quarta-feira, 15 de abril de 2015

MANUAL DE PROCESSO PENAL – DA PERSECUÇÃO – DO INQUÉRITO – DA INVESTIGAÇÃO PREPARATÓRIA, POLÍCIA, DIVISÃO, POLÍCIA DE SEGURANÇA, POLÍCIA CIVIL, DO INQUÉRITO POLICIAL, FINALIDADE DO INQUÉRITO, INQUÉRITOS EXTRAPOLICIAIS, COMPETÊNCIA, INDISPENSABILIDADE DO INQUÉRITO, NATUREZA DO INQUÉRITO, INCOMUNICABILIDADE - VARGAS DIGITADOR.

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – Capítulo 7 – DA PERSECUÇÃO – DO INQUÉRITO – DA INVESTIGAÇÃO PREPARATÓRIA, POLÍCIA, DIVISÃO, POLÍCIA DE SEGURANÇA, POLÍCIA CIVIL, DO INQUÉRITO POLICIAL, FINALIDADE DO INQUÉRITO, INQUÉRITOS EXTRAPOLICIAIS, COMPETÊNCIA, INDISPENSABILIDADE DO INQUÉRITO, NATUREZA DO INQUÉRITO, INCOMUNICABILIDADE -   VARGAS DIGITADOR.

Da investigação preparatória

Dispões o inc. XXXV do art. 5º da Constituição Federal que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Se não pode excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, infere-se que a lei não pode atribuir o julgamento de uma causa a outras pessoas que não integrem o Poder Judiciário, porquanto, se isso fosse possível, a referida causa estaria sendo excluída da apreciação do Poder Judiciário, cujos órgãos estão previstos, implícita ou explicitamente, na Lei Maior. Podemos então afirmar: somente os Órgãos Jurisdicionais é que podem julgar e compor os litígios: nulla poena sine judice (nenhuma pena poderá ser imposta senão pelo Juiz). É verdade que a própria Constituição atribui o poder de julgar a outro órgão que não o Judiciário. É o caso do Senado Federal, no julgamento dos crimes de responsabilidade cometidos por aquelas pessoas referidas no art. 52 da CF. Mas a Constituição pode excepcionar a si própria...

Por  outro lado, se ninguém pode ser privado da sua liberdade e de seus bens sem o devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF), e esse é o processo segundo estabelece a lei, se aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ele inerentes (art. 5º, LV, da CF), se ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente (art. 5º, LIII, da CF), se ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (art. 5º, LVII, da CF), é sinal de que ninguém pode ser punido sem que haja um processo, observando-se aquele due process of law. Tal princípio implica defesa ampla, regular contraditório, duplo grau de jurisdição, igualdade das partes. Como o Estado Soberano, titular do direito de punir, por razões analisadas anteriormente, autolimitou tal direito, é claro que, quando alguém transgride a norma penal incriminadora, sua punição somente se efetivará por meio do processo. E, para que isso ocorra, é preciso que o Estado-Administração leve a notícia daquele fato ao conhecimento do Estado-Juiz (apontando-lhe o respectivo autor), a fim de que, apreciando-o, declare se procede ou improcede, se é fundada ou infundada a pretensão estatal.

O Estado, para tanto, desenvolve intensa atividade que se denomina persecutio criminis, principalmente por meio da Polícia Judiciária ou Polícia Civil (segundo a terminologia da Constituição da República) e depois pelo Ministério Público, instituições por ele criadas para, preferentemente, exercerem tal função, personificando o interesse da sociedade na repressão às infrações penais. Assim, é o órgão do Ministério Público quem leva ao conhecimento do Juiz, por meio da denúncia, o fato se reveste de aparência delituosa, apontando o seu autor, a fim de que o Juiz possa verificar se deve, ou não, puni-lo, e, de outra banda, é a Polícia Civil quem leva ao conhecimento do Ministério Público a notícia desse fato delituoso, com a indicação do respectivo responsável.

Polícia

O vocábulo polícia, do grego politeia – de polis (cidade) – significou, a princípio, o ordenamento jurídico do Estado, governo da cidade e, até mesmo, a arte de governar. Em Roma, o termo politia adquiriu um sentido todo especial, significando a ação do governo no sentido “de manter a ordem pública, a tranquilidade e paz interna”; posteriormente, passou a indicar “o próprio órgão estatal incumbido de zelar sobre a segurança dos cidadãos”. Esse o seu sentido atual.

Divisão

Quanto ao lugar onde desenvolve sua atividade, a Polícia pode ser terrestre, marítima ou aérea. Quanto à exteriorização, ostensiva ou secreta, conforme desenvolva sua atividade ostensiva ou secretamente. Quanto à organização, pode ser leiga ou de carreira. Finalmente, quanto ao seu objeto, costumam os autores distinguir a Polícia em Administrativa, de Segurança e Judiciária. A primeira é aquela que tem por objeto “as limitações impostas a bens jurídicos individuais”, limitações essas que visam assegurar “completo êxito da administração”. Como exemplo de Polícia Administrativa, podemos citar a Polícia Aduaneira, a Polícia Rodoviária e a Polícia Ferroviária Federal de que tratam os §§ 2º e 3º do art. 144 da Lei Maior.

Polícia de Segurança

Já a Polícia de Segurança tem por objetivo as medidas preventivas, visando à não-alteração da ordem jurídica. Ela age com certo poder discricionário, isto é, com poderes mais ou menos amplos, sem as limitações impostas pela lei. Não se confunda discricionariedade com arbitrariedade; esta encerra o abuso do poder, prepotência, condenados por lei.

Polícia Civil

Mas, enquanto a Polícia de Segurança visa a impedir a turbação da ordem pública, adotando medidas preventivas, de verdadeira profilaxia do crime, a Polícia Civil intervém quando os fatos que a Polícia de Segurança pretendia prevenir não puderam ser evitados... ou, então, aqueles fatos que a Polícia de Segurança nem sequer imaginava pudessem acontecer...

Até então, a Polícia incumbida dessa tarefa era denominada Polícia Judiciária. Esse é o nome que lhe empresta o CPP. Todavia, a Constituição Federal, no art. 144, § 4º, dispõe que: “Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”. Logo, para a Constituição, Polícia Civil é a incumbida de elaborar o inquérito, enquanto Polícia Judiciária é a destinada a cumprir as requisições dos Juízes e membros do Ministério Público, como se infere do art. 13 do diploma processual pena. Sem embargo, o uso já consagrou a denominação de Polícia Judiciária não só para a que elabora os inquéritos como à que realiza as requisições de Juízes e Promotores.

A Polícia Civil (ou Judiciária, como é mais conhecida) tem, assim, por finalidade investigar as infrações penais e apurar a respectiva autoria, a fim de que o titular da ação penal disponha de elementos para ingressar em juízo, como bem o diz o art. 4º do CPP.

Do inquérito policial

Inquérito policial é um conjunto de diligências realizadas pela Polícia Civil ou Judiciária (como a denomina o CPP), visando a elucidar as infrações penais e sua autoria.

A Polícia Civil exerce aquela atividade, de índole eminentemente administrativa, de investigar o fato típico e apurar a respectiva autoria. É o conceito que se infere do art. 4º do CPP. Contudo, o art. 144, § 1º, IV, e § 4º, da CF distinguem as funções de apurar as infrações penais e as de Polícia Judiciária. Já que houve tal distinção, é lícito afirmar, nos termos do § 4º do art. 144 da Lei Maior, que às Polícias Civis, dirigidas por Delegados de Polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de investigar as infrações penais e sua respectiva autoria, bem como (e aqui teríamos a Polícia Judiciária) fornecer às Autoridades Judiciárias as informações necessárias à instrução e julgamento dos processos; realizar as diligências requisitadas pela Autoridade Judiciária ou Ministério Público; cumprir os mandados de prisão expedidos pelas autoridades competentes; representar ao Juiz no sentido de ser decretada a prisão preventiva ou  temporária; representar ao Juiz no sentido de se proceder ao exame de insanidade mental do indiciado; cumprir cartas precatórias expedidas na área da investigação criminal; colher a vida pregressa do indiciado; proceder à restituição, quando cabível, de coisas apreendidas, realizar as interceptações telefônicas, nos termos da Lei n. 9.296, de 24-71996 etc.

Finalidade do inquérito

Pela leitura de vários dispositivos do CPP, notadamente o 4º e o 12, há de se concluir que o inquérito visa à apuração da existência de infração penal e à respectiva autoria, a fim de que o titular da ação penal disponha de elementos que o autorizem a promovê-la. Apurar a infração penal é colher informações a respeito do fato criminoso. Para tanto, a Polícia Civil desenvolve laboriosa atividade, ouvindo testemunhas, tomando declarações da vítima, procedendo a exames periciais, nomeadamente os de corpo de delito, exames de instrumento do crime, determinando buscas e apreensões, acareações, reconhecimentos, ouvindo o indiciado, colhendo informações sobre todas as circunstâncias que circunvolveram o fato tido como delituoso, buscando tudo, enfim, que possa influir no esclarecimento do fato. Apurar a autoria significa que a Autoridade Policial deve desenvolver a necessária atividade visando a descobrir, conhecer o verdadeiro autor do fato infringente da norma.

Inquéritos extrapoliciais

O inquérito, de regra, é policial, isto é, elaborado pela Polícia Civil. Todavia o parágrafo único do art. 4º do CPP estabelece que “a competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função”. Observa-se, desse modo, que o dispositivo invocado deixa entrever a existência de inquéritos extrapoliciais, isto é, elaborados por autoridade outras que não as policiais, inquéritos esses que têm ou podem ter a mesma finalidade dos inquéritos policiais.

Há entendimento no sentido de que o art. 144, § 4º, da CF não mais permite seja o inquérito, nas infrações penais comuns, presidido por outra autoridade que não a policial. De fato, assim dispõe o citado parágrafo: “Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”. A vingar a tese, são inconstitucionais os arts. 43 do Regimento Interno do STF e 58 do Regimento Interno do STJ.

O preceito constitucional, a nossa aviso, quis, apenas e tão-somente, dizer o que compete à Polícia Civil. O que o referido preceito quis, também, foi excluir aqueles delegados que não eram de carreira, muito comum nos Estados do Norte e Nordeste, onde Cabos e Sargentos da PM, até hoje, normalmente, exercem as funções de Polícia Civil. Se por acaso a Constituição dissesse que a competência para apurar as infrações penais comuns e sua autoria passaria a ser privativa da Polícia civil, por óbvio as críticas teriam cabimento.

Aliás, quando da promulgação da Lei Complementar n. 40/81 (antiga Lei Orgânica do Ministério Público), houve muita gente que afirmou que os Delegados e Juízes não mais poderiam dar início ao processo, tal como permitido pelo art. 531 do CPP, pela simples razão de o art. 3º daquele diploma dizer ser “função institucional do Ministério Público a propositura da ação penal pública”... E o Supremo Tribunal Federal pôs as coisas no seu devido lugar com a edição da Súmula 601: “Os arts. 3º, II, e 55 da Lei Complementar n. 40/81 (Lei Orgânica do Ministério Público) não revogaram a legislação anterior que atribui a iniciativa para a ação penal pública, no processo sumário, ao Juiz ou à Autoridade Policial, mediante Portaria ou Auto de Prisão em Flagrante”...

Assim, nos crimes contra a saúde pública, em determinadas infrações ocorridas nas áreas alfandegárias, têm as autoridades administrativas poderes para elaborar inquéritos que possam servir de alicerce à denúncia. É muito comum o próprio INSS investigar infrações que lhe digam respeito, p. ex., falta de repasse pelas empresas das contribuições descontadas dos empregados e que deveriam ser recolhidas àquela autarquia. Feita a investigação, é ela remetida ao Ministério Público Federal. Se este entender serem necessários outros esclarecimentos, requisita-os à Polícia Feral. Nas Prefeituras Municipais são corriqueiras essas investigações que servem de base à denúncia. Não importa o nome que se lhes dê, “investigação”, “sindicância”, “inquérito administrativo”...

Temos também os inquéritos policiais militares, conhecidos pela sigla IPM. Tais inquéritos nada mais são do que investigações levadas a cabo pelas autoridades militares para apurar a existência de crime da alçada da Justiça Militar e suas respectivas autorias.

Tratando-se de infração cometida por um membro do Ministério Público, as investigações tramitam sob a presidência do Procurador-Geral ou outro Procurador por ele designado (art. 40, parágrafo único, da Lei n. 8.625, de 12-2-1993). Tratando-se de Magistrado, compete à Presidência do Tribunal a que estiver vinculado designar um dos seus membros para a investigação (art. 33 da Lei Complementar n. 35/79 – Lei Orgânica da Magistratura Nacional). Veja-se ainda, e a propósito, a Súmula 397 do STF.

A Lei n. 1579, de 18-3-1952, dispõe sobre as Comissões Parlamentares de Inquérito, que, como o nome está a indicar, procedem a investigações de maior vulto, e, caso a Comissão constate a existência de crime da alçada da Justiça Comum, pode o órgão do Ministério Público, com base naqueles inquéritos parlamentares, praticar o ato instaurador da instância penal, isto é, oferecer denúncia. Cabe esclarecer que a Lei n. 10.001, de 4-9-2000, dispõe sobre a prioridade nos procedimentos a serem adotados pelo MP e por outros órgãos a respeito das conclusões das comissões parlamentares de inquérito.

Temos ainda o inquérito civil criado pela Lei n. 7.347, de 24-7-1985. Tal inquérito, presidido pelo órgão do Ministério Público, tem por objetivo colher elementos para a propositura da ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

Competência

A expressão “competência”, aqui, é empregada no sentido de poder atribuído a um funcionário de tomar conhecimento de determinado assunto. A quem cabe a presidência do inquérito? Normalmente, à Autoridade Policial. Em alguns casos, não. Vejam-se, a propósito: a) o art. 41, parágrafo único, da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei n. 8.625, de 12-2-1993); b) o art. 43 e respectivo parágrafo do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal; c) a Súmula 397 do Supremo Tribunal Federal; d) o art. 33 da Lei Complementar n. 35, de 14-3-1979 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional); e e) o art. 58 do Regimento Interno do STJ.

Salvante esses casos, excluída a ressalva feita pelo parágrafo único do art. 4º do CPP, e deixando de lado os inquéritos extrapoliciais (militar, parlamentar), a competência para a realização de inquéritos policiais é distribuída a autoridades próprias, de acordo com as normas de organização policial dos Estados. Todos os Estados são divididos em municípios e em cada um deles o Estado mantém um número variável de Delegados para aí exercerem suas funções. Nas grandes cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro e outras, o município, em face da sua vastidão, é dividido em áreas denominadas distritos e em cada um deles atua certo número de autoridades policiais. Tratando-se de infração da alçada federal (art. 109 da CF), a competência é dos Delegados Federais, que exercem suas atividades dentro de áreas maiores, denominadas seções ou subseções, abrangentes de vários municípios.

O inquérito é indispensável?

O inquérito policial é peça meramente informativa. Nele se apuram a infração penal com todas as suas circunstâncias e a respectiva autoria. Tais informações têm por finalidade permitir que o titular da ação penal, seja o Ministério Público, seja o ofendido, possa exercer o jus persequendi in judicio, isto é, possa iniciar a ação penal.

Se essa é a finalidade do inquérito, desde que o titular da ação penal (Ministério Público ou ofendido) tenha em mãos as informações necessárias, isto é, os elementos imprescindíveis ao oferecimento de denúncia ou queixa, é evidente que o inquérito será perfeitamente  dispensável. Vejam-se, a propósito, os art. 12, 39, § 5º, e § 1º do art. 46, todos do CPP.

E não é só: o art. 27 do CPP dispões que qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério Público, fornecendo-lhe, por escrito, informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção.

Contudo, normalmente, essas informações chegam às mãos do titular da ação penal por meio do inquérito policial. Pode-se então afirmar: ele é necessário, mas, como vimos, não absolutamente indispensável.

Natureza do inquérito

O inquérito policial tem natureza administrativa. São seus caracteres: ser escrito (art. 9º do CPP), sigiloso (art. 20 do CPP) e inquisitivo, já que nele não há o contraditório. É verdade que o inc. LV do art. 5º da CF dispões que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os recursos a ela inerentes”. Nem por isso se pode dizer seja o inquérito contraditório. Primeiro, porque no inquérito não há acusado; segundo, porque não PE processo. A expressão processo administrativo tem outro sentido, mesmo porque no inquérito não há litigante, e a Magna Carta fala dos “litigantes em processo judicial ou administrativo...”. O inquérito é medida preparatória para o exercício da ação penal e, por sinal, dispensável, dês que o titular da ação penal disponha de elementos que o autorizem a ingressar em juízo. A garantia está destinada aos “processos administrativos” e inclusive às sindicâncias (com o objetivo de impor sanções) que tramitam pelos diversos órgãos da Administração Pública, como Prefeitura, INSS, DNER, Secretarias de Estado, Ministérios, Autarquias Federais, Empresas Públicas, Receita Federal etc. Ora, se o inquérito não tem finalidade punitiva, por óbvio não admite o contraditório. Certo que o mesmo texto da Lei Magna ainda se refere aos “acusados em geral”, assegurando-lhes “o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Há respeitável entendimento de que a expressão “acusados em geral” abarcaria também a figuras do “indiciado”, do “investigado”, do “suspeito”. Cremos, data venia, que não se lhe pode emprestar um sentido maior. De fato. O contraditório implica uma série de poderes que não se encontram, nem podem ser encontrados, no inquérito policial: formular reperguntas às testemunhas, arguir a suspeição da Autoridade Policial, ter o direito de requerer diligências que lhe interessem, não podendo sua realização ser mera faculdade da Autoridade Policial, recorrer dos atos da Autoridade Policial... Ademais, o princípio do contraditório, dogma constitucional, traduz o direito que têm as partes acusadora e acusada de se manifestarem sobre as alegações, atos e manifestações de qualquer delas. Se no inquérito não há acusação, mas a investigação, não se pode admitir contraditório naquela fase preambular da ação penal. Se por acaso o indiciado sofrer constrangimento ilegal na sua liberdade de locomoção, como prisão ilegal, inquérito sem fundamento, p. ex., fará jus ao remédio constitucional do habeas corpus. Ele (nem ninguém) não pode ser submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante. Se for preso em flagrante, ser-lhe-á assegurada a assistência de advogado. Obviamente, se ele quiser. O simples fato de a Autoridade Policial não ser obrigada a nomear um Advogado àquele que for preso em flagrante deixa bem claro não ser o inquérito contraditório, muito embora tenha ele acesso aos remédios jurídicos que façam respeitados os direitos que a Magna Carta lhe confere. Tem direito à liberdade provisória, nos casos previstos em lei, direito à fiança, quando permitida... Assim, se indiciado não é acusado, parece lógico que a expressão “e aos acusados em geral” não pode abranger quem não é acusado. Em face disso, é de entender que a expressão serve para abranger todo e qualquer acusado. Em face disso, é de entender que a expressão serve para abranger todo e qualquer acusado: no processo comum, no processo penal militar, na Lei de Imprensa, na Lei de Falências etc., bem como aqueles que são submetidos a sindicância ou a procedimento administrativo com caráter punitivo.

Embora o inquérito seja um procedimento administrativo, não tem caráter punitivo. Assim, a expressão “acusados em geral” não se estende aos “indiciados”.

Cumpre observar que o inquérito instaurado no Ministério da Justiça com vistas à expulsão de estrangeiro, como se infere dos §§ 4º e 7º do art. 103 da Lei n. 6.815/80, é contraditório. De posse dos dados fornecidos pelo Ministério Público (art. 101 do referido diploma), o Ministro da Justiça determinará a instauração de inquérito para a expulsão do estrangeiro. Notificado e comparecendo, será qualificado e interrogado, em seguida ser-lhe-á aberta vista dos autos para indicar defensor bem como as provas que desejar produzir... Mas, nesse caso, o inquérito tem caráter punitivo...

Incomunicabilidade

Incomunicabilidade é qualidade de incomunicável. Quando se diz que o indiciado está incomunicável, quer dizer-se: indiciado que não pode comunicar-se com quer que seja, salvo, é evidente, com as próprias autoridades incumbidas das investigações. É o que diz o parágrafo único do art. 21 do CPP.

Por outro lado, o art. 21, caput, estabelece:

“A incomunicabilidade do indiciado dependerá sempre de despacho nos autos e somente será permitida quando o interesse da sociedade ou a conveniência da investigação o exigir”.

A incomunicabilidade, evidentemente, era medida severa e, por isso mesmo, só poderia ocorrer quando o interesse da sociedade ou a conveniência da investigação estivesse a exigi-la.

A atual Constituição, entretanto, no Capítulo destinado ao Estado de Defesa e ao Estado de Sítio, proclama, no art. 136, § 3º, IV:

                    “É vedada a incomunicabilidade do preso”.


Ora, se durante o estado de defesa, quando o Governo deve tomar medidas enérgicas para preservar a ordem pública ou a paz social, ameaçadas pr grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza, podendo determinar medidas coercitivas, destacando-se restrições aos direitos de reunião, ainda que exercida no seio das associações, o sigilo da correspondência e o sigilo de comunicação telegráfica e telefônica, havendo até prisão sem determinação judicial, tal como disciplinado no art. 136 da CF, não se pode decretar a incomunicabilidade do preso (CF, art. 136, § 3º, IV), com muito mais razão não há de se falar em incomunicabilidade na fase do inquérito policial. Desse entendimento comunga Mirabete (Processo penal, 2 ed., Atlas, p. 92).

terça-feira, 14 de abril de 2015

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FONTES DO DIREITO PROCESSUAL PENAL- FONTES FORMAIS E SUBSTANCIAIS, DIRETAS, ORGÂNICAS, INDIRETAS, SECUNDÁRIAS, DIRETAS MEDIATAS OU REMOTAS, VARGAS DIGITADOR.

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – Capítulo 6 – FONTES DO DIREITO PROCESSUAL PENAL- FONTES FORMAIS E SUBSTANCIAIS, DIRETAS, ORGÂNICAS, INDIRETAS, SECUNDÁRIAS, DIRETAS MEDIATAS OU REMOTAS,  VARGAS DIGITADOR.

Sentido da palavra “fonte”

Já se disse que origem e fonte do Direito é a mesma coisa. Para o nosso estudo, entretanto, reservamos à expressão “fontes” do Direito o sentido de formas de exteriorização do Direito. Fonte do Direito, portanto, nada mais são do que as formas pelas quais as regras jurídicas exteriorizam-se; se apresentam. São, enfim, “modos de expressão do Direito”.

As fontes formais e substanciais

G. Battaglini distingue as fontes em formais e substanciais. Aquelas são maneiras de expressão da norma jurídica positiva. Estas constituem a matéria em que se busca o conteúdo do preceito jurídico. Assim, certos princípios universais como o neminem laedere – ninguém pode prejudicar outrem (negativo) são fontes substanciais (cf. Direito penal, trad. Paulo José da Costa Júnior e Ada Pellegrini Grinover. São Paulo, Saraiva, 1964, p. 37).

Classificação das fontes formais

Como classificá-las? Predominante a ideia de que se reduzem a duas: a lei e o costume. Outros ainda acrescentam a jurisprudência, a doutrina e os princípios gerais do Direito.

A lei é, realmente, a principal fonte do Direito. Grosso modo, é por meio da norma jurídica que o Direito se manifesta e se revela. É a principal fonte porque contém em si mesma a norma. Outras fontes, sem que contenham a norma, produzem-na indiretamente e, “otras la producen de una manera secundaria o incidental”.

Com esse entendimento, podemos classificar as fontes formais, de acordo com Miguel Fenech (Derecho procesal penal, Barcelona, Labor, 1952, p. 101), em diretas, que contêm em si a norma, e em supletivas, que são de duas ordens: “indiretas”, indiretas, que sem conterem a norma, produzem-na indiretamente, e “secundárias”, as que a produzem de maneira secundária ou incidental.

Modalidades das fontes diretas

As fontes diretas são constituídas pelas leis – entendendo-se estas em seu sentido mais amplo, isto é, como toda disposição emanada de qualquer órgão estatal na esfera de sua própria competência. Dentro das fontes diretas, fazem-se algumas divisões, atendendo-se à finalidade ou importância das normas processuais nelas contidas.

Desse modo, podemos classificar as fontes diretas em: a) fontes processuais penais principais (CF e CPP); b) fontes processuais penais extravagantes; c) fontes orgânicas principais; e d) fontes orgânicas complementares.

Interessam-nos, apenas, as fontes do Direito Processual Penal Comum.

As fontes processuais penais extravagantes são de duas espécies: complementares e modificativas. São fontes extravagantes complementares: a Lei n. 5.250, de 9-2-1967 (Lei de Imprensa); o Decreto-lei n. 201, de 27-2-1967 (crimes de responsabilidade dos Prefeitos municipais e respectivo processo); a Lei n. 1.079, de 10-4-1950 (crimes de responsabilidade de Preside da República e outras pessoas); a Lei n. 1.521, de 26-12-1951 (crime contra a economia popular); a Lei n. 4.898, de 9-12-1965 (abuso de autoridade); a Lei n. 11.343, de 23-8-2006 (Lei de Tóxicos), que não só define as figuras delituais penais como também estabelece regras para o respectivo processo e julgamento etc. Tais normas, em sua grande maioria, são aplicáveis a “setores que não foram compreendidos pelo Código de Processo Penal.”.

Como fontes extravagantes modificativas, e como tais se entendem as que “modificam, ampliam ou extinguem normas e preceitos do Código”, podemos citar: a Lei n. 1.408, de 9-8-1951 (sobre a contagem dos prazos); a Lei n. 263, de 23-2-1948 (sobre a instituição do Júri); a Lei n. 4.336, de 1º-6-1964 (que acrescentou o § 4º ao art. 600 do CPP); a Lei n. 5.941, de 22-11-1973 (que alterou a redação dos arts. 408 e 594 do CPP); A Lei in. 6.416, de 24-5-1977 (que alterou dispositivos sobre liberdade provisória); a Lei n. 8.035, de 27-04-1990 (sobre fiança); a Lei n. 8.038, de 28-5-1990 (sobre a ação penal originária da alçada do STF e do STJ e sobre o procedimento dos recursos extraordinário e especial); a Lei n. 8.072, de 25-7-1990 (sobre os crimes hediondos); a Lei n. 8.658, de 26-5-1993 (que revogou os arts. 556 a 562 do CPP); a Lei n. 9.099, de 26-9-1995 (que instituiu os Juizados Especiais Criminais); a Lei n. 7.492, de 16-6-1986, sobre crimes contra o sistema financeiro (permitindo à Comissão de Valores Imobiliários intervir, nesses crimes, como assistente da acusação e criando nova circunstância autorizadora da prisão preventiva – magnitude da lesão causada), a Lei n. 7.960, de 21-12-1989, dispondo sobre a prisão temporária; a Lei n. 10.259, de 12-7-2001, que instituiu o Juizado Especial Federal; a Lei n. 9.271, de 17-4-1996 (que deu nova redação aos arts. 366, 367, 368, 369 e 370 do CPP) etc.

Fontes orgânicas

Como fontes orgânicas principais, temos as leis de organização judiciária, porquanto “revelam, em grande parte, as regras pertinentes à nomeação, investidura e atribuições dos órgãos jurisdicionais e seus auxiliares”.

São fontes orgânicas complementares os Regimentos Internos dos Tribunais que contêm normas subsidiárias da legislação processual, como se constata pelos arts. 667, 666, 638 e 618 do CPP. Nesse rol se incluem os Regimentos Internos da Câmara Federal, do Senado e das Assembleias Legislativas, por força do que dispõem os arts. 38, 73 e 79 da Lei n. 1.079, de 10-4-1950 (Lei do impeachement).

Fontes indiretas

Fontes indiretas são aquelas que, embora não contenham a norma, produzem-na indiretamente. Assim, são considerados como tais: os costumes, a jurisprudência e os princípios gerais do Direito.

Fontes secundárias

As fontes secundárias, isto é, as que, sem conterem a norma, produzem-na de maneira secundária ou incidental, têm, também, sua importância. Têm tal qualidade o Direito histórico, o Direito estrangeiro, as construções doutrinárias nacionais ou alienígenas, que, inegavelmente, auxiliam a redação das leis, a sua interpretação e, às vezes, a própria aplicação da norma.

Fontes diretas mediatas ou remotas

A fonte direta remota do Direito Processual Penal pátrio é a legislação portuguesa: as Ordenações Afonsinas, Manuelinas, filipinas.

Proclamada a Independência do Brasil, surgiu a lei de 20-9-1823, determinando vigerem no País as Ordenações, leis, regulamentos, alvarás, decretos e resoluções promulgadas pelos reis de Portugal. A Constituição Imperial, no seu art. 179, XVIII, prometia ao povo brasileiro um Código Civil e um Criminal fundados nas sólidas bases da justiça e da equidade.

Em 1830, surgiu o Código Criminal, vindo a seguir, em 1832, o Código de Processo Criminal. Este diploma trouxe profundas modificações, destacando-se a extinção das devassas, a formação da culpa, que passou a ser pública, a instituição do habeas corpus.

Duas leis posteriores ao Código de Processo Criminal, tiveram repercussão: a de 3-12-1841 e a de 20-9-1871. A primeira, referindo-se, particularmente, às funções da Polícia e ampliando suas atribuições. A segunda, estabelecendo regras sobre fiança, criando o habeas corpus preventivo, estendo essa garantia, na sua feição liberatória ou preventiva, aos estrangeiros, e o inquérito policial, que, pela primeira vez, aparece com esse nomen juris.

Em 1889 modificou-se o regime político do Brasil. A Constituição de 1891 outorgou aos Estados-Membros a competência para legislarem sobre matéria processual civil e penal. Muitos Estados, senão a grande maioria, elaboraram seus estatutos processuais, e outros continuaram sendo regidos pelas leis imperiais (modificadas e completadas por sua legislação esparsa sobre Processo Penal), até que, em 1934, a Carta Política aboliu aquela prerrogativa dos Estados.

A competência para legislar sobre Direito Processual deslocou-se para a União. E, sem embargo daquela abolição, não se empreendeu a realização de um Código de Processo Penal. A Carta Magna de 1937 repetiu a exigência da anterior, e, assim, em 1941, surgiu o nosso atual CPP.


O CPP brasileiro, que começou a vigorar em 1º-1-1942, e que continua vigendo, é dividido em livros; estes, em títulos; os títulos, em capítulos e os capítulos, por sua vez, em artigos, com um total de 811 artigos.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

MANUAL DE PROCESSO PENAL – INTERPRETAÇÃO AUTÊNTICA, DOUTRINAL, JUDICIAL, GRAMATICAL, LÓGICA, SISTEMÁTICA, HISTÓRICA, EXTENSIVA E RESTRITIVA, PROGRESSIVA E ANALÓGICA - VARGAS DIGITADOR.

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – Capítulo 5 – INTERPRETAÇÃO AUTÊNTICA, DOUTRINAL, JUDICIAL, GRAMATICAL, LÓGICA, SISTEMÁTICA, HISTÓRICA, EXTENSIVA E RESTRITIVA, PROGRESSIVA E ANALÓGICA -   VARGAS DIGITADOR.

Noções

Interpretar a lei é descobrir ou revelar a vontade contida na norma jurídica ou, como diz Clóvis é revelar o pensamento que anima as suas palavras.

Considerando o sujeito que interpreta a lei, a interpretação distingue-se em autêntica, doutrinal e judicial. Diz-se autêntica quando realizada pelo próprio legislador.

Pode ser considerada lei interpretativa a Exposição de Motivos que acompanha as grandes leis, como  CP ou o CPP? Uns acham que sim, porquanto ela deve dar um entendimento exato da nova lei. Outros, a nosso ver, com maior razão, opinam negativamente, sob o fundamento de que uma grande lei é obra de vários e a Exposição de Motivos que a acompanha é redigida por uma só pessoa. Na sua redação pode ocorrer que o redator não revele, exatamente, o pensamento que animou os elaboradores.

Interpretação autêntica

A doutrina distingue a interpretação autêntica em contextual e por lei posterior. Se a interpretação é feita no contexto, “mediante disposiciones que mutuamente se aclaran”, diz-se contextual, tal como se vê no art. 150 e parágrafos do CP, notadamente os §§ 4º e 5º, em que o próprio legislador procurou gizar os contornos da palavra “casa”. Se a interpretação se dá por lei posterior – o que constitui a regra -, fala-se em interpretação “por lei posterior”. Veja-se, e a propósito, a Lei n. 4.898/65. Entendeu-se que a “representação” de que tratava e trata esse diploma fosse condição de procedibilidade. Mais tarde, foi promulgada a Lei n. 5.249, de 9-2-1967, dando-lhe o exato sentido: notitia criminis... Interpretação, poi8s, autêntica por lei posterior...

Interpretação doutrinal

Doutrinal é a interpretação feita pelos juris scriptores (juristas), pelos comentadores, pelos doutrinadores. Os Comentários ao Código de Processo Penal, feitos por Espínola Filho, Florêncio de Abreu, Basileu Garcia, Hélio Tornaghi, Frederico Marques, e.g., constituem verdadeira interpretação doutrinal, porquanto, em seus trabalhos, procuram revelar o verdadeiro sentido do dispositivo legal.

A interpretação doutrinal, produto das pesquisas dos juristas, é de valor inexcedível. E seu prestígio será tanto maior quanto maior for a envergadura do jurista.

Interpretação judicial

É aquela levada a efeito pelos Juízes e Tribunais ao aplicarem a lei a um caso concreto. Sua importância é também extraordinária, e quando uniforme, duradoura e repetida, forma a jurisprudência, que, segundo muitos aut0res, pode até ser considerada fonte do direito. Não se deve deslembrar que o Juiz “não pode ser agnóstico em relação às opções que se lhe deparam em sede de interpretação. E ele vive e opera num determinado clima político-constitucional em que a pessoa humana representa o valor supremo; e é à posição desta que o Juiz é chamado a escolher entre duas interpretações antitéticas de uma norma legal” (G. Berttiol,  Instituições de direito e processo penal, trad. Manuel da Costa Andrade, Coimbra. Coimbra Ed., 1974, p. 297).

Interpretação gramatical

Do ponto de vista objetivo, isto é, levando em conta os meios ou expedientes intelectuais empregados para se proceder à interpretação, , esta se distingue em gramatical ou literal, lógica ou teleológica, sistemática e histórica. Outros autores preferem dizer que os elementos “histórico” e “sistemático” são considerados na interpretação lógica ou teleológica.

Gramatical ou literal é a que se inspira no próprio significado das palavras.

Aliás, o art. 2º do CPPM assim dispõe: “A lei de processo penal militar deve ser interpretada no sentido literal de suas expressões. Os termos técnicos hão de ser entendidos em sua acepção especial, salvo se evidentemente empregados com outra significação”.

Quando a lei fala em “queixa”, deve entender-se como tal a peça vestibular da ação penal privada. Esse o seu sentido técnico-jurídico. Entretanto vulgarmente se designa com esse vocábulo a notitia criminis que se leva ao conhecimento da Autoridade Policial. É comum dizer-se: Fulano foi fazer queixa à Polícia... Queixa, aí, está empregada no seu sentido vulgar.

A interpretação gramatical é importantíssima, mas não exclui os outros métodos de interpretação. Em matéria de interpretação, não se pode nem se deve olvidar o ensinamento de Celso: “Scire leges, non hoc est verba earum tenere, sed vim ac potestatem...”.

Interpretação lógica

Quando o intérprete se serve das regras gerais do raciocínio para compreender o espírito da lei e a intenção do legislador, fala-se de interpretação lógica ou teleológica, porquanto visa precisar a genuína finalidade da lei, a vontade nela manifestada.

Interpretação sistemática

Recorre-se a este tipo de interpretação quando a dúvida não recai sobre o sentido de uma expressão ou de uma fórmula da lei, mas sim sobre a regulamentação do fato ou da relação sobre que se deve julgar. Aqui o intérprete deve colocar a norma em relação com o conjunto de todo o Direito vigente e com as regras particulares de Direito que têm pertinência com ela. Assim, p. ex., para saber qual a razão que levou o legislador a permitir a figura do Assistente da Acusação (art. 268 do CPP) nas ações penais públicas, há necessidade de se proceder a uma análise de outros institutos, nomeadamente os recursos. Por que as Súmulas 208 e 210 do STF restringem a atividade recursal do Assistente? Porque nos demais casos seu direito à satisfação do dano não fica afetado... Logo, o legislador permitiu que o ofendido interviesse como Assistente do Ministério Público nos crimes de ação penal pública para preservar o seu direito à satisfação do dano. Do contrário, ter-lhe-ia permitido o uso de outros recursos, comuns às demais partes...

Interpretação histórica

A pesquisa do processo evolutivo da lei, isto é, a história da lei ou a história dos seus precedentes, auxilia o aclaramento da norma. Os projetos de leis, as discussões havidas durante sua elaboração, a Exposição de Motivos, as obras científicas do autor da lei são elementos valiosos de que se vale o intérprete para proceder à interpretação. Diz-se, então, histórico tal método interpretativo.

Interpretação extensiva e restritiva

Quanto aos resultados, a interpretação pode ser extensiva ou restritiva. A linguagem da lei peca ou por excesso ou por defeito. Às vezes, como diz Maggiore, é demasiado genérica (plus dixit quam voluit)  - disse mais do que queria -, de sorte que, aparentemente, compreende relações que permaneceram, na vontade do legislador, excluídas. Outras vezes é demasiado restrita (minus dixit quam voluit) – disse menos do que queria -, de modo que, aparentemente, exclui relações queridas pela própria lei.

Cumpre, então, ao intérprete, para restabelecer o equilíbrio, atribuir à norma, no primeiro caso, um alcance menos amplo; no segundo, mais amplo. Restritiva, repita-se porque restringe a aparente extensão da norma.

Assim, por exemplo, quando o legislador diz, no art. 271 do CPP, que “ao assistente será permitido propor meios de prova”, deve-se entender que está excluída a prova testemunhal, pois, de outro modo, estaria ilidida, por via oblíqua, a regra segundo a qual a Acusação deverá oferecer o rol das testemunhas (se quiser fazê-lo) quando da propositura da ação (art. 41, in fine), como se depreende da leitura do art. 397 do mesmo diploma processual. Atente-se para a circunstância de que o assistente de acusação ingressa em juízo após a instauração da instância penal, como se dessume do art. 268 do CPP, e não antes.

Outras vezes, percebe-se que o legislador minus dixit quam voluit (disse menos do que queria dizer). Urge, assim, fazer as palavras da lei corresponderem ao seu espírito, e, para tanto, deverá o intérprete ampliar o sentido ou alcance daquelas. Fala-se, aí, em interpretação extensiva. Exemplo: o art. 34 do CPP diz que o menor de 21 e maior de 18 pode exercer o direito de queixa. Pergunta-se: poderá exercer, também, o direito de representação? Claro que sim. Quem pode o mais, pode o menos. Na verdade, a representação é um minus em relação à queixa. Observe-se que a expressão “menor de 21 e maior de 18” foi apanhada tal como está no art. 34 do CPP. Hoje, como a maioridade se inicia aos 18 anos, essa disposição caiu no vazio.

Interpretação progressiva

Diz-se progressiva a interpretação quando o intérprete, observando que a expressão contida na norma sofrer alteração ao correr dos anos, procura adaptar-lhe o sentido ao conceito atual. Exemplificando: o § 2º do art. 5º do CPP diz caber recurso ao Chefe de Polícia da decisão do Delegado que indefere requerimento visando à instauração de inquérito. Indaga-se: quem é o Chefe de Polícia? Quando da elaboração do Código de Processo Penal, em 1942, “Chefe de Polícia” era a denominação que se dava aos atuais Secretários da Segurança Pública. Depois, com a organização da Polícia Civil, o Chefe de Polícia passou a ser denominado Secretário da Segurança Pública, e, em face das inúmeras funções que lhe foram afetas, em razão mesmo do aumento populacional e do crescimento da criminalidade, criaram-se outros cargos, como o de Delegado-Geral da Polícia Civil e os de Delegados Seccionais. Assim, aquele recurso, sem prazo para a sua interposição, pode ser dirigido ao Delegado-Geral ou até mesmo ao Delegado Seccional. A finalidade do recurso é pedir a um órgão superior o reexame do ato do Delegado de Polícia que indeferia o requerimento para a instauração de inquérito. E como os Delegados Seccionais, o Delegado-Geral da Polícia Civil, como são chamados em São Paulo, ou que outro nome tenham nos demais Estados, exercem funções mais graduadas, o recurso pode ser dirigido a qualquer deles. Os arts. 298 e 299 do CPP permitem a prisão por via postal, telegráfica e telefônica. Àquela época não havia o fax... Hoje, os Tribunais, normalmente, quando mantêm as sentenças condenatórias, e se for o caso, determinam a prisão via fax. Interpretação progressiva daquelas disposições.

Interpretação analógica

Ao lado da interpretação extensiva e mantendo com esta certa similitude, está a interpretação analógica. Não se deve confundir, contudo, a interpretação analógica com a analogia. A primeira é forma de interpretação; a segunda é integração. Quando se pode proceder à interpretação analógica? Quando a própria lei a determinar. Algumas vezes, a lei penal (a própria lei penal) a permite, e o faz “quando uma cláusula genérica se segue a uma fórmula casuística”, e, nessas hipóteses, “deve entender-se que aquela somente compreende os casos análogos aos destacados por esta, que, do contrário, seria ociosa”. Assim, p. ex., quando o art. 61, II, c, do CP fala em “à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação, ou outro recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido”, pergunta-se: que outro recurso poderá ser este? Evidentemente deve ser um “recurso” semelhante, análogo à “emboscada”, “à traição”, “à dissimulação”, em molde a dificultar ou tornar impossível a defesa do ofendido.

Não teria sentido que o legislador ali catalogasse todas as hipóteses que guardassem semelhança com a “emboscada”, com a “traição”, com a “dissimulação”. Preferiu, com boa técnica, fazer uso de uma fórmula casuística (à traição, de emboscada, mediante dissimulação) e, em seguida, lançar mão de uma fórmula genérica (ou outro recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido), entendendo-se, pois, que o recurso de que lança mão o agente, para se emoldurar no art. 61, II, c, do CP, há de ser semelhante à traição, à emboscada, à dissimulação. E ele o será, evidentemente, se dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido. Na interpretação analógica a vontade da norma é abraçar os casos análogos, semelhantes àqueles por ela regulados. Veja-se, também, e a propósito, o art. 403 do CPP.

Analogia

Analogia é integração. Parte da doutrina entende que existe a plenitude do ordenamento jurídico e, por isso, não se pode cuidar de reintegrá-lo. A maioria, entretanto, entende que o ordenamento jurídico apresenta lacunas, vazios. Tais vazios devem ser preenchidos, e o processo usado para o preenchimento, para inteirar, para completar, para integrar o ordenamento jurídico, chama-se analogia.


Assim é um princípio jurídico segundo o qual a lei estabelecida para determinado fato a outro se aplica, embora por ela não regulado, dada a semelhança em relação ao primeiro. P. ex.: os embargos declaratórios interrompem o prazo para outro eventual recurso? O CPP não trata do assunto. Mas, como o art. 538 do CPC diz que interrompe e como a matéria é análoga, aplicando-se a regra do art. 3º do CPP, podemos dizer que no processo penal ela tem inteiro cabimento. Pode o Juiz penal dar-se por suspeito se for amigo íntimo do pai do acusado? Pela redação do art. 254 do CPP, não. Ali se cuida da amizade íntima como qualquer das partes, e o pai do acusado não é parte. Todavia, numa ação cível, se o Juiz for amigo do pai do autor ou do réu, poderá dar-se por suspeito, alegando motivo de foro íntimo, nos termos do parágrafo unido do art. 135 do CPC. Logo, invocando o art. 3º do CPP, e a situação é análoga à prevista no CPC, nada impede que o Juiz penal, no exemplo dado, dê-se por suspeito.

domingo, 12 de abril de 2015

MANUAL DE PROCESSO PENAL - EFICÁCIA DA LEI PROCESSUAL PENAL NO ESPAÇO – RESSALVAS E EXCEÇÕES – TRATADOS, CONVENÇÕES E REGRAS DE DIREITO INTERNACIONAL - VARGAS DIGITADOR

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – Capítulo 4 – EFICÁCIA DA LEI PROCESSUAL PENAL NO ESPAÇO – RESSALVAS E EXCEÇÕES – TRATADOS, CONVENÇÕES E REGRAS DE DIREITO INTERNACIONAL -  VARGAS DIGITADOR

As leis penais, em algumas hipóteses (art. 7º do CP), incidem sobre os fatos delituosos cometidos fora do nosso território, apresentando, assim, excepcionalmente, uma ultraterritorialidade. Entretanto, no que tange às leis processuais penais, estas não ultrapassam os limites do território do Estado que as promulgou. São eminentemente territoriais. Sendo o Processo Penal o meio de que se valem os Órgãos Jurisdicionais penais para a solução de lides penais, e se eles representam o próprio Estado na sua função de administrar justiça, não pode este exercer seu Poder Soberano além do alcance da sua própria soberania. Por essa mesma razão fica excluída a possibilidade de ser aplicada a lei processual penal de outro país em nosso território. Evidente que quando se afirma que a lei penal admite extraterritorialidade (rectius: ultraterritorialidade), o que se quer dizer com essa expressão é qua a nossa lei penal, às vezes, contrariando o que normalmente acontece, incide, recai sobre fatos cometidos no exterior, e, por outro lado, quando se fala em exclusiva territorialidade da norma processual penal, o que se quer é que é de todo impossível o Juiz exercer o seu poder de solucionar lides fora do nosso território, a não ser em situações especiais, que logo serão vistas mesmo porque, se considerarmos a extraterritorialidade como a aplicação da lei de um Estado no território, a toda evidência nem a lei penal nem a processual apresentarão extraterritorialidade, posto que no campo penal tal medida seria afrontosa à soberania do Estado. Fala-se, isto sim, em ultraterritorialidade.

Mesmo que certos atos processuais devam ser apreciados no exterior, como, v. g., uma citação, intimação, busca e apreensão, ouvida de testemunha etc., aplicável será a lei processual penal do país onde tais devam ser realizados, não podendo ter aplicação a nossa lei de processo. É o domínio da lex fori. Aliás, e muito a propósito, o Código Penal Militar, cominando pena gravíssima, erigiu à categoria de crime, nos arts. 138 e 139, não só “praticar o militar, indevidamente no território nacional, ato de jurisdição de país estrangeiro, ou favorecer a prática de ato dessa natureza”, como também “violar o militar território estrangeiro, com o fim de praticar ato de jurisdição em nome do Brasil”.

É verdade que, às vezes, sobre certos fatos delituosos cometidos fora do território nacional incide a nossa lei penal; esta, contudo, somente será aplicável no território pátrio por meio das nossas normas processuais penais.

Sem embargo disso, Beling, Tornaghi, Garcia-Velasco, entre outros, admitem a possibilidade de ser aplicada a lei processual penal de um Estado fora de seus limites territoriais. Beling faz referencias às seguintes hipóteses:

a)    aplicação da lei processual penal de um Estado em território nullius (de ninguém);

b)    quando houver autorização do Estado onde deva ser praticado o ato processual;


c)     em caso de guerra, em território ocupado (cf. Ernst Beling, Derecho procesal penal, trad. Miguel Fenech, Madrid, Labor, 1945, p. 12; Hélio Tornaghi, Comentários ao Código de Processo Penal, Rio de Janeiro, Forense, 1956, v. 1. T. 1, p. 80; Garcia-Velasco, Curso de derecho procesal penal. Ed, Universidad de Madrid, 1969, p. 40-1).

Até a década de 30, havia o chamado regime das capitulações ou jurisdições consulares. Era comum, entre países europeus e outros da Ásia e África, a celebração de tratados segundo os quais as autoridades consulares dos países europeus acreditados no Oriente ou Estremo Oriente tinham poderes de investigar as infrações penais e proceder à instrução respectiva, como se fossem Juízes, aplicando a lei penal e a lei processual penal do seu respectivo Estado, desde que se tratasse de infração cometida por um co-nacional. Eventual recurso era dirigido ao Tribunal do respectivo Estado ocidental.

Ressalvas

Dizendo o art. 1º que “o processo penal reger-se-á, em todo o território brasileiro, por este Código”, dá a entender que toda lide de caráter penal que surgir no território pátrio será solucionada de acordo com as normas do CPP. E assim é. Todavia, por razões várias, foram feitas algumas ressalvas. Vejamo-las:

A)    Tratados, convenções e regras de Direito Internacional

Obedecendo a certos tratados ou convenções que o Brasil haja firmado, ou mesmo em atenção a regras de Direito Internacional, a lei processual penal pátria deixa de ser aplicada. Muito embora os fatos tenham sido cometidos no território brasileiro, os tratados, convenções e regras de Direito Internacional criam, na expressão de Mayer, verdadeiros obstáculos processuais, impedindo, assim, a aplicação da lei processual penal brasileira.

Aos crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves públicas estrangeiras, em águas territoriais e espaço aéreo, brasileiros, não se aplicam a lei penal nem a lei processual pátrias.

Inaplicável, também, é nossa lei processual penal aos agentes diplomáticos aqui acreditados. Por agentes diplomáticos compreendem-se não só os encarregados de certa missão especial, os que se acreditam para representar o Governo em conferências, congressos ou outros organismos internacionais, como também aqueles que representam o governo de um Estado perante outro, de maneira permanente. Esses privilégios são irrenunciáveis, porquanto não são concedidos à pessoa, mas à função que exerce.

Os funcionários diplomáticos que vivam em companhia dos respectivos agentes gozam dessas prerrogativas. Os empregados particulares não, pouco importando se da nacionalidade do diplomata. Estendem-se essas prerrogativas aos membros da família do agente diplomático que com ele vivam sob o mesmo teto: os pais, a mulher, os filhos etc. Na hipótese de falecimento do funcionário diplomático, sua família continuará gozando dos mesmos privilégios,por um lapso de tempo razoável, até que abandone o Estado onde se encontre (o assunto está regulado pela Convenção de Havana, em 1928, e que foi promulgada, entre nós, aos 22-10-1929, pelo Dec. N. 18.956).

Desfrutam, também, de iguais privilégios os Chefes de Estado e sua comitiva, quando em território nacional.

E as sedes das embaixadas? Serão consideradas alienígenas? Pela velha e revelha concepção da extraterritorialidade, sim. Hoje, entretanto, as sedes das embaixadas ou legações são consideradas território do país onde se acham situadas, tanto que os crimes aí praticados por pessoas alheias às imunidades sujeitam-se à jurisdição do Estado onde se encontra a embaixada. Apesar disso, mas como consequência da inviolabilidade e imunidade concedidas aos agentes diplomáticos, considera-se também inviolável a sede das embaixadas.

Essa inviolabilidade, todavia, que se estende às sedes dos consulados, seus arquivos e papéis, não vai ao extremo de permitir que o agente diplomático acolha, como refugiados, os acusados ou condenados por delitos de natureza comum, sendo obrigados a entregá-los à autoridade local competente que assim requeira (cf. Dec. N. 18.956, de 1929, art. 17).

É bem verdade que o art. 369 do CPP dispõe que as citações que houverem de ser feitas em legações estrangeiras serão efetuadas mediante carta rogatória. E assim procedeu o legislador pátrio não porque o Brasil entenda que as sedes das embaixadas sejam território estrangeiro, mas tão-somente por cortesia. Uma vez que os diplomatas gozam de imunidade material e formal, o legislador considerou, num gesto delicado e amigo, como fisicamente invioláveis os locais onde funcionam as missões diplomáticas. Assim também os prédios onde residam os quadros diplomáticos, administrativo e técnico. Mas nada impede, antes aconselha, que o legislador venha a permitir que, nesses casos de legações estrangeiras, as citações e intimações possam ser feitas com mais simplicidade, p. ex., por meio de precatória a ser cumprida via Ministério da Justiça. Já os locais consulares “são invioláveis na medida estrita de sua utilização funcional”. Da mesma forma, os arquivos e documentos consulares, a exemplo dos diplomáticos, são invioláveis em qualquer circunstância e onde quer que se encontrem (cf. J. F. Rezek, Direito Internacional público. São Paulo, Saraiva, 1991, p. 173).

Quanto aos cônsules, que exercem simples funções de caráter administrativo, de acordo com a Convenção de Havana, aprovada pelo Brasil, respondem eles, segundo as nossas leis, por eventuais infrações penais que venham a praticar. Todavia, em se tratando de infrações cometidas no exercício de suas funções, ficam eles e os funcionários do Consulado sujeitos às leis do seu país de origem ou, se for cônsul honorário, do país que o nomeou. Nesse mesmo sentido o art 43 da Convenção de Viena, à qual aderimos em 1967. E como foi dito no HC 55.155/SP, impetrado junto ao STF, e ao precedente tratado no HC 49.183, a Convenção de Viena “não confere ao funcionário consular imunidade penal, podendo, pois, ser processado criminalmente, bem como submetido à prisão decorrente de sentença definitiva, não se lhe estendendo as imunidades diplomáticas, mesmo quando, com o consentimento do Estado receptor, seja incumbido de praticar atos diplomáticos” (RTJ, 63/65). Quanto à prisão provisória, de acordo com o art. 41 da Convenção de Viena, “não poderão os cônsules ser detidos ou presos provisoriamente, exceto em caso de crime grave e em decorrência de decisão de autoridade judiciária competente”. Assim, se a pena mínima cominada ao crime não for superior a 1 ano, por óbvio não terá gravidade, tanto que enseja a pena alternativa... A propósito, Informativo STF n. 259, de março de 2002.

B)   Prerrogativas constitucionais do Presidente da República e de outras autoridades

A segunda ressalva feita pelo art. 1º “diz respeito às prerrogativas constitucionais do Presidente da República, dos Ministros de Estado, nos crimes conexos com os do Presidente da República, e dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, nos crimes de responsabilidade”.

As Cartas Políticas que se sucederam à de 1937, sob cuja égide foi promulgado o atual Código de Processo Penal, estenderam aquelas prerrogativas a outras pessoas. A Magna Carta de 1988 e os Estados, em suas Leis Maiores, ampliaram o rol das pessoas que fazem jus às prerrogativas de que trata o inc. II deste art. 1º sob comentário. Assim é que, ao lado do Procurador Geral da República e dos Ministros do STF, a Carta Política incluiu o Advogado-Geral da República e, mais tarde, a Emenda Constitucional n. 23/99 acrescentou os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Estes, bem como os Ministros de Estado, nos crimes conexos com os do Presidente da República, também se incluem naquele rol: serão processados e julgados pelo Senado Federal (art. 52 da CF). A Emenda Constitucional n. 45/2004 incluiu entre os que são processados e julgados pelo Senado Federal, nos crimes de responsabilidade, os membros dos Conselhos, Nacional de Justiça e do Ministério Público. A Lei n. 10.028, de 19-10-2000, no que tange aos crimes definidos no art. 10 da Lei n. 1.079/50 (contra a lei orçamentária), além das pessoas enumeradas no art. 2º desta lei (Presidente da República, Ministros de Estado, Ministros do STF e Procurador-Geral da República), incluiu (art. 39-A da Lei n. 1.079/50), especificamente, o Presidente do STF e respectivo substituto quando no exercício da Presidência, os Presidentes e respectivos substitutos dos Tribunais Superiores, dos Tribunais de Constas, dos Tribunais Regionais Federais, Eleitorais e do Trabalho, dos Tribunais de Justiça e de alçada dos Estados e do Distrito Federal e os Juízes Diretores de Foro, Advogado-Geral da União, Procuradores-Gerais do Trabalho, Eleitoral e Militar, Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal e os membros do Ministério Público da União e dos Estados, da Advocacia-Geral da União, das Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal, quando no exercício de função de chefia. Nesses casos, a prerrogativa do foro já concedida a essas pessoas será mantida, observando-se o rito da Lei n. 8.038/90, com esta particularidade: a denúncia poderá ser ofertada por qualquer cidadão, ex vi do art. 41-A da Lei n. 1.079/50, incluído pela Lei n. 10.028, de 19-10-2000, mantida a legitimidade do Ministério Público. Essas hipóteses, contudo, não se inserem nas ressalvas de que trata o inc. II do art. 1º do CPP, visto que o processo e o julgamento ficam afetos a Tribunais Superiores, Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça como se fossem crimes comuns, enquanto nos outros crimes de responsabilidade a que se refere o art. 1º, II, do CPP, o processo e julgamento ficam afetos ao Senado Federal, observadas as regras da Lei n. 1.079/50 e os Regimentos da Câmara dos Deputados e do Senado. Não se aplica o Código de Processo Penal. Os Estados também podem, em suas Constituições, fixar o órgão competente para o processo e julgamento de crimes de responsabilidade. De observar, entretanto, que esse poder não é absoluto, uma vez que ele deve ater-se aos princípios adotados na Lex Mater, como se infere do seu art. 25. Enfim: deve ser observado o princípio da simetria. No Estado de São Paulo, p. ex., fazem jus a esse foro especial, nos crimes de responsabilidade, Governador, Vice-Governador, Secretários de Estado, nos crimes de igual natureza conexos aos daqueles, Procurador-Geral de Justiça de Procurador-Geral do Estado. Ressalte-se que essas funções têm correspondência no cenário nacional: Presidente da República, Vice-Presidente, Ministros etc.

Nesses crimes de responsabilidade referidos nas Constituições dos Estados (e cuja definição, obviamente, é da estrita competência da União, nos termos do art. 22, I, da CF), o processo e julgamento são da competência do órgão por elas indicado. No Rio Grande do Sul e no Paraná, por exemplo, o processo e julgamento competem à Assembleia Legislativa. No Piauí, a um órgão misto composto de 5 Deputados e 5 Desembargadores sob a presidência do Presidente do Tribunal de Justiça. No Estado de São Paulo esse órgão misto é constituído de 7 Deputados e 7 Desembargadores sob a presidência do Presidente do Tribunal de Justiça. Nesse processo serão obsevadas: a Lei n. 1.079/50, a Constituição local e os Regimentos do Tribunal de Justiça e da Assembleia Legislativa, e não o Código de Processo Penal. Daí a ressalva.

C)   Justiça Militar

Outra ressalva feita pelo art. 1º do CPP é quanto aos processos da competência da Justiça Militar. A eles não se aplica o CPP. O Direito Processual Penal pátrio, quanto à natureza do direito material que informa a res in judicio deducta (o pedido exposto em juízo), abrange o Direito Processual Penal comum, cuja fonte principal é o CPP (sem falarmos na Constituição, que é a fonte por excelência), o Direito Processual Penal Militar e o Direito Processual Penal Eleitoral. Tratando-se de infrações de caráter militar (crimes militares próprios – que só podem ser cometidos por militares – e impróprios, aqueles que estão definidos não só na lei penal comum como também no Código Penal Militar), observar-se-ão as normas do Código de Processo Militar.

A Justiça Militar é uma Justiça especial, tal como se vê pela redação dos arts. 124 e 125, §§ 4º e 5º, da Magna Carta. Há um Código Penal militar, que define os crimes militares, e um Código de Processo Penal Militar, que é o aplicável na composição das lides da natureza penal militar.

Não se trata de foro excepcional, mas especial. Não traz consigo o foro especial, como bem esclarece Tristão de Alencar Araripe, nenhum privilégio, nenhum favor particular, mas, ao contrário, acarreta maiores exigências, mais severo rigor. Trata-se, no dizer de Astolpho Rezende, de uma jurisdição especial, exigida e adequadamente justificada pela necessidade da disciplina. Disciplina e hierarquia são a razão de estarem os militares sujeitos às leis penais militares e a um processo penal especial.

D)   Tribunal Especial

O art. 1º do CPP, em seu inc. IV,ainda faz outra ressalva: não se pratica o CPP aos processos da competência de Tribunal Especial.

A Constituição de 1937 previa, no art. 122, n. 17, a criação de Tribunal Especial, cuja competência se restringia ao processo e julgamento dos crimes que atentavam contra a personalidade internacional, a estrutura e a segurança do Estado, contra a personalidade internacional, a estrutura e a segurança do Estado, contra a ordem social e, finalmente, dos que atentavam contra a economia popular, sua guarda e seu emprego. Malgrado isso, a Lei n. 244, de 11-9-1936, elaborada sob a égide da Carta de 1934, já havia criado um Tribunal de Segurança Nacional, com competência para julgar os crimes contra a segurança do Estado, constituído de 5 membros escolhidos pelo Presidente da República. Após a Carta de 1937, o Decreto n. 88, de 20-12-1937, modificou a Lei n. 244, de 1936, não só para incluir na sua competência os crimes contra a economia popular, como também para elevar o número de seus membros para 6, sendo 2 Magistrados, 1 Juiz Militar, 1 Oficial do Exército, 1 Oficial da Armada e 1 Advogado, todos da livre escolha do Presidente da República. Tratava-se, pois, de um Tribunal que “rezava pela cartilha do Ditador”.

O processo era especial, pos se tratava de “Justiça de exceção”.

Não se deve confundir, adverte Frederico Marques, a Justiça de exceção com a Justiça especial. Esta, como esclarece Lucchini, “é permanente e orgânica”, enquanto aquela “é transitória e mais ou menos arbitrária”.

Entretanto, antes de a Constituição de 1946 (no seu art. 141, § 26) abolir os Tribunais de Exceção, já no governo José Linhares foi extinto o Tribunal de Segurança Nacional, por força da Lei Constitucional n. 14, de 17-11-1945, e os crimes que eram da sua competência passaram para a de outros Órgãos Jurisdicionais.

E)    Crimes de imprensa

Finalmente, a última ressalva feita pelo art. 1º do CPP, não se aplica este Código aos processos por crime de imprensa.

Tais crimes são da competência da Justiça Comum, e, por isso, em princípio, aplicável seria o CPP. Entretanto entendeu o legislador que os crimes de imprensa deveriam ser tratados em lei extravagante, na qual se estabelecesse o respectivo processo. Era que havia anteriormente e que, por sinal, foi mantido. Hoje, os crimes de imprensa, com o respectivo processo, estão disciplinados na Lei n. 5.250, de 9-2-1967.

Todavia, tal como dispõe o parágrafo único do art. 1º do CPP, este será aplicado, nesses casos, “quando as leis especiais que o regulam não dispuserem de modo diverso”.

F)    Crimes eleitorais

Embora haja omissão na enumeração das ressalvas feitas pelo art. 1º do CPP, podemos dizer ser este inaplicável às infrações eleitorais e às que lhes forem conexas. De fato. Se assim é, por que a omissão? Explica-se: quando na elaboração do CPP, vigia a Constituição de 1937, que não cuidava da Justiça Eleitoral e, muito menos, dos crimes eleitorais, pois o regime, àquela época, era de exceção. Com a Constituição de 1946, criou-se a Justiça Eleitoral (art. 109), e o inc. VII do art. 119 daquele Diploma Maior dispunha competir à justiça Eleitoral o processo e julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que lhes fossem conexos. Daí a elaboração de um Código Eleitoral definindo as figuras delituais penais eleitorais e o respectivo processo, nada obstando, quando este não dispuser de modo diverso, seja o Código de Processo Penal comum subsidiário daquele.

O mesmo princípio foi mantido pela Emenda Constitucional n. 1/69. A Constituição atual, entretanto, no seu art. 121, limitou-se a dizer: “Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais”     , e, como até o momento não foi elaborada lei nesse sentido, tem-se entendido, sem discrepância, que a Carta Política de 1988 recepcionou o Código Eleitoral como se fosse a Lei Complementar, no que respeita à competência. Enquanto não vier a Lei Complementar, sua competência é esta: os crimes eleitorais e os comuns que lhes forem conexos, à dicção do art. 35, II, do Código Eleitoral. Nesses casos, o processo e julgamento ficarão afetos aos Órgãos Jurisdicionais da Justiça eleitoral, sendo que o processo deverá obedecer ao disposto no Código Eleitoral. O procedimento vem traçado nos arts. 355 a 364. Todavia, dispõe o art. 364: “No processo e julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que lhes forem conexos, assim como nos recursos e na execução, que lhes digam respeito, aplicar-se-á, como lei subsidiária ou supletiva, o Código de Processo Penal”.

G)   Outras exceções

O CPP fez, tão-somente, aquelas ressalvas. Entretanto, de lá para cá, foram surgindo leis processuais estabelecendo normas quanto ao processo e julgamento de determinadas infrações penais, de sorte que podemos, também, incluir, naquelas ressalvas, outras leis extravagantes.

Nos denominados “crimes de entorpecentes”, definidos na Lei n. 11.343, de 23-8-2006, a parte alusiva à investigação, ao processo e julgamento está ali regulada.

Nos crimes de abusos de autoridade, o processo e julgamento regulam-se pelo que dispõe a Lei n. 4.898, de 9-12-1965.

Os crimes da competência dos Tribunais (ação penal originária) sujeitam-se a um procedimento diverso, tal como disciplinados nas Leis n. 8.038/90 e 8.658/93, tendo esta última, revogado os arts. 556/562 do CPP.

As infrações de menor potencial ofensivo, assim consideradas “as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos cumulados ou não com multa”, de acordo com o art. 61 da Lei n. 9.099/95, com a redação dada pela Lei n. 11.313/2006, passaram para a alçada do Juizado Especial Criminal, com procedimentos bem distintos.

Além disso, a Lei n. 11.101, de 9-2-2005, ao tratar das falências, estabelece normas especiais sobre o procedimento dos crimes falimentares, prazo prescricional e sua interrupção.


Assim, o Processo Penal, forma compositiva de litígios penais, continua sendo disciplinado pelas normas estabelecidas no CPP, que é a principal fonte do nosso Direito Processual Penal. Ao seu lado, contudo, complementando-o, há essas leis extravagantes, alterando, modificando ou dispondo de maneira especial a respeito do processo e julgamento.