relacionado aos atuais artigos 932, II, 995, 1.019 do CPC/2015), há de se obter um critério único para a delimitação do início da posse, e este se concretiza pelo exercício de atos típicos de quem pareça ser proprietário, embora não o seja, já que, pela teoria objetivista (CC 1.196), possuidor é aquele que procede, em relação à coisa, como o dono habitualmente o faria.

Não se exige mais a apreensão da coisa, nem o fato de se dispor da coisa ou do direito – na dicção da codificação civil anterior – para a caracterização da titularidade possessória, bastando, agora assim, o simples exercício da posse em nome próprio. Enunciado 301 do Conselho da Justiça Federal: “É possível a conversão da detenção em posse, desde que rompida a subordinação, na hipótese de exercício em nome próprio dos atos possessórios”. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 09.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 1.205. A posse pode ser adquirida

I – pela própria pessoa que a pretende ou por seu representante;
II – por terceiro sem mandato, dependendo de ratificação.

No lecionar de Francisco Eduardo Loureiro, Mais uma vez, a redação deste artigo do Código Civil é sensivelmente superior à do art. 494 do revogado Código de 1916. A primeira melhoria diz respeito à eliminação do constituto possessório como uma das hipóteses de legitimação à aquisição da posse. Como foi visto anteriormente, tal figura é uma forma ou um meio de aquisição ou perda da posse, na qual o alienante representa o adquirente na posse, encaixando-se portanto na hipótese do inciso II do CC 1.505 do novo livro.

Podem adquirir a posse, segundo o inciso I do artigo em exame, a própria pessoa que a pretende, ou o seu representante. No caso da própria pessoa, podem adquirir tanto a pessoa natural como a pessoa jurídica, esta mediante atuação de seus órgãos. Não podem adquirir a posse, portanto, as pessoas jurídicas irregulares, porque não são dotadas de personalidade. Já no que se refere às pessoas naturais, cabe uma distinção: se a posse é adquirida por simples ato jurídico de apreensão, desprovido de vontade negociai, pode o incapaz realizá-la por si, independentemente de representação. São os casos do estudante que apreende livros, ou da criança que se apossa de um brinquedo. São atos-fato, em que não se cogitam os requisitos de validade do CC 104. Caso, porém, a posse seja adquirida por negócio jurídico, o incapaz somente pode adquiri-la por atuação de seu representante.

No caso da posse adquirida por representante, bem andou o legislador ao não mencionar, porque dispensável, a figura do procurador, como fazia o Código de 1916. A representação, na dicção do CC 115, pode ser legal ou convencional. Logo, tanto podem o pai, o tutor e o curador adquirir a posse da coisa em nome do filho, do pupilo e do curatelado como o procurador em nome do representado. Note-se que o corpus é do representante, que, porém, age em nome de representado e com o animus exercido em proveito deste. O representante, então, tem a mera detenção, porque age em nome do representado, este o verdadeiro possuidor. A expressão “adquirir a posse por representante” abrange também diversas atividades jurídicas de cooperação, sem a conotação estrita cio instituto da representação previsto nos CC 115 e seguintes. Claro que pode a aquisição da posse dar-se pela atuação jurídica em nome de outrem, sobre o qual devem recair os efeitos negociais. Mesmo aqueles não instituídos de poderes para praticar atos em nome do representado podem adquirir a posse em nome alheio. É o caso da detenção dependente, em que não há propriamente representação, mas uma incumbência, um vínculo jurídico que faz alguém atuar em proveito de outrem ou em cooperação com outrem, como o empregado e o preposto sem poder de representação.

Finalmente, dispõe o inciso II deste artigo que a posse pode ser adquirida por terceiro sem mandato, dependendo de ratificação. É o caso do gestor de negócios, em que uma pessoa age no interesse de outra, sem ter recebido essa incumbência. Note-se que o gestor age espontaneamente, sem conhecimento do dono do negócio, mas a ratificação retroage ao começo da gestão e produz todos os efeitos do mandato. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.155-56. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 09/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Pouca ou nenhuma expansão na doutrina de Ricardo Fiuza, quando além da hipótese de sucessão universal, por ato entre vivos, adquire-se a posse diretamente pela pessoa natural que pretende atingir esse escopo, ou por terceiro com mandato (seu representante) ou sem mandato, dependendo de ratificação sua. Tratando-se de pessoa jurídica, por atos praticados por seus representantes legais. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 622, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 09/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Na concepção de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, quando a própria pessoa interessada exerce atos de posse, diz-se que se trata de posse originária, pois que não advém de qualquer relação jurídica anterior ou título determinado. É o exercício físico e genérico do interessado sobre a coisa que caracteriza a posse propriamente dita. De igual forma, pode haver posse originária (e justa), em relação àquele que planta em imóvel do qual não tem a propriedade, desde que não se caracterize atos de esbulho.

O representante legal, ou procurador, também pode adquirir a posse pessoalmente e, posteriormente, transmiti-la ao representado. Mas pode adquiri-la, de igual forma, em nome do representado, sendo deste a deliberação no que diz respeito ao corpus e ao animus. Como se vê, exige-se a manifestação de vontade tanto do representante quanto do representado.

Tal representação se dá em casos de menores ou incapazes em geral (art. 3º), quando se confunde, por derivação legal, a vontade do incapaz com a do seu representante. Por ser uma situação meramente de fato (vontade natural), não é preciso a manifestação pessoal do incapaz. De observar-se, igualmente, que não há necessidade de instrumento de mandato para que alguém exerça a posse em nome de outro, sendo suficiente, tão somente, a existência de tal encargo ou múnus.

Já o nascituro, por ter apenas uma expectativa de direito, de caráter provisório, e não se titular de direitos subjetivos, não poderá ser considerado possuidor. A posse também pode ser adquirida pela figura do gestor de negócios, ou seja, aquela pessoa que administra sem autorização, negócios alheios, sendo realizada independentemente de mandato. Trata-se de uma procuração presumida, uma vez que o gestor procura fazer exatamente aquilo que o dono do negócio faria, se fosse necessária uma procuração expressa. Exige-se, neste caso, uma ratificação posterior, que retroage à data do ato praticado pelo terceiro.

Enunciado 77 do Conselho de Justiça Federal: “A posse das coisas móveis e imóveis também pode ser transmitida pelo constituto possessório”. Enunciado 236 do Conselho de Justiça Federal: “Considera-se possuidor, pata todos os efeitos legais, também a coletividade desprovida de personalidade jurídica”. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 09.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 1.206. A posse transmite-se aos herdeiros ou legatários do possuidor com os mesmos caracteres.

Como aponta Francisco Eduardo Loureiro, o artigo em questão nada alterou, na substância, o que continha o art. 495 do Código Civil de 1916. Tem o preceito estreita ligação com outros dispositivos que tratam da conservação e transmissão da posse, como os CC 1.203, 1.207 e 1.212, do Código Civil de 2002. No Direito romano, a posse era intransmissível. Os Códigos modernos, porém, consagraram o princípio da saisina - le mort saisit le v if-, de modo que, com a morte do possuidor, a posse transmite-se imediatamente e sem necessidade de apreensão da coisa pelos herdeiros. A transmissão da posse é ex lege, em razão única do título da sucessão hereditária.

Note-se que este artigo não trata do momento em que se transmite a posse, porque engloba as figuras dos herdeiros legítimos ou testamentários, que recebem a título universal, e dos legatários, que recebem a título singular. É sabido que ao herdeiro se aplica o instituto da saisina e que este, num segundo momento, entrega a posse dos legados ao legatário. No que se refere às qualidades da posse que se transmite, porém, é irrelevante tratar-se de herdeiro ou legatário.

Na transmissão da posse por ato causa mortis, denominada successio possessionis, a posse do de cujus incorpora-se na posse dos herdeiros e legatários com todos os seus caracteres. Se tinha o defunto posse direta/indireta, posse justa/injusta, posse de boa-fé/má-fé, posse ad interdicta/ad usucapionem, as mesmas qualidades, os mesmos vícios ou limitações terão os herdeiros e legatários. Até mesmo a ignorância dos herdeiros e legatários quanto a eventuais vícios não é levada em conta se o defunto os conhecia.

Há continuação da posse do antecessor, de modo que o herdeiro simplesmente fica no lugar do defunto, como se fossem uma só pessoa. A posse se transmite como um todo, com os elementos objetivo e subjetivo que tinha o defunto. Disso decorre que herdeiros e legatários podem invocar a posse que tinha o defunto para ajuizar ações possessórias que este poderia propor, assim como para somar prazo necessário à usucapião. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.155-56. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 09/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Historicamente, o dispositivo em tela tinha a seguinte redação, quando da remessa do anteprojeto à Câmara dos Deputados: “A posse transmite-se aos herdeiros do possuidor com os mesmos caracteres, no momento de sua morte”. Quando da primeira votação pela Câmara, por meio de emenda do Deputado João Castelo, o dispositivo ganhou a redação atual, não tendo sido atingido por qualquer outra espécie de modificação, seja da parte do Senado Federal, seja da parte da Câmara dos Deputados, no período final de tramitação do projeto.  A emenda procurou restaurar a redação do CC de 1916. Segundo o autor, era desnecessário acrescentar a expressão “no momento de sua morte”, uma vez que, pelo princípio dominante no direito das sucessões, a herança se transmite com a morte. No caso, ao falar-se em herança, já está patente a configuração da morte do possuidor.  Redação praticamente idêntica à do art. 495 do CC de 1916.

Fiuza em sua doutrina, aponta que o caráter ou natureza da posse mantém-se inalterado durante o período de permanência com seu titular, transmitindo-se aos herdeiros e legatários, tal como ocorria precedentemente. Recebendo-a, o sucessor, a título universal dá continuidade à posse de seu antecessor com os mesmos caracteres previamente estabelecidos (successio possessionis). Logo, se a posse padecia de algum vício objetivo ou subjetivo, assim permanecerá com o seu sucessor. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 622, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 09/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Em Direito.Com, Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira fala sobre o artigo tratar-se da ideia do transpasse do direito de posse do falecido para seus beneficiários (herdeiros e legatários), em relação aos bens do acervo hereditário, na condição de titulares legítimos desse exercício fático, trazendo a noção, ainda, de que a posse mantém seu caráter inalterado durante o exercício de seu titular, assim prosseguindo quando de sua morte. Desta forma, ocorrendo a transmissão hereditária, o sucessor universal herdará a posse com os mesmos caracteres que vigorava anteriormente; se possuía vicia, assim será mantida. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 09.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Direito Civil Comentado - Art. 1.201, 1.202, 1.203 Do Direito das Coisas - VARGAS, Paulo S. R.


Direito Civil Comentado - Art. 1.201, 1.202, 1.203
Do Direito das Coisas - VARGAS, Paulo S. R.
- Livro IIITítulo I – Da Posse (Art. 1.196 ao 1.368)
Capítulo I – Da Posse e Sua Classificação
(Art. 1.196 a 1.203)digitadorvargas@outlook.com

Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.

Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.

Bem responsável o comentário de Francisco Eduardo Loureiro quanto à redação do CC 1.201 ao mencionar a expressão da boa-fé comportar dois significados distintos no Código Civil de 2002, de modo que, para evitar equívocos, deve vir acompanhada dos designativos “objetiva” ou “subjetiva”. A boa-fé objetiva, prevista como cláusula geral nos CC 113 e CC 422 do Código Civil de 2002, é uma norma de conduta, consistente num padrão mínimo de comportamento ético e leal, de modo a não defraudar a confiança, as justas expectativas que os atos e negócios jurídicos despertam na contraparte. É a boa-fé princípio.

A boa-fé subjetiva, ou crença, é um estado de ignorância dos vícios que atingem determinada situação jurídica. No caso específico da posse, é a ignorância dos vícios ou dos obstáculos impeditivos à aquisição da coisa. Vê-se que a figura é concebida de modo negativo, como ignorância e não como convicção. Má-fé tem aquele que conhece tais obstáculos, aquele que tem a consciência da ilegitimidade de seu direito. Boa-fé tem aquele que desconhece, que ignora a origem ilícita da posse.

Discute-se, sobre a caracterização da boa-fé subjetiva, se basta a ignorância do vício (concepção psicológica), ou, em vez disso, é exigível que o estado de ignorância seja desculpável (concepção ética). O melhor entendimento, até para evitar que a pessoa mais previdente sofra as consequências negativas de conhecer aquilo que ignora o relapso, é que somente o erro escusável é compatível com a boa-fé. Vê-se, portanto, que a boa-fé está intimamente ligada à causa de possuir, ao título em razão do qual se possui. Está assentada no desconhecimento do vício que existe no título, quer quanto à sua substância, quer quanto à sua forma.

Pressuposto lógico para a configuração da má-fé é a consciência da existência de vícios. Logo, a posse justa é sempre posse de boa-fé, na ausência de vícios a serem conhecidos. A posse injusta é que pode ser de boa ou de má-fé, dependendo da soma dos vícios objetivo e subjetivo. Nosso direito adotou o sistema canônico, de modo que não basta a boa-fé no momento da aquisição da posse, mas se exige a continuidade de tal qualidade. No exato momento em que cessa a boa-fé, porque o possuidor passa a conhecer o vício que afeta a sua posse, ces­sam ex nunc os efeitos benéficos da situação anterior, tais como a percepção de frutos, a indenização por benfeitorias ou o direito de retenção. A má-fé superveniente, porém, não tem o condão de afetar as vantagens pretéritas hauridas quando ainda se ignorava o vício, que continuam a regular-se pelas regras da posse de boa-fé.

De igual modo, a usucapião ordinária (CC 1.242) exige boa-fé do possuidor durante todo o lapso temporal necessário para a aquisição do domínio. Não se contenta o legislador, portanto, apenas com a boa-fé inicial, mas deve esta persistir até a consumação da prescrição aquisitiva. O único efeito que escapa à regra da persistência da boa-fé é aquele previsto no CC 1.211, qual seja, que o possuidor que desconhecia a origem ilícita da posse no momento de sua aquisição não está sujeito à ação possessória, mas somente à petitória. O Código Civil de 2002 eliminou a expressão final do art. 490 do Código anterior, que aludia a obstáculo impeditivo da aquisição do “direito possuído”, reforçando, mais uma vez, a ideia de que o direito pode gerar posse, mas a posse não tem por objeto direitos, mas coisas.

O parágrafo único deste artigo cria presunção relativa de boa-fé para o possuidor com justo título. É relativa porque pode ser destruída por prova, a cargo de quem pretende retomar a coisa, de que o possuidor, apesar de munido de justo título, conhecia os vícios de sua posse, ou, então, quando a própria lei não admitir a presunção. O termo justo título não é unívoco no Código Civil. Para efeito do dispositivo em exame, é uma causa jurídica que justifica a posse, é a sua razão eficiente. Pode ser justo título, por exemplo, tanto um compromisso de compra e venda como um contrato de locação, ou de comodato, ainda que verbal. Basta que a relação jurídica dê causa legítima à posse.

Note-se que para efeito de usucapião ordinário, como veremos adiante no comentário ao CC 1.242, a expressão justo título tem outro significado, qual seja o título potencialmente hábil para transmissão da propriedade, mas que não o faz pela existência de vício substancial ou formal. Vê-se, portanto, que o comodatário e o locatário têm justo título para efeito de presunção e boa-fé, mas não para gerar usucapião ordinária. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.148-49. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 08/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Segundo Ricardo Fiuza em sua Doutrina, considerando-se os contornos legais estabelecidos, a boa-fé significa o estado de subjetividade (animus) em que se encontra o possuidor, correspondente ao desconhecimento de qualquer dos vícios (violência, clandestinidade ou precariedade) ou obstáculos (permissão ou tolerância), impeditivos à aquisição da posse. Esse desconhecimento em ofender o direito alheio exclui a possibilidade de culpa grave, aqui considerada no sentido de erro inescusável ou grosseira ignorância. 

Tendo-se em conta que a posse justa respeita à inexistência de vício objetivo (causa possessionis = origem ou título da posse), a posse de boa-fé tem pertinência à ausência de defeito subjetivo (desconhecimento da relação viciosa antecedente). Justo título há de ser compreendido, antes de mais nada, desvinculado da ideia de “documento”, tendo-se em conta que posse é situação pertencente ao mundo fático, desvinculada, portanto, do mundo jurídico. Assim, a concepção de justo título deve estar ligada àquela de causa ou modo de aquisição eficiente da posse (causa possessionis). Todavia, isso não significa que não possa estar representado por um “título” (documento) — escritura publica ou particular. Da mesma forma, não se deve confundir justo título com título legítimo; o primeiro não é título hábil à transferência da posse ou propriedade, revestindo-se de simples aparência de título legítimo, ou seja, é o titulo que seria apto à transferência da posse, mas não que de fato o seja. Diverso é o título legítimo, que se reveste de todos os requisitos objetivos (formais) e subjetivos capazes de resultar na efetiva transferência da posse. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 619, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 08/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Atente-se para a lição de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira: (1) a conduta proba e reta do agente diante dos atos jurídicos, em geral, é uma regra principiológica, consagrada pelo Direito, explicitada pela boa-fé objetiva. (2) Já a boa-fé no estudo da posse tem uma perspectiva particular, de caráter subjetivo, pois a sua existência faz gerar consequências específicas e vantajosas ao possuidor. A boa-fé observada na posse é tida, então, como subjetiva. (3) É considerada de má-fé a posse daquele que tem ciência da ilegitimidade de seu direito, ou seja, daquele que adquire a posse com plena noção de que o faz mediante alguns dos vícios que a maculam, conhecendo os obstáculos à sua justa ocupação. (4) Ato inverso, o Código Civil conceitua, no CC 1.201, a posse de boa-fé quando o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa. Melhor dizendo, age de boa-fé aquele que tem a convicção de que procede na conformidade das normas (Mário, 2004, p. 30). (5) A boa-fé deve existir desde o momento em que se originou a posse, devendo assim manter-se enquanto ela perdura, até quando ficar demonstrado com o possuidor não mais ignorar a existência de obstáculos, como reza o CC 1.202. (6) Assim, se alguém, sem o saber, celebra contrato de compra e venda com determinada pessoa que não seja seu verdadeiro titular, dela recebendo a posse, considera-se esta como de boa-fé (Ulhoa, 2006, p. 22). (7) Por outro ângulo, o possuidor que tenha justo título tem em seu favor a presunção de boa-fé. (8) Justo título é aquele documento hábil, em tese, para transferir a propriedade, como o compromisso de compra e venda. Assim, portando o possuidor um título justo, será havido como possuidor de boa-fé, ficando dispensado de qualquer prova, cabendo à parte contrária, isto sim, demonstrar os vícios porventura existentes (Fulgêncio, 1994, p. 41). Trata-se, pois, de uma presunção relativa, ou juris tantum. (9) Caso o possuidor venha a adquirir um imóvel por escritura devidamente registrada, sendo, posteriormente, anulado o registro imobiliário por sentença judicial, por ser outro o verdadeiro titular do bem (venda a non domino), a posse deste adquirente deve ser tida de boa-fé, dada a existência de seu justo título. (10) Justo título é aquele que seria hábil, em tese, para transmitir o domínio e a posse – aptidão externa do título – caso não houvesse um obstáculo ou vício impeditivo desta transferência, como no caso de venda de pessoa que se verifica, posteriormente, ser incapaz, sem assistência ou representação. (11) Por fim, é aquele documento teoricamente apto para transferir o domínio, mas que, no caso concreto, não foi capaz de gerar tal transferência, por elementos ignorados pelo adquirente, frustrando-se, destarte, a aquisição definitiva. (12) Enunciado 303 do Conselho da Justiça Federal: “Considera-se justo título para presunção relativa de boa-fé do possuidor o justo motivo que lhe autoriza a aquisição derivada da posse, esteja ou não materializado em instrumento público ou particular. Compreensão na perspectiva da função social da posse”. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 08.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 1.202. A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente.

Na posição de Francisco Eduardo Loureiro, a boa-fé é a ignorância do vício que macula a posse. É um estado de espírito do possuidor, um elemento interior, cuja prova nem sempre é fácil. Por isso, o legislador preocupa-se com os sinais, as evidências e presunções de boa-fé. Vimos no comentário ao parágrafo único do CC 1.201 que o possuidor com justo título tem a seu favor a presunção relativa de boa-fé. O justo título, porém, não é requisito para a posse de boa-fé. O desconhecimento do vício funda-se, via de regra, em um erro de fato ou de direito. Se há uma razão jurídica que justifique a posse, o erro, a princípio, será escusável, nascendo daí a presunção relativa de boa-fé.

 Não havendo justo título, ainda assim cabe ao retomante demonstrar a má-fé do possuidor. Essa prova, porém, torna-se mais fácil, decorrente, segundo a dicção do artigo em exame, das circunstâncias indicativas do conhecimento do vício pelo possuidor. Quais são essas circunstâncias? Clóvis Bevilaqua dá vários exemplos, como a confissão do possuidor de que nunca teve título, nulidade manifesta do título e existência de instrumentos repugnantes à legitimidade da posse em poder do possuidor.

A posse de boa-fé pode transmudar-se em posse de má-fé, tendo como marco o momento em que as circunstâncias do caso concreto indiquem o conhecimento dos vícios. Constituem marcos dessa mudança em especial a citação cm processo judicial ou notificação formal ao possuidor, quer judicial, quer extrajudicial. Nada impede, porém, que se faça, ainda que por testemunhas, prova de que conhecia o possuidor os vícios que afetavam a sua posse.

Questão interessante é saber se a citação em ação judicial movida pelo retomante contra o possuidor implica necessariamente a posse de má-fé. Via de regra sim, porque será, na pior das hipóteses, o marco da ciência dos vícios que afetam a situação jurídica. Em casos especiais, nos quais houver fundada dúvida sobre a legitimidade da posse, pode a boa-fé persistir após a citação. Basta que o possuidor, apesar de ciente do pleito judicial, confie na qualidade de sua posse, não admitindo, por sólidas razões, os argumentos do retomante. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.148-49. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 08/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Historicamente, o dispositivo em tela não foi alvo de qualquer espécie de alteração, seja por parte do Senado Federal, seja por parte da Câmara dos Deputados , no período final de tramitação do projeto. A redação atual é a mesma do Anteprojeto, cujo Livro III, referente ao Direito das Coisas, ficou à cargo do eminente jurista Ebert Vianna Chanoun.  O dispositivo encontra o seu correspondente no Art. 491 do CC de 1916.

Na doutrina de Ricardo Fiuza, várias são as circunstâncias que fazem presumir o desaparecimento da boa-fé: segundo Beviláqua, as principais são as seguintes: a) confissão do possuidor de que não tem nem nunca teve título; b) nulidade manifesta do título; c) existência de instrumentos repugnantes à legitimidade da posse, em poder do possuidor (Direito das coisas, 5. ed., Rio de Janeiro, Forense, v. 1, p. 45); d) contestação da demanda (cf. Carvalho Santos, CC interpretado, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1979, v. VII, p. 49-50; e Washington de Barros Monteiro, Curso de direito civil, São Paulo, Saraiva, 1979, v. VIII); e) citação judicial (sem perder de vista a observação feita por Lafayette Pereira no sentido de que o réu pode receber a comunicação e julgá-la infundada na crença — boa-fé — de que o bem lhe pertence (cf. Direito das coisas, São Paulo, Freitas Bastos, 1943, v. 1).

Os efeitos práticos dessa questão concernem às benfeitorias, frutos, direito de retenção e prescrição aquisitiva. Para que os efeitos revertam positivamente em prol do possuidor, faz-se mister que a posse seja adquirida com boa-fé e que essa circunstância perdure durante todo o tempo. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 620, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 08/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Pela cartilha de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, (1) Muito embora possa ter adquirido a posse sem conhecimento de vícios ou obstáculos, fato é que perderá a boa-fé aquele possuidor que tomar conhecimento, posteriormente, da existência de circunstâncias impeditivas de seu direito à aquisição do bem. (2) De fato, transforma-se em má-fé aquela posse na qual o possuidor, por alguma circunstância apurável, toma conhecimento de obstáculos à sua livre aquisição. É a denominada mudança jurídica ao caráter da posse, adotada em nosso sistema em homenagem ao direito canônico, que exige que a boa-fé durante todo o tempo, para que a posse se configure como justa. (3) Há alguma dificuldade para se determinar, com precisão, o momento da transformação do caráter da posse, e isso se dá, em verdade, não no momento em que o possuidor passa a ter conhecimento do vício ou obstáculo, mas sim quando as circunstâncias façam presumir que o possuidor não mais ignora tais impeditivos. São, pois, circunstâncias objetivas que irão esclarecer tal transformação (Gomes, 1980, p. 43). (4) Efetivamente, quando o possuidor for citado judicialmente, na condição de réu, em sede de ação possessória ou reivindicatória, por parte do legítimo possuidor ou proprietário, restará caracterizado, a partir daí, o fim da condição de possuidor de boa-fé, adquirindo plena ciência de obstáculos à sua posse. São elementos objetivos que fazem gerar uma presunção de que o atual possuidor tem plena ciência de que outra pessoa é o titular do bem do qual se apossou. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 08.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 1.203. Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida.

Como comentado anteriormente por Francisco Eduardo Loureiro, possível é a alteração do caráter da posse, mediante conversão da posse de boa-fé em posse de má-fé, ou vice-versa, bem como da posse justa em posse injusta, ou vice-versa. A questão é como se opera essa alteração. Diz textualmente o artigo em exame que se presume manter a posse o mesmo caráter original. Via de consequência, aquele que alegar a alteração das qualidades positivas e negativas da posse tem a seu cargo o ônus de demonstrá-la. A presunção, como se extrai do preceito, é relativa, comportando, portanto, prova em sentido contrário.

É sabido que, segundo antigo preceito, netno sibi ipse causam possessionis (ninguém pode mudar por si mesmo a causa da posse). O termo causa da posse é usado aqui em sentido lato, abrangendo também a figura da detenção. Dizendo de outro modo, não basta o elemento anímico, interior, psicológico, para mudar o caráter da posse, escoimando-a de eventuais vícios de origem, quer subjetivos, quer objetivos, ou, então, alterar a detenção para posse. Dizia Ihering que a vontade é sem força diante da causa da posse.

Importante lembrar que causa da posse, aqui, não é somente o seu motivo jurídico, mas também o seu modo de estabelecimento, previsto pelo direito. É por isso que até mesmo a posse injusta tem uma causa, embora ilícita. As principais características da posse, que a dividem em classificações diversas - justa/injusta, de boa-fé/má-fé, ad interdicta/ad usucapionem, direta/indireta -, têm estreita relação com a causa pela qual se possui, quer jurídica, quer pelo modo de estabelecimento. É por isso que, para alterar tais características, é necessário, como pressuposto lógico, alterar também a causa, a razão pela qual se possui. Vem daí a regra preconizada por Astolpho Rezende segundo a qual, “em matéria possessória, a vontade do possuidor é sem valor em frente da regra objetiva de direito” (A posse e sua proteção, 2. ed. São Paulo, Lejus, 2000, p. 263). Essa alteração da causa pode dar-se como decorrência de uma relação jurídica ou por mudança ostensiva do comportamento fático do possuidor.

Como alteração decorrente de causa jurídica, tome-se como exemplo o caso do possuidor violento ou precarista que adquire a coisa ou a recebe em comodato, convertendo a posse injusta em justa. No mesmo exemplo, se a posse era além de injusta também de má-fé, será agora justa e de boa-fé, em razão da falta de vícios a ser conhecidos. De igual modo, o locatário que tinha apenas posse direta e adquire a coisa passa a ter posse plena, uma vez que concentra em suas mãos todos os poderes típicos do proprietário, desaparecendo o dever de restituição da coisa ao antigo possuidor indireto. Note-se que a face exterior da posse permanece a mesma, já que o possuidor continua com o poder imediato sobre a coisa. O que mudou foi a razão pela qual possui, retirando da posse determinadas qualidades negativas, ou limitações, e fazendo nascer qualidades positivas, ou alargando os poderes sobre a coisa. Desapareceu a razão determinante para a caracterização do esbulho, qual seja a aquisição da posse contra a vontade do ex-possuidor.

Como decorrência do comportamento objetivo do possuidor, na lição de Nelson Rosenvald, a alteração se dá desde que haja manifestação por “atos exteriores e prolongados do possuidor da inequívoca disposição de privar o proprietário da coisa” (Direitos reais, 2. ed. Niterói, Impetus, 2003, p. 246). Na verdade, a mudança do comportamento fático não é suficiente para alterar todos os caracteres da posse, mas somente alguns. A mudança de comportamento, assim, não converte a posse injusta em justa. Enquanto perdurarem a violência e a clandestinidade, nem posse haverá, mas mera detenção. Quando cessar a violência e a clandestinidade (ver comentário ao CC 1.208) iniciar-se-á a posse injusta, que não se converte em justa somente pelo fato de a pacificidade ou a publicidade persistirem. No caso, a alteração do comportamento tem apenas o condão de transformar detenção em posse injusta, mas não é suficiente para retirar da posse o vício original. De igual modo, a posse precária não deixa de sê-lo pela simples mudança de comportamento do precarista, ainda que deixe de reconhecer a sua condição de comodatário ou de locatário, por exemplo. Basta lembrar que o esbulhado pode, ocorrendo tal fato, pedir a retomada judicial da coisa, prova maior de que permanece a posse injusta. Confira-se, a respeito, o Enunciado n. 237 da III Jornada de Direito Civil 2004: “Art. 1.203: É cabível a modificação do título da posse - interversio possessionis - na hipótese em que o até então possuidor direto demonstrar ato exterior e inequívoco de oposição ao antigo possuidor indireto, tendo por efeito a caracterização do animus domini'.

A relevância da mudança fática do comportamento do possuidor reflete-se apenas nos caracteres da posse de ad interdicta para ad usucapionem. Assim, aquele que deixa de praticar atos violentos ou torna a posse pública, tirando-a da clandestinidade, mantém os vícios de origem, que não podem ser apagados pela conduta posterior do possuidor, mas gera, apesar disso, posse útil para usucapião, desde que preenchidos os demais requisitos previstos em lei (prazo, continuidade, ânimo de dono etc.). A reação do esbulhado é possível, mas, se não o fizer em determinado prazo, perderá o domínio por usucapião.

No que se refere à posse precária, embora a doutrina tradicional insista na posição de que o vício não convalesce, a questão está na verdade deslocada. A posse realmente continua precária, porque o vício não se apaga, tanto que o esbulhado pode retomar a coisa. Apesar de precária, desde que ocorram circunstâncias especialíssimas, entre as quais que o precarista não mais reconheça a supremacia do direito do esbulhado, deixando isso claro e inequívoco, a posse poderá converter-se de meramente ad interdicta em ad usucapionem. O que mudou com o comportamento de fato do possuidor não foi a origem ilícita da posse, mas o animus. Apesar de continuar injusta, se o possuidor não mais reconhece a superioridade do direito do esbulhado de reaver a coisa, o que mudou com o novo comportamento foi o nascimento do animus domini, requisito que faltava para iniciar o prazo útil de usucapião. Remete-se o leitor ao que já se expôs na parte final do comentário ao CC 1.200, assim como ao que se explanará no comentário ao CC 1.208, adiante. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.159-60. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 08/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Em sua doutrina, Ricardo Fiuza circunstancia limitadamente a presença legal “salvo prova em contrário” – presunção Juris tantum é no sentido de que se violenta a posse, assim haverá de ser mantida indefinidamente; se adquirida com má-fé, igualmente. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 620, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 08/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Tampouco estendendo-se Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, (1) Não há contradição entre o disposto nos CC 1.208 e CC 1.203, pois esse dispositivo traz em si uma presunção relativa, que poderá ceder na existência de prova em contrário, ou seja, alguns vícios de posse podem vir a cessar, desde que presente uma circunstância que a justifique.

Apresentando-se o Enunciado 237 do Conselho da Justiça Federal: “É cabível a modificação do título de posse – interversio possessionis – na hipótese em que o até então possuidor direto demonstrar ato exterior e inequívoco de oposição ao antigo possuidor indireto, tendo por efeito a caracterização do animus domini”. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 08.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Direito Civil Comentado - Art. 1.200 - continua Do Direito das Coisas - VARGAS, Paulo S. R.


Direito Civil Comentado - Art. 1.200 - continua
Do Direito das Coisas - VARGAS, Paulo S. R.
- Livro III – Título I – Da Posse (Art. 1.196 ao 1.368)
Capítulo I – Da Posse e Sua Classificação
(Art. 1.196 a 1.203)digitadorvargas@outlook.com

Art. 1.200. É justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária.

Atenção para a fundamentação de Francisco Eduardo Loureiro: A posse é justa quando não marcada pelos vícios da violência, clandestinidade e precariedade. É injusta, por exclusão, quando presentes quaisquer dos vícios acima citados. O Código Civil, seguindo a trilha do CC/1916, cataloga os vícios da posse, o que causa situações desconfortáveis ao intérprete. Melhor seria se seguisse o sistema alemão, para o qual a posse será viciada sempre que adquirida contra a vontade do possuidor, ressalvados os casos em que a lei autoriza o desapossamento (§ 858 do BGB - Código Civil Alemão). A jurisprudência, sentindo a dificuldade de lidar com a enumeração dos vícios da posse, alarga as hipóteses, para chegar ao resultado prático preconizado por Marcus Vinicius Rios Gonçalves, qual seja, a posse, para o sistema brasileiro, é viciosa desde que obtida por esbulho, contra a vontade do possuidor anterior, por meios ilícitos, ainda que não se consiga a priori enquadrá-la em nenhuma das situações previstas no CC 1.200 do Código Civil (Gonçalves, Marcus Vinicius Rios. Dos vícios da posse. São Paulo, Oliveira Mendes, 1998, p. 50).

Causa possessionis: O que importa, para a caracterização dos vícios, é a razão, a forma de aquisição da posse (causa possessionis). A posse pode ter sido obtida de modo lícito ou ilícito. Quando adquirida por meio objetivo reprovado pelo direito, é posse viciada. Posse justa, portanto, é aquela cuja aquisição não repugna ao direito. Nada impede, porém, que uma posse nascida justa se converta em injusta, especialmente no que se refere ao vício da precariedade. De outro lado, como veremos adiante, a posse nascida injusta somente se converterá em justa se alterada a sua causa possessionis.

Os vícios da posse: A posse é violenta (vi) quando se adquire por ato de força, natural ou física (vis absoluta), ou ameaça (vis compulsiva). A violência física supõe a ausência de vontade daquele que foi usurpado. A ameaça, ou violência moral, deve ser séria e injusta, de modo que o usurpado entrega a coisa para não sofrer o mal prometido. Consequência disso é que não constituem atos de violência o exercício regular de um direito ou mesmo o temor reverenciai. Não pratica ato violento, por exemplo, aquele credor que, avisando o devedor que remeterá o título a protesto, ou ajuizará ação de cobrança, recebe dação em pagamento, com transferência da posse da coisa adquirida.

Questão difícil é saber se a posse adquirida por ameaça, para ser considerada injusta, exige prévia ação anulatória do ato por vício de consentimento (coação) ou, cm vez disso, admite o imediato ajuizamento de ação possessória para recuperar a coisa. O entendimento mais plausível é que, se a entrega da coisa não transmitiu também a propriedade, ou seja, se não se trata de execução de negócio jurídico que envolva a transmissão de domínio, cabe desde logo a ação possessória. Se, ao contrário, a entrega envolveu a transmissão da posse e do domínio, deve ser previamente desfeito o negócio jurídico, com pedido cumulativo de devolução da coisa alienada.

A violência estigmatiza a posse, ainda que exercida contra preposto do legítimo possuidor (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, 18. ed., atualizada por Carlos Edison Rego Monteiro Filho. Rio de Janeiro, Forense, 2002, v. IV, p. 23). A violência, para marcar a posse como injusta, deve ser praticada contra a pessoa do possuidor ou também contra a coisa? Embora haja controvérsia a respeito, é razoável que também a violência contra a coisa estigmatize a posse, ciado o seu caráter ilícito. À posse violenta se contrapõe a posse mansa e pacífica, ou tranquila, não só durante a aquisição como também durante a sua persistência, matéria que terá relevância para a usucapião. É claro que a resistência do possuidor legítimo à eventual turbação, ou esbulho, não torna injusta a posse. Nesse caso, a autotutela do possuidor molestado é lícita, amparada pelo CC 1.210, § Iº.

A posse é clandestina (clam) quando se adquire via processo de ocultamento em relação àquele contra quem é praticado o apossamento (Pereira, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 23). É um defeito relativo: oculta-se da pessoa que tem interesse em retomar a posse, embora possa ser ela pública para os demais. Na violência, retira-se o poder de reação do possuidor, que conhece a agressão à sua posse. Na clandestinidade, o possuidor não percebe a violação de seu direito, e por isso não pode reagir. Questão relevante é saber se para cessar a clandestinidade deve o esbulhado ter ciência inequívoca de que a coisa acha-se nas mãos do possuidor injusto ou, em vez disso, basta que o novo possuidor não mais oculte sua conduta. O melhor entendimento é que não há necessidade de que a vítima tenha efetivo conhecimento do esbulho, mas que o esbulhador torne possível à vítima conhecê-lo (Pinto, Nelson Luiz. Ação de usucapião. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1987, p. 107-8). Torna-se pública a posse quando nasce para a vítima a possibilidade de conhecer o esbulho.

É fundamental lembrar que, nos exatos termos do CC 1.208, não autorizam a aquisição da posse os atos violentos e clandestinos, enquanto perdurar a violência e a clandestinidade. Enquanto perduram os ilícitos, há mera detenção. Somente quando cessam é que nasce posse, mas injusta, porque a sua origem é ilícita. A matéria será mais bem abordada adiante, no comentário ao CC 1.208.

E precária (precário) a posse quando o possuidor recebe a coisa com a obrigação de restituí-la e, abusando da confiança, deixa de devolvê-la ao proprietário, ou possuidor legítimo. O vício inicia-se no momento em que o possuidor se recusa a devolver o bem a quem de direito. A posse, que era justa, torna-se injusta. Torna-se injusta não porque mudou somente o animus do possuidor, mas porque mudou a causa, a razão pela qual se possui. Tome-se como exemplo o comodato. A posse é justa durante o prazo convencionado, porque há uma razão jurídica que justifique a posse, vale dizer que a sua causa é lícita. Expirado o prazo convencional, a posse que era justa torna-se injusta, porque houve quebra do dever de restituição, desapareceu a razão jurídica que amparava a posse e praticou o possuidor, agora precário, ato ilícito contra o ex possuidor.

Via de regra, a posse precária nasce da posse direta, no momento em que há quebra do dever de devolução da coisa. A posse direta não é precária, porque a sua causa é lícita, entregue que foi pelo possuidor indireto. Enganam-se, assim, aqueles que dizem que as posses do locatário, ou do comodatário, ou do credor pignoratício são precárias. Na verdade, são posses diretas e justas, que se tornarão precárias no exato momento em que houver quebra do dever de restituir.

A relatividade dos vícios: Os vícios da posse são relativos. A posse é injusta em relação àquele de quem foi havida por meio ilícito. Em relação a terceiros a posse é justa, pela simples razão de que, contra eles, nenhum ato ilícito se praticou. Dizendo de outro modo, os vícios da posse só podem ser arguidos pela vítima, a quem cabe a faculdade de reaver a coisa pela autotutela ou pelos interditos possessórios. Não fosse assim, aquele que obteve a posse pela violência poderia ter a coisa tomada por terceiros pelo mesmo modo, em verdadeira propagação de ilícitos, o que repugna a ordem jurídica.

A purgação dos vícios: No que se refere à temporariedade ou perpetuidade dos vícios, a doutrina tradicional diz que a clandestinidade e a violência são temporários, mas o vício da precariedade nunca convalesce (Rodrigues, Sílvio. Direito civil, 27. ed. São Paulo, Saraiva, 2003, v. V, p. 29). Há nessa posição um erro de perspectiva. Como foi visto acima, enquanto perduram a violência e a clandestinidade, nem posse existe, mas mera detenção. Quando cessam é que nasce a posse injusta. A posse injusta somente se converte em justa se se mudar o que ela tem de ilícito, ou seja, a sua causa. Logo, somente com a inversão da causa possessionis, da razão pela qual se possui, é possível a conversão da posse injusta em justa, porque se retira a ilicitude de sua origem. Tome-se como exemplo o caso do possuidor clandestino, violento ou precário que consegue com a vítima um prazo para a desocupação da coisa, mediante contrato de comodato. A posse que era injusta converteu-se em justa, porque mudou a sua causa.

O que gera confusão na doutrina e na jurisprudência são os efeitos da posse injusta. Causa espécie que a posse injusta possa gerar benefícios a quem praticou um ato ilícito. A mácula dos vícios, na verdade, acarreta ao esbulhador uma consequência negativa fundamental: a possibilidade de perder a coisa para o esbulhado, que pode retomá-la pela autotutela ou usando os interditos possessórios. Gera, porem, a posse injusta efeitos positivos para o possuidor, como a tutela possessória perante terceiros ou mesmo em decorrência de um ato ilícito da vítima, para evitar a disseminação de novos atos ilícitos. Se o possuidor estiver de boa-fé, sua posse, apesar de viciada, gerará inúmeros outros efeitos em relação ao esbulhado, como indenização por benfeitorias, ou percepção de frutos.

Questão a ser enfrentada é se a posse injusta pode ser ad usucapionem. Alguns autores dizem que a posse deve convalescer, ou ter purgados os vícios, para gerar usucapião. Não é bem assim. As posses violenta e clandestina, na verdade, somente nascem quando cessam os ilícitos. Enquanto perduram, são simples detenção. O que se exige é que durante o prazo necessário à usucapião não haja atos violentos ou clandestinos, embora a posse seja injusta, porque a sua causa original é ilícita. Prova intuitiva e maior disso é que, se alguém invadir com violência uma gleba de terras e, cessada a reação do esbulhado, permanecer por mais quinze anos sem ser molestado, terá usucapião, apesar da injustiça original de sua posse.

Diz-se que a posse precária nunca gera usucapião. Na verdade, é ela imprestável para usucapião não porque é injusta, mas porque o precarista não tem animus domini, uma vez que reconhece a supremacia e o melhor direito de terceiro sobre a coisa. Caso, porém, não reconheça ou deixe de reconhecer essa posição e revele isso de modo inequívoco e claro ao titular do domínio, para que este possa reagir e retomar a coisa, nasce, nesse momento, o prazo para usucapião, porque o requisito do animus domini estará então presente. Na lição de Lenine Nequete, há uma inversão da causa da posse, “mas os fatos de oposição, por seu turno, devem ser tais que não deixem dúvida quanto à vontade do possuidor de transmudar a sua posse precária em posse a título de proprietário e quanto à ciência que dessa inversão tenha tido o proprietário: pois que a mera falta de pagamento de locativos ou outras circunstâncias semelhantes das quais o proprietário não possa concluir claramente a intenção de se inverter o título não constituem atos de contradição eficazes” (Da prescrição aquisitiva, 3. ed. Porto Alegre, Ajuris, p. 123). Lembre-se de que o CC 1.238, que trata da usucapião extraordinário, não exige posse justa e dispensa expressamente a boa-fé. A alusão à falta de boa-fé só tem sentido se a posse for injusta, porque a boa-fé nada mais é do que a ignorância dos vícios que maculam a posse.

Presume-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida, salvo prova em contrário (CC 1.203). Pode ser convertida a posse injusta em justa e vice-versa, mediante a interferência de uma causa diversa, mas o ônus dessa inversão cabe ao possuidor. A só vontade do possuidor, porém, não altera o caráter viciado da posse. Há necessidade de inversão do título, com alteração do fundamento jurídico, ou ato manifesto de contradição, como visto acima. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.144-47. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 04/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Há um histórico que diz: O dispositivo em tela não foi atingido por qualquer espécie de modificação, seja da parte do Senado Federal, seja da parte da Câmara dos Deputados, no período final de tramitação do projeto. A redação atual é a mesma do anteprojeto. Idêntica à redação conferida ao art. 489 do CC de 1916.

Fatiada, a Doutrina de Ricardo Fiuza mostra que o conceito de posse justa (ou injusta) não se confunde com aquele definido no CC 1.228 do NCC (Art. 524 do CC de 1916). Em sede possessória, a concepção de injustiça ou justiça da posse restringe-se aos três vícios que a maculam (stricto sensu), enquanto, no que concerne à propriedade, a expressão é empregada para designar todas a situações (e não apenas aqueles vícios) que repugnam ao mais amplo direito real.

São as circunstancias do mundo fático, definidas nesse dispositivo, que maculam a aquisição da posse, tornando-a injusta e mantendo-a com essas mesmas características, indefinidamente, salvo prova em contrário.

Caracteriza-se o vício por ser inerente ao momento da aquisição da posse em relação ao novo titular. Assim, a posse pode ser viciosa por motivos objetivas (em consequência do fato que lhe deu origem), ou subjetivos (em face do conhecimento da mácula).

Posse injusta não se confunde jamais com má-fé.

Violência é a maneira de consecução o do ato espoliativo mediante constrangimento físico ou moral praticado contra o possuidor ou contra quem possui em nome dele. Configura-se pela utilização da força física (armada ou não), ou por intermédio da vis compulsiva. Prescinde de confronto material ou tumulto entre as partes conflitantes (possuidor e esbulhador.

Clandestinidade - o vício que se manifesta pela ocultação do ato espoliativo, de forma que o possuidor não tenha conhecimento dele. Não é suficiente o desconhecimento do ato, fazendo-se necessário que a posse tenha sido tomada às escondidas e com emprego de manobras tendentes a deixar o possuidor em determinada posição de efetivo não conhecimento do esbulho. Assim, se o esbulhador não agiu ocultamente, em que pese o possuidor desconhecer a prática do ato por qualquer motivo, o vício da clandestinidade, neste caso, não se configura.

Precariedade configura-se como vício da posse, nas relações em que o sujeito tem consigo, anteriormente, um bem a título precário e recusa-se a devolvê-lo ao legítimo possuidor, quando requerido ou chegando o momento oportuno. Resulta de um abuso de confiança por parte daquele que previamente recebera a coisa do possuidor, assumindo o compromisso (tácito ou expresso) de restituí-la em certo momento, ou quando se verificasse determinada condição ou termo. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 618-19, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 04/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Totalmente esclarecedora a versão do CC 1.200 no conceito de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, destrinchando cada item do artigo em comento, veja:

Posse justa é aquela que não for violenta, clandestina ou precária, i. é, para definir o que seja posse justa, o legislador abordou os principais vícios que maculam a posse, que não poderão subsistir (nec vim, nec clam, nec precário). Assim, será justa a posse que for obtida de forma mansa e pacífica, ou seja, de forma normal.

Posse violenta é aquela obtida mediante o emprego da força, utilizando-se da força física direta, ou mediante séria ameaça à vida do possuidor ou de sua família, pela utilização de arma de fogo ou outro meio hábil, assim como a ruptura de obstáculos. A lei não faz distinção entre a violência física ou moral. Trata-se, assim, de ato praticado que impede o poder físico do possuidor sobre a coisa.

Posse clandestina é a obtida às escondidas daquele que antes a detinha e continuará como clandestina enquanto for desconhecida do verdadeiro titular. Trata-se de uma situação oposta à publicidade, pois que obtida longe das vistas alheias, com emprego de manobras capazes de deixar o antigo possuidor em situação de absoluta ignorância.

A posse clandestina é considerada como um vício relativo, pois que se oculta, apenas, da pessoa que tem interesse em defender a coisa diretamente, mesmo que seja pública em relação às demais pessoas. Tanto a violência quanto a clandestinidade são tidas como vícios relativos, que somente podem ser acusadas pela própria vítima; em relação às demais pessoas, a posse produz seus efeitos normais (Mário, 2004, p. 28-29).

Posse precária é a que se origina no abuso de confiança, como na hipótese de alguém receber determinada coisa mediante a condição de restituição, com prazo determinado ou não, acabando por recusar-se a devolver o bem. É o que sucede no caso de fâmulo na posse (detenção), que tem o dever de restituir a coisa quando demandada pelo verdadeiro titular.

Tal vício, consistente no abuso de confiança, tem início no momento exato em que o possuidor a título precário se recusa a restituir o bem àquele que o detinha anteriormente, e prossegue sem termo certo para findar, ou seja, até que se restabeleça o status quo ante, pela efetiva restituição. Aqui não há, necessariamente, violência, e tampouco vinculação automática com a clandestinidade.

Na hipótese de posse injusta, o possuidor não poderá utilizar-se dos interditos possessórios contra aquele que a detinha anteriormente, mas tão-somente contra terceiros, estranhos à relação. Isto porque a violência e a clandestinidade são vícios relativos, que se projetam somente em relação à pessoa vitimada pelo ato; em relação às demais pessoas, aquela posse é tida como justa. Nada impede que uma posse, tida inicialmente por injusta, possa vir, posteriormente, a se tornar uma posse justa, ou jurídica, mediante uma causa posterior, como no caso daquele que a tomou com violência vir a comprar do antigo titular (Mário, 2004, p. 29).

Enquanto perdurar a situação de violência e da clandestinidade não haverá situação possessória (Alvim, 2003, p. 79-80). Haverá, tão-somente, detenção, conforme disposto no CC 1.208.

A precariedade difere-se da violência e da clandestinidade, quanto ao momento de sua ocorrência: estes dois vícios ocorrem no momento da aquisição da posse, ao passo que a precariedade se dá em momento posterior, quando da recusa do tomador em restituir o bem ao possuidor indireto.

A clandestinidade poderá cessar posteriormente, desde que o esbulhador não mais oculte sua posse daquele que foi esbulhado, tomando este pleno conhecimento do fato, deixando de opor qualquer resistência. Não se exige, destarte, a demonstração cabal desta circunstância, bastando que existam as condições normais para que esta tenha ciência daquela posse viciada. Idêntico raciocínio se aplica à posse violenta, a qual, independentemente do tempo decorrido, se convola em posse justa.

Com a cessação dos vícios da violência e clandestinidade, haverá a transmudação da situação de detenção para posse jurídica. O mesmo não sucede em relação à posse precária, pois se trata de uma situação única, em que o possuidor precário já tinha a posse anterior da coisa, alterando apenas o animus, transfigurando-se, pois, em posse injusta pela recusa na restituição (Gonçalves, 2006, p. 72).

Quando a posse violenta ou clandestina prorrogar-se por mais de ano e dia, o possuidor poderá ser mantido provisoriamente na posse, por força do Art. 924 do CPC/1973, (correspondendo hoje ao art. 558 caput e parágrafo único do CPC/2015), contra o antigo titular. Não há um convalescimento da posse injusta em justa, mas uma proteção provisória ao atual possuidor, em decorrência do lapso temporal.

Da mesma forma, a posse justa poderá se transmudar em posse injusta, como no caso de posse recebida por contrato (desde que não seja de locação) com a aquisição posterior de um dos vícios apontados, em face da inadimplência do possuidor (TJ-SP, Ap. Cível 31.770-4).

Não há contradição entre o disposto nos CC 1.208 e CC 1.203, pois este dispositivo traz em si uma presunção relativa, que poderá ceder na existência de prova em contrário, ou seja, alguns vícios de posse podem vir a cessar, desde que presente circunstância que a justifique.

Enunciado 302 do conselho da Justiça Federal: “Pode ser considerado justo título para a posse de boa-fé o ato jurídico capaz de transmitir a posse ad usucapionem, observado o disposto no CC 1.133”. (Até aqui Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 04.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).