quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Direito Civil Comentado - Art. 818, 819, 820 - continua - DA FIANÇA - VARGAS, Paulo S. R.


Direito Civil Comentado - Art. 818, 819, 820 - continua
- DA FIANÇA - VARGAS, Paulo S. R.
Parte Especial - Livro I – Do Direito das Obrigações
Título VI – Das Várias Espécies de Contrato
 (art. 481 a 853) Capítulo XVIII – Da Fiança
 – Seção I – Disposições Gerais (art. 818 a 826) –
vargasdigitador.blogspot.com -

Art. 818. Pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra.

No lecionar de Claudio Luiz Bueno de Godoy, a fiança, de que de se dá a tratar o Código Civil de 2002 a partir do artigo em comento, encerra contrato mercê do qual alguém, chamado fiador, se obriga a garantir o débito de outrem, o devedor-afiançado, perante o credor deste. É, portanto, um ajuste que se firma entre o fiador e o credor do afiançado. Sua função está na constituição de uma responsabilidade por débito alheio.

Como é sabido, no vínculo obrigacional imiscuem-se o débito, que liga o devedor ao cumprimento de uma prestação em favor do credor, mas também a respectiva responsabilidade, a garantia do adimplemento que, de maneira geral, recai sobre o patrimônio do devedor. nada impede, porém, que a responsabilidade seja assumida por um terceiro, assim que não se ostente devedor. é a garantia, enfim, prestada por um terceiro, que, sem ser devedor, se torna responsável.

Essa responsabilidade pode se efetivar com o oferecimento de algum bem específico do patrimônio do terceiro, sobre o qual se constitui um direito real, indutivo de sequela e preferencia em favor do credor. Porém, a garantia prestada pelo terceiro poderá ser pessoa, na verdade reforçando-se a obrigação principal creditícia com outra acessória, que é a fiança, a chamada obrigação fidejussória (caução pessoal ou fidejussória). Ou seja, é uma obrigação acessória de garantia de uma obrigação principal, mediante a qual o fiador se vincula ao cumprimento da prestação devida pelo devedor, em regra, caso este não a cumpra. Daí dizer-se que o contrato de fiança é acessório, seguindo a sorte da obrigação por ela garantida.

O contrato de fiança é considerado unilateral, porque faz nascer prestação principal apenas ao fiador, mas não ao credor, cuja obrigação ativa se garante. Via de regra é gratuito, prestada a fiança de forma benéfica; por isso, inclusive, se interpreta de maneira restritiva. Não se impede, todavia, a fiança onerosa, portanto em que o fiador recebe pela fiança prestada. Nesse sentido se evidencia corriqueira a fiança profissional, prestada, por exemplo, por bancos ou agências que a tanto se dedicam. A propósito, ademais, vale anotar que o Código Civil de 2002, seguindo a tendência de unificação do direito obrigacional, e tal como já se salientou no exame dos contratos de mandato, comissão, agência e distribuição, a cujos comentários se remete o leitor, tratou de maneira assim unificada da fiança civil e mercantil, por vezes criando dificuldades que adiante serão mencionadas (ver, por exemplo, comentário ao CC 827).

Diferencia-se a fiança do aval, malgrado outra forma de garantia pessoa, porquanto especificamente atinente ao direito cambiário, mas que, além disso, envolve uma obrigação cambiária autônoma e indutiva de uma responsabilidade solidária do avalista, e não subsidiária, como em princípio a do fiador. Além dos requisitos normais de capacidade para contratar, a fiança reclama atendimento a regras de legitimação. Assim, por exemplo, a pessoa casa que não o seja nos regimes da separação de bens precisará da vênia conjugal para prestar a garantia (CC 1.647, III), sob pena de anulabilidade, como hoje se expressa, a ser deduzida em dois anos, conforme preceito do CC 1.649, e a despeito de tese, que na jurisprudência se levanta, como abaixo se verá, no sentido de que haja, nesses casos, mera ineficácia, antes relativa, agora total. O mesmo não se pode dizer, ao que se entende, com relação aos companheiros, não porque, como já se disse no comentário ao CC 812, a união estável possua dignidade inferior à do casamento, ambos ensejando a mesma constituição de família, mas porque, ao contrário do casamento, instituição formal cuja publicidade inerente enseja ciência sobre sua existência, início e término a quem quer que seja, bastando consulta ao registro civil, a união estável não propicia a terceiros o necessário e apriorístico conhecimento sobre se existente, sobre quando se iniciou e sobre seu fim, até de forma a exigir-se o placet do companheiro à outorga da fiança. De igual maneira, mesmo capazes, estão impedidas de prestar fiança algumas pessoas em virtude de sua função, como os leiloeiros. O tutor e o curador estão impedidos de prestar fiança pelo pupilo ou pelo curatelado. O mandatário, para fazê-lo, precisa de poderes especiais (CC 661, § 1º), da mesma forma que a pessoa jurídica somente poderá prestar fiança se não o vedarem seus atos constitutivos ou, no silêncio, se em seu benefício e de acordo com sua finalidade social.

Certo que, aqui tratada como contrato, a fiança pode também ter origem legal ou judicial. No primeiro caso, ter-se-á a fiança exigida por lei, como sucede quando se exige a caução para que cocredor de obrigação indivisível possa cobrar o débito do devedor, solitariamente, sem que seja acompanhado do outro credor (CC 260, II). ou quando a lei impõe caução ao vizinho que pretenda usar a parede do outro para fazer alicerce (CC 1.305, parágrafo único). Na mesma senda, outras vezes a garantia é determinada pelo juiz, no processo, como nos casos de execução provisória (CPC 520 – antigo CPC/1973, art. 475-O). Mas é regrada no capítulo em exame a fiança convencional, sobre a qual o Código Civil estatui, na primeira seção, disposições gerais, depois cuidando de seus efeitos e de sua extinção. (Claudio Luiz Bueno de Godoy, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 842-43 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 27/02/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Na visão de Ricardo Fiuza, a fiança é um contrato mediante o qual uma parte (fiador) assume para com outra, credor de determinada obrigação de terceiro (afiançado), a garantia de por ela responder caso aquele não venha adimpli-la. essa segurança oferecida constitui contrato acessório ao principal, onde subsiste a obrigação por este garantida. É garantia fidejussória, por tratar-se de garantia pessoal, e, como tal, uma espécie do gênero garantia. A doutrina o reconhece como um contrato unilateral, em regra não oneroso, acessório, solene, e intuitu personae. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 430 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 27/02/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Na visão de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, fiança é o contrato mediante o qual uma pessoa obriga-se a satisfazer obrigação alheia, caso o devedor não a cumpra. É o mesmo que caução fidejussória.

Distingue-se do aval (cf. CC 897 a 900), porque: a) o aval é restrito aos títulos de crédito; b) o avalista tem sempre responsabilidade solidária.

A fiança penal é, na técnica do Direito Privado, caução (cf. arts. 321-350 do CPP).

A fiança é contrato acessório, unilateral, formal, intuitu personae e, quase sempre, gratuito. São partes o fiador (pessoa capaz) e o credor da obrigação garantida. A vontade do devedor principal (afiançado) é irrelevante (CC 820) e ele não é, portanto, parte do contrato de fiança.

O fiador casado necessita de outorga conjugal, exceto no regime da separação absoluta (CC 1.647, III), sob pena de anulabilidade a ser requerida em até dois anos após o término da sociedade conjugal (CC 1.649).

Antes do Código Civil de 2002, a fiança prestada sem a outorga conjugal, não-anulada, não se comunicava (art. 263, X; Lei n. 4.121, art. 3º.

Apesar do silêncio do Código Civil vigente, deve prevalecer a não comunicabilidade, com base no art. 3º da Lei n. 4.121, por se tratar, em regra, de obrigação que não beneficia a família.

Há três espécies de fiança: a) Fiança legal: a que decorre de imposição legal (ex. CC 1.280 – Dos direitos de vizinhança); b) Fiança judicial: a que a lei exige para a garantia de certos atos do processo judicial (ex. CC 1.745, parágrafo único – Da Tutela) e c) Fiança convencional: a que decorre da vontade das partes. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 27.02.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 819. A fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva.

Na toada de Claudio Luiz Bueno de Godoy, entendido o negócio jurídico formal como aquele não consumável por qualquer forma, tal qual em regra acontece, porquanto prevalecendo, em geral, a informalidade, a fiança, somente aperfeiçoando-se por escrito, constitui contrato formal. Não exige a lei, porém, que a outorga se deva dar, necessariamente, por instrumento público. Poderá sê-lo, destarte, também por documento particular. Mas não se admite, na mesma esteira, fiança que seja prestada verbalmente, ainda que assim se tenha contraído a obrigação por ela garantida.

Na segunda parte, e a exemplo do que já fazia o CC/1916, estabelece o artigo em comento que a fiança deve ser interpretada restritivamente, razão, por exemplo, de, quanto à garantia de avenças locatícias, se ter sumulado o entendimento de que o fiador não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não haja anuído (Súmula n. 214 do STJ). Da mesma forma, a interpretação restritiva da fiança tem levado a jurisprudência, não sem certo vacilo, a decidir que o art. 39 da Lei n. 8.245/91, que cuida das locações prediais urbanas, quando impõe a permanência das garantias, salvo disposição em contrário, até a entrega das chaves, não implica a responsabilidade do fiador pelo tempo de prorrogação do contrato locatício a que não tiver anuído.

A disposição em tela, com efeito, ostenta perfeita consonância com a previsão genérica do CC 116, inserido na Parte Geral, sempre ao pressuposto de que, no mais das vezes, a fiança se concede gratuitamente, de forma benéfica. De resto não era diversa a disposição do art. 257 do Código Comercial, quando tratava da fiança mercantil, em parte hoje revogado pelo Código Civil, donde proveio regramento unificado para o contrato em questão. É bem de ver, entretanto, tal qual já se acentuou no comentário ao artigo precedente, que a fiança pode ser onerosa, muito embora, também nesse caso, sustente, por exemplo, Lauro Laertes de Oliveira (Da fiança. São Paulo, Saraiva, 1986, p. 24), que se imponha interpretação restritiva.

Na verdade, considera-se que a regra da interpretação restritiva não exclui a concorrência de regras outras de interpretação, como a do CC 113, mas servindo, aí sim, a impedir a extensão da fiança para dívida novada com novo devedor, ou, como se viu, para estender a garantia por período suplementar ao contratado, como também para abarcar o todo do débito só parcialmente garantido. Mas, ao revés, a imposição de uma interpretação restritiva da fiança não significa a irresponsabilidade do fiador pelos acessórios da obrigação garantida, consoante se verá ao exame do CC 822, infra. Ou seja, desde que não limitada, a fiança abrange os acessórios da dívida e, a partir de quando citado o fiador, até mesmo os consectários processuais que ocasionalmente se façam sentir na cobrança de débito afiançado. (Claudio Luiz Bueno de Godoy, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 843-44 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 27/02/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

A doutrina de Fiuza mostra que pela sua natureza, depende da forma escrita, sem exigir, contudo, determinada forma especial para demonstrar efetivamente prestada a garantia, e o caráter benéfico de que se reveste a fiança não lhe permite lhe seja dada uma interpretação extensiva (RI’, 489/240). Sílvio Rodrigues sustenta que o contrato é solene, pela necessidade de ser escrito (Direito civil: dos contratos e das declarações unilaterais da vontade, 27. ed., São Paulo, Saraiva, 2000, v. 3, p. 371); entretanto, segundo Ad Ferreira de Queiroz, “razão não o assiste, porém, porque não há solenidade alguma, como se exige com o casamento ou com as escrituras públicas em geral” (Direito civil: direito das obrigações, Goiânia. Ed. Jurídica. IEPC, 1999, p. 188).

A jurisprudência uníssona do STJ proclama a interpretação restritiva ao contrato de fiança. Bastante referir julgado paradigma da lavra do eminente Ministro Vicente Leal: A jurisprudência assentada nesta Corte construiu o pensamento de que, devendo ser o contrato de fiança interpretado restritivamente, não se pode admitir a responsabilização do fiador por encargos locatícios decorrentes de contrato de locação prorrogado sem a sua anuência, ainda que exista cláusula estendendo sua obrigação até a entrega das chaves” (STJ, 6’ T., REsp 200;154-MG. DJ de 15-10-2001). No mais, lembre-se, por oportuno, a Súmula 214 do STJ: “O fiador não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu”. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 430 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 27/02/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Direito.com aponta que a forma escrita é necessária sob pena de nulidade absoluta. O contrato de fiança deve ser interpretado restritivamente, mas os acessórios (juros, multas, despesas judiciais, honorários de advogado) consideram-se incluídos no principal (CC 822). (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 27.02.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 820. Pode-se estipular a fiança, ainda que sem consentimento do devedor ou contra a sua vontade.

Continuando com Claudio Luiz Bueno de Godoy, como já se acentuou no comentário do CC 818, a fiança encerra contrato que é firmado entre o fiador e o credor da obrigação afiançada. Ou seja, o devedor dele não é partícipe e, assim, não precisa anuir à constituição de garantia da dívida que lhe toca. Isso ainda que, no mais das vezes, o fiador se apresente a seu pedido. Importa é que sua aquiescência é desnecessária, podendo-se mesmo consumar a fiança até contra sua vontade, o que agora, em acréscimo ao que constava do art. 1.484 do CC/1916, se explicita. Isso porquanto, ademais de estabelecer negócio jurídico bilateral de que não faz parte o devedor, a fiança se faz a benefício também da garantia do credor, pelo que ao afiançado não é dado a tanto se opor. Apenas que, aperfeiçoada a fiança sem o seu consentimento, haverá que discutir se lhe é importa a obrigação de substituição do fiador, de que cuida o CC 826, e o que lá se apreciará.

Vale, por fim, a ressalva que faz o Min. José Augusto Delgado quanto à abusividade de cláusula-fiança que subscreve, aí sim, o próprio devedor, nomeando a administradora de cartão de crédito para figurar como fiadora na assunção de financiamentos realizados para cobrir as despesas de uso do cartão, sempre à consideração de infração ao preceito do art. 39, I, do CDC, e da falta de informação sobre o exato custo dessa fiança, sempre onerosa (Comentários ao novo Código Civil, coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro, Forense, 2004, v. XI, t. II, p. 182). (Claudio Luiz Bueno de Godoy, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 845 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 27/02/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Para Fiuza, o CC/2002, nesse particular, explicita que pode a fiança ser estipulada ainda que contra a vontade do devedor, referência inexistente no Código de 1916, que mencionava apenas a possibilidade de estipulação sem o consentimento daquele.

A relação jurídico-fidejussória envolve tão-somente o credor da obrigação de terceiro e aquele que a garante, daí tornando prescindível a intervenção do obrigado principal afiançado. Essa a razão pela qual não pode ele se opor à fiança, ou para a sua prestação ser necessário oferecer anuência, podendo, em consequência, o credor eleger o fiador que o afiançado interfira, porquanto a estipulação vem ao interesse exclusivo daquele. Forçoso reconhecer, entretanto, a aplicação residual da norma, sendo certo que, geralmente gratuita a fiança, em regra é concedida por quem favorece o devedor, atendendo-lhe à necessidade de ser afiançado, e, de outro modo, é a mais das vezes este obrigado, por lei ou por acordo das partes, a dar fiador. A fiança onerosa ocorre quando, por exemplo, nos casos das fianças bancárias, o afiançado oferece ao fiador uma devida remuneração pela garantia prestada. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 431 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 27/02/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Em Direito.com, são partes no contrato de fiança o fiador (pessoa capaz) e o credor da obrigação garantida. A vontade do devedor principal (afiançado) é irrelevante. O contrato pode ser estabelecido até mesmo contra a vontade do devedor, uma vez que ele não cria nenhuma interferência na esfera jurídica deste. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 27.02.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Direito Civil Comentado - Art. 814, 815, 816, 817 - DO JOGO E DA APOSTA - VARGAS, Paulo S. R.


Direito Civil Comentado - Art. 814, 815, 816, 817
- DO JOGO E DA APOSTA - VARGAS, Paulo S. R.
Parte Especial - Livro I – Do Direito das Obrigações
Título VI – Das Várias Espécies de Contrato
 (art. 481 a 853) Capítulo XVII – Do Jogo e da Aposta
 – Seção III - (art. 814 a 817) - vargasdigitador.blogspot.com -

Art. 814. As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou interdito.

§ 1º. Estende-se esta disposição a qualquer contrato que encubra ou envolva reconhecimento, novação ou fiança de dívida de jogo; mas a nulidade resultante não pode ser oposta ao terceiro de boa-fé.

§ 2º. O preceito contido neste artigo tem aplicação, ainda que se trate de jogo não proibido, só se excetuando os jogos e apostas legalmente permitidos.

§ 3º. Excetuam-se, igualmente, os prêmios oferecidos ou prometidos para o vencedor em competição de natureza esportiva, intelectual ou artística, desde que os interessados se submetam às prescrições legais e regulamentares.

Na toada de Claudio Luiz Bueno de Godoy, antes tratada a matéria logo após o contrato de seguro, mas de que se diferencia porquanto a álea que lhe é inerente tem mesmo um intuito especulativo, ao revés do ajuste securitário, mercê do qual o risco se cobre calculando-se a probabilidade de sua ocorrência e formando-se um fundo mutualista a suportá-lo (ver comentário ao CC 757), tudo enquanto resultante de um propósito previdenciário, indenizatório, dá-se o Código Civil de 2002, no artigo em tela, a tratar do jogo e da aposta. Fá-lo com unidade de regramento, muito embora se diferenciem, conceitualmente, o jogo e a aposta. No primeiro, duas ou mais pessoas prometem, entre si, pagamento a quem um evento incerto, aleatório e de puro azar vier a favorecer. No segundo caso, promete-se igual pagamento, mas àquele, cuja opinião divergente vier a se mostrar consonante com o resultado de um mesmo evento incerto, aleatório. Costuma-se reservar aos contendores, no jogo, papel ativo, que interfere no resultado, ainda que a priori incerto. Já na aposta seu papel é passivo, de mera expectativa sobre o resultado de evento que lhes é estranho, mas sobre cuja ocorrência apostaram. Assim, nos exemplos citados por Caio Mário (Instituições de direito civil, 11. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2004, v. III, p. 483), um mesmo evento pode caracterizar-se como jogo ou aposta, dependendo da conduta dos participantes. Se duas pessoas disputam uma luta, prometendo-se, entre si, pagamento ao vencedor, jogam; se expectadores, porém, entre si prometem pagamento conforme quem seja o vencedor, apostam. Pois muito embora o legislador cuide e tipifique o jogo e a aposta como contratos, assim nominados, recusa-lhes efeitos normais, por não os reputar socialmente úteis. Neste sentido, dispõe serem incobráveis as dívidas resultantes de jogo ou aposta. Mas, em contrapartida, estabelece a Irrepetibilidade do quanto, voluntariamente, a esse título se pagou. Disso resulta que o credor pode reter o pagamento que voluntariamente lhe tenha sido feito (soluti retentio). É o clássico figurino das denominadas obrigações naturais.

Tradicionalmente, e em especial com fundamento na entrevisão de dois elementos essenciais no vínculo obrigacional, o débito e a responsabilidade (teoria dualista da obrigação), sempre foi costume definir a obrigação natural, também e por isso chamada imperfeita, todavia jurídica, como aquela com todos os seus elementos integrantes, ou seja, sujeito (credor e devedor), objeto (prestação) e a relação vinculativa, mas aqui, a despeito da existência de um débito, sem a responsabilidade do devedor, i.é, sem garantia efetivável por meio do direito de ação, assim sem a coercibilidade.

Certo que hoje, inclusive conforme preceitos expressos de outras legislações (v.g., art. 2.034 do Código Civil italiano e art. 402 do Código Civil português), se venha defendendo a ideia de que a obrigação natural represente mesmo um dever extrajurídico, mas a que o direito, porquanto integrado a outros sistemas normativos de conduta, parra além do subsistema jurídico, reconhece um efeito, justamente o da Irrepetibilidade do voluntário pagamento, tudo como imperativo de justiça, como corolário de uma regra social de conduta, segundo a qual se aceita um dever de honrar dívidas de jogo ou aposta, destarte quando adimplidas, pela vontade do devedor, operando o direito para evitar a repetição, desse modo preservando-se solução de equidade, impedindo o retorno a uma situação de injustiça (Ver Fernando Noronha. Direito das obrigações. São Paulo, Saraiva, 2003, v. I, p. 232-4). A aplicação da regra em comento, porém, pressupõe diferenciação inarredável à luz da respectiva sistematização. Afinal, são distinguíveis os jogos proibidos, autorizados ou tolerados. Jogos ou apostas autorizados, como as loterias – aqui subsumidas a seu conceito, muito embora alhures se sustente diferença conceitual – ou o turfe, são lícitos e geram efeitos jurídicos normais, erigindo-se em obrigações perfeitas. É o que se prevê no § 2º, segunda parte, do preceito em exame, e logo no § 3º, igualmente dizendo-se exigíveis prêmios oferecidos em competições de variada natureza, desde que nos moldes de norma autorizativa legal e regulamentar – verdadeiros concursos. Jogos ou apostas proibidos são, por exemplo, as loterias não autorizadas, como o jogo do bicho, ou os jogos de azar referidos pelo art. 50 da Lei das Contravenções Penais. Mas há também os jogos tolerados, de menor reprovabilidade, em que o evento não depende exclusivamente do azar, mas igualmente da habilidade do participante, como alguns jogos de cartas. Por isso a legislação não os proíbe, por considera-los uma diversão sem maior proveito, mas pelo mesmo motivo não lhes emprestando a natureza de obrigação perfeita. Pois como se expressa no Código Civil, no caput e nos parágrafos do artigo em comento, salvo se autorizados, os jogos e apostas não induzem obrigação coativa que possa ser judicialmente exigida, muito embora não caiba ao devedor que voluntariamente tenha pago dívida daí originária postular a repetição de quanto pagou, salvo se, como adiante se referirá, esse pagamento prejudicou menor ou interdito.

Bem de ver, todavia, que boa parte da doutrina, antes da edição do Código Civil de 2002, por exemplo tal qual já defendia Orlando Gomes (Contratos, 9. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1983, p. 484), sustentava que os jogos proibidos não ensejavam nem mesmo uma obrigação natural, portanto inclusive sem o efeito da soluti retentio, ao revés, configurando contrato nulo de todo. De fato, acentua, já sob a égide do Código Civil de 2002, Fernando Noronha (op. cit., p. 233) que, a rigor, o regramento presente, no seu todo, aplica-se aos jogos tolerados, reservando-se ao pagamento de dívidas oriundas de jogos proibidos a concorrência da disposição do CC 883, destarte não se permitindo ao pagador recobrar, porém igualmente não se admitindo a retenção pelo recebedor.

Ressalva ainda a lei que, cuidando-se de dívida de jogo que tipifique uma obrigação natural, se o perdedor é menor, absoluta ou relativamente incapaz, ou interdito, veja-se, por qualquer causa, como o intuito é a sua proteção, eventual pagamento que tenha feito poderá, aí excepcionalmente, ser repetido, portanto descabendo ao credor retê-lo, de resto em sistemática diversa do adimplemento de obrigações perfeitas. Da mesma forma, se o pagamento da dívida de jogo foi feito mediante dolo, mas não erro, bem assim mediante coação, deve-se acrescentar, porque também o caso é de proteção da vítima, o pagador, perdedor do jogo ou aposta, terá direito à repetição. Por fim, explicita-se, no § 1º, tal como se fazia no CC/1916, que a disposição do caput, a respeito da obrigação natural que estipula, se aplica também a qualquer contrato que encubra ou envolva o reconhecimento, novação ou fiança de dívida de jogo.

A ideia fundamental é que, nesse específico caso de obrigações naturais, porque despidas de conteúdo moral, e portanto socialmente inúteis, mesmo sua confirmação ou substituição por um negócio jurídico típico, como a entrega de um título de crédito, ou o estabelecimento de uma novação, da mesma forma não ensejará exigibilidade do devedor. assim, por exemplo, se o perdedor emite uma nota promissória tendo como causa a dívida de jogo, igualmente ela não será dele exigível. Apenas se preserva, no parágrafo em exame, eventual direito de terceiro de boa-fé, por exemplo u m endossatário, insciente da origem da cambial, quando a tenha recebido. Por identidade de motivos não terá cabimento, também, a novação dessa espécie de obrigação natural (não outras), ou a fiança que se tenha dado para sua garantia. (Claudio Luiz Bueno de Godoy, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 838-39 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 21/02/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Segundo a doutrina espancada por Ricardo Fiuza, impende reconhecer, de pronto, na assertiva legal de as dívidas de jogo ou aposta não obrigarem ao pagamento, a negação da lei aos efeitos pretendidos pelas partes. Embora arrolados como contratos, Silvio Rodrigues aponta a contradição quando “o legislador proclama a inexigibilidade da dívida” (Direito civil; dos contratos e das declarações unilaterais da vontade, 27.ed., são Paulo, Saraiva, 2000, p. 364).

A norma tratou de sanar a falha do CC de 1916, acrescentando os §§ 2º e 3º do CC 814, os quais excetuam da regra geral prevista no caput do reportado dispositivo os jogos e apostas legalmente permitidos e os prêmios oferecidos ou prometidos para o vencedor em competição de natureza esportiva, intelectual ou artística, desde que os interessados se submetam às prescrições legais e regulamentares. Aliás, nesse sentido, a jurisprudência vinha se norteando, sendo suficiente citar: “O art. 1.477 não incide sobre a Loteria Esportiva” (Iff, 494/197).

Diante de tais consequências jurídicas, onde se torna inexigível a perda experimentada pelo jogador inexitoso, e, por outro lado, irrecuperável a quantia daquele que, vencido, satisfez voluntariamente a dívida, a lei fulmina de nulidade, de conseguinte, qualquer contrato que envolva o reconhecimento, novação ou fiança de dívida de jogo, não alcançando, porém, o terceiro de boa-fé, a cujo respeito impõe-se uma aferição complexa de tal qualidade.

Submetidos aos mesmos preceitos, inclusive porque vinculados ao mesmo elemento sorte, jogo e aposta, todavia, merecem conceituações distintas. Essa distinção, recolhe-se, pela clareza do magistério de Maria Helena Diniz: ‘jogo é o contrato em que duas ou mais pessoas prometem, entre si, pagar certa soma àquela que conseguir um resultado favorável de um acontecimento incerto, ao passo que aposta é a convenção em que duas ou mais pessoas de opiniões discordantes sobre qualquer assunto prometem, entre si, pagar certa quantia ou entregar determinado bem àquela cuja opinião prevalecer em virtude de um evento incerto” (Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais, 16.ed., São Paulo, Saraiva, 2001, v. 3, p. 418). (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 428 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 21/02/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

No lecionar de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, jogo e aposta são contratos, uma vez que resultam do encontro de vontades visando à produção de efeitos jurídicos. Diferenciá-los não é tarefa simples à luz da doutrina e da lei. jogo, para os romanos era alearum lusus e aposta sponsio.

Doutrinariamente há dois critérios distintivos: a) pelo critério da participação, no jogo os contratantes participam da atividade da qual depende o resultado; na aposta, não; b) pelo critério do motivo, o jogo é motivado pela distração ou ganho, enquanto a aposta visa a fazer prevalecer uma afirmação.

No Direito Penal, a Lei das Contravenções Penais (Decreto-lei n. 3.688/1941) tipifica como contravenção a exploração e a participação em jogos de azar (art. 50). Neste conceito a Lei das Contravenções Penais inclui, expressamente as apostas, ao considerar como “jogos de azar”: a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte; b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas; c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva.

A realidade social demonstra que esses termos são utilizados sem atenção ao rigor dogmático. Assim, nomeiam-se como jogos, a loteria, a rifa e o jogo do bicho, embora, em todos esses casos, a ausência de participação e o intuito de prevalecimento de palpites os insiram no conceito de aposta.

A ausência de critério distintivo claro perde o relevo na medida em que a lei os equipara.

Os jogos e as apostas podem ser proibidos, permitidos ou autorizados. Quando são legalmente autorizados, o contrato cria obrigação civil comum, que sujeita o devedor ao pagamento forçado em caso de inadimplemento. É o que ocorre em relação às loterias exploradas pelo Estado e com as apostas do turfe (Lei n. 2.220/1924; Dec. n. 24.646/1934; Decreto-lei n. 8.371/1945; Lei n. 2.820/1956; Decreto n. 41.561/1957; Lei n. 4.096/1962).

Também obrigam civilmente as promessas de prêmios ao vencedor de competição de natureza esportiva, intelectual ou artística.

Conforme disposto no § 2º do CC 814, os jogos e as apostas autorizados estão excluídos das disposições deste Capítulo do Código Civil, que se aplica, portanto, somente aos jugos e às apostas proibidos e meramente permitidos ou tolerados.

As dívidas de jogos proibidos ou meramente permitidos não podem ser cobradas pelo credor embora não possam ser repetidas, caso espontaneamente pagas, conformando obrigação natural, na qual há debitum mas não obligatio.

A repetição do pagamento é, no entanto, devida, se houve dolo por parte de quem recebeu ou se quem pagou for menor ou interdito. O dispositivo equipara, nos efeitos, a dívida resultante de negócios proibidos e, portanto, nulos, e a que resulta de jogo ou aposta permitidos ou tolerados.

São nulos os contratos que visem a encobrir a dívida de jogo ou de aposta, pois são negócios simulados. São, igualmente, nulos os negócios que impliquem o reconhecimento da dívida de jogo, tais como a confissão de dívida, novação, fiança e títulos de crédito. A nulidade não pode ser oposta a terceiro de boa-fé.

Caio Mário entende que são nulas a locação contratada e a sociedade constituída com a finalidade de exploração de jogo, ressalvando que OERTIMANN admite o mandato para jogos permitidos (Caio, M. da Silva, Pereira. Instituições de Direito Civil, v. III, 11.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 486). O dispositivo em comento não determina a nulidade desses atos, que somente serão nulos, segundo os preceitos da Parte Geral, em razão da ilicitude do objeto. Portanto, a ressalva de OERTIMANN estende-se à locação contratada e à sociedade constituída, pois tais negócios somente serão nulos uma vez que visem a promoção de jogos ou de apostas proibidos. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 21.02.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 815. Não se pode exigir reembolso do que se emprestou para jogo ou aposta, no ato de apostar ou jogar.

Entendendo o Código, o artigo em tela, para Claudio Luiz Bueno de Godoy, da mesma forma que o fazia o art. 1.478 do CC/1916, repele a contratação do mútuo, para o jogo ou aposta, no ato em que são efetivados. A ideia fundamental está em evitar contratação que favoreça ou facilite a prática do jogo ou aposta, quando não sejam devidamente autorizados, porquanto então lícitos e dotados de normal eficácia civil (em sentido diverso, sustenta Silvio Venosa que mesmo empréstimo concedido para jogo ou aposta lícitos, mas no ato do jogo ou aposta, é irregular que não permite cobrança. Direito civil, 3.ed. São Paulo, Atlas, 2003, v. III, p. 415).

Trata-se mesmo de uma hipótese em que o motivo da contratação, porque se revela no ato do jogo ou da aposta, assim necessariamente tornando-se comum às partes, prejudica a higidez do negócio praticado, na exata esteira do princípio que hoje contém o CC 166, III, malgrado aqui com diferente efeito. Ou seja, se se contrata mútuos, em função do jogo ou da aposta, veja-se, no momento em que se joga ou se aposta, evidencia-se motivação que o ordenamento rejeita, aqui vedando que possa ser cobrado o reembolso do quanto naquela circunstância se emprestou. Em outras palavras, tem-se mesmo uma extensão da regra do CC 814m antes examinado. Se não se pode cobrar dívida resultante de jogo ou aposta, quando não autorizados, da mesma forma não se pode cobrar o que, no ato do jogo ou da aposta, se emprestou para apostar ou jogar. Se, todavia, o empréstimo se fez antes ou depois do momento do jogo ou da aposta, ainda que em função deles, não incide a regra do artigo em comento, ao pressuposto de que então não exteriorizada a motivação irregular, ressalvada sempre a prova, especialmente no caso do jogo proibido, de que essa razão determinante se tenha ostentado comum, mesmo quando a contratação não seja simultânea ao jogo ou à aposta, aí por aplicação autônoma da regra geral, já citada, do CC, 166, III.

Por fim, pouco importa, ao influxo da regra em comento, que tenha o empréstimo, se efetuado no momento do jogo ou da aposta para que um ou outro se efetive, provindo de outro participante da empreitada ou de terceiro. (Claudio Luiz Bueno de Godoy, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 840 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 21/02/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Para Fiuza, uma das medidas implementadas pelo codificador brasileiro de 1916 e mantida pelo CC/2002 consiste em estender a mesma injuridicidade que estigmatiza a dívida de jogo ou aposta ao mútuo contratado pelo ato de apostar e jogar, “por constituir incremento ao vício e representar a exploração de um estado de superexcitação em que se encontra o jogador” (RI’, 147/690). Todavia, acrescenta Maria Helena Diniz que “se o empréstimo foi feito antes do jogo, para obter meios para fazê-lo, ou depois do jogo, para pagar o que nele se perdeu anteriormente, esse débito poderá ser exigido judicialmente” (Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais, 16.ed. São Paulo Saraiva, 2001, v. 3. P. 424). (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 428 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 21/02/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

No entendimento de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, a proibição de cobrar mútuo realizado para o fomento de jogo ou de aposta somente incide se o empréstimo é feito no ato da aposta ou do jogo, de modo a assegurar o conhecimento do mutuante quanto à finalidade que o mutuário pretende dar ao empréstimo. Assim, mesmo que o empréstimo seja feito no momento do jogo ou da aposta, se o mutuante, prova que não tinha conhecimento do motivo da tomada do empréstimo, pode cobrar a dívida. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 21.02.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 816. As disposições dos CC 814 e 815 não se aplicam aos contratos sobre títulos de bolsa, mercadorias ou valores, em que se estipulem a liquidação exclusivamente pela diferença entre o preço ajustado e a cotação que eles tiverem no vencimento do ajuste.

Para Bueno de Godoy, o artigo presente, em boa hora, reverteu a equiparação, ao jogo ou à aposta, que o CC/1916, no art. 1.479, impunha às operações com títulos, valores ou mercadorias cotáveis em bolsa. São o que sempre se chamou de contratos diferenciais, em que se negociam títulos, valores ou mercadorias, mas para sua liquidação pela diferença entre o preço convencionado e a cotação que eles tiverem no instante do vencimento. São as operações de mercado a termo, de bolsa de futuros, como a de mercadorias, por exemplo, em que não se quer, no vencimento, propriamente a entrega do produto, mas o pagamento da diferença entre seu preço de aquisição e o de sua cotação à época desse termo avençado. É de ver que esses contratos diferenciais, além de comuns na prática negocial, já vinham inclusive regrados por normatização especial, como lembra Jones Figueiredo Alves (Novo Código Civil comentado, coord. Ricardo Fiuza, São Paulo, Saraiva, 2002, p. 738), pelo que cabia mesmo à nova legislação civil abolir sua equiparação ao jogo ou à aposta. Ressalva-se apenas a necessidade de devida correção gramatical, inexistente o plural no verbo estipular, utilizado corretamente na forma singular no CC/1916. (Claudio Luiz Bueno de Godoy, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 840-41 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 21/02/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Na toada de Ricardo Fiuza, o CC/2002 aboliu o princípio da equiparação. Efetivamente, equiparar as operações das bolsas de futuros a jogo ou aposta era algo que não podia permanecer no Código Civil. Observe-se que o Decreto-Lei n. 2.286, de 23-7-1986, já dispõe sobre a cobrança de impostos nas operações a termo de bolsas de mercadorias ou mercados outros de liquidações futuras, realizadas por pessoa física, tributando os rendimentos e ganhos de capital delas decorrentes. E no artigo 3º são definidos como valores mobiliários sujeitos ao regime da Lei n. 6.385, de 7-12-1976, os índices representativos de carteiras de ações e as opções de compra e venda de valores mobiliários, sendo certo que o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central do Brasil, através das Resoluções n. 1.190/86 e 1.645/89, respectivamente, referiam-se às bolsas, cujo objetivo é, justamente, a organização de um mercado livre e aberto para a negociação de produtos derivativos de mercadorias e ativos financeiros.

Isto já existe no Brasil desde 1986, quando foi criada a Bolsa de Mercadorias & Futuros, que realiza um volume de negócios equivalente a dez vezes o nosso Produto Interno Bruto. Tais bolsas existem na Alemanha, na França, na Itália, na Suíça, na Austrália, na Áustria, na Bélgica, em Luxemburgo, na Holanda, no Reino Unido e sobretudo nos Estados Unidos. Ser contra a existência dos negócios realizados nas Bolsas de Mercadorias e Futuros com base na afirmativa de eles terem por objeto negócios equiparados a jogo e aposta é despiciendo, porque nas clássicas Bolsas de Valores as ações compradas ou vendidas também variam de preço de um dia para o outro, sendo essa operação absolutamente aceitável e tributada.

Os negócios de mercadorias, derivativos e futuros, têm seu risco e a possibilidade sempre presente de, de um lado, alguém perder, e, de outro, alguém ganhar tal como ocorre nas Bolsas de Valores clássicas. E isso jamais foi considerado ilegal por constituir jogo ou aposta proibidos. Mutatis, mutandis, é o que ocorre nos negócios de títulos de bolsas de mercadorias, derivados e futuros, supracitados, mesmo quando a venda não é feita e o negócio se desfaz pelo pagamento da diferença, no preço, pelo que perdeu.

Afinal, só o volume negociado na Bolsa de Mercadorias & Fundos demonstra a sua importância, pois permite, entre outras coisas, a formação transparente dos preços futuros de commodities da pauta comercial brasileira, tais como o café, o açúcar, a soja e o algodão, facilitando as respectivas vendas a termo no Brasil e no exterior.

Apresentou-se imperativa, portanto, a adequação do texto à legislação superveniente, diante do que dispõe o Art. 1º da Resolução n. 01/2000 do Congresso Nacional. Este foi o escorço doutrinário que embasou a emenda na fase legislativa aditiva em sede da referida Resolução.

Jurisprudência: “A operação de compra de títulos e venda destreza, terceiro não se enquadra no art. 1.479 do Código Civil/1916” (RT, 51ü1146). (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 428-9 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 21/02/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Na balada de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, o dispositivo cuida do contrato diferencial e explicita que as disposições sobre jogo e aposta a ele não se aplicam.

Contrato diferencial é aquele em que se convenciona o pagamento segundo a diferença entre o valor atual e o valor futuro de um título ou de uma mercadoria. É o contrato típico das operações de mercado a termo, de bolsa de futuros. É atividade financeira típica que somente tem de semelhante com os contratos de jogo e de aposta a aleatoriedade dos ganhos. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 21.02.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 817. O sorteio para dirimir questões ou dividir coisas comuns considera-se sistema de partilha ou processo de transação, conforme o caso.

Sob a luz de Claudio Luiz Bueno de Godoy, sem nenhuma alteração em relação ao CC/1916, o artigo em comento bem acentua não se considerar jogo ou aposta o sorteio que se faça para solução de impasses, divergências ou dificuldades. Recorre-se a uma álea que, porém, coloca-se muito distante do propósito do jogar ou apostar, valendo, conforme o caso, como transação ou partilha. Pense-se no exemplo, citado por José Maria Trepat Cases (Código Civil comentado, coord. Álvaro Vilaça Azevedo. São Paulo, Atlas, 2003, v. VIII, p. 381), em que duas pessoas vão comprar um carro em prestações, que dividirão, na ordem que um sorteio determinar, tanto quanto, acrescenta-se, podem solver divergência daí resultante pelo mesmo recurso. Ou, ainda, os casos de divisões de coisas comuns ou de partilha de quinhões hereditários, cuja escolha se pode fazer por sorteio. Também as loterias autorizadas o envolvem, tanto quando nos contratos de capitalização, de consórcio, também haverá sorteio, portanto nada estranho ao sistema positivo como um todo, mesmo nos lindes do Código Civil, de que é um exemplo o sorteio realizado na hipótese dos CC 858 e 859. (Claudio Luiz Bueno de Godoy, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 841 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 21/02/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

No lecionar de Ricardo Fiuza, a norma não considera essa espécie de sorteio como jogo e aposta, quando se trate de desate de pendências condominiais, não incidindo sobre ele as regras antes analisadas. É que, em tais hipóteses, não existem o lucro ou a perda, apenas elege-se o critério aleatório para o sistema de partilha, em relação aos bens comuns, ante a falta de outro critério que possa dirimir questões de interesse dos condôminos, havendo-se ainda, tal critério como um processo de transação. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 429 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 21/02/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Encerrando o capítulo com Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, do mesmo modo que o CC 816, o CC 817 cuida de retirar da incidência das disposições relativas aos contratos de jogo e de aposta o sorteio que visa à divisão de coisas comuns. Conforme expresso no dispositivo, tal sorteio pode representar sistema de partilha ou de transação. Tendo-se em vista a finalidade com que é realizado nada tem de jogo ou de aposta. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 21.02.2020,



 corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Direito Civil Comentado - Art. 809, 810, 811, 812, 813 - DA CONSTITUIÇÃO DE RENDA - VARGAS, Paulo S. R.


Direito Civil Comentado - Art. 809, 810, 811, 812, 813
- DA CONSTITUIÇÃO DE RENDA - VARGAS, Paulo S. R.
Parte Especial - Livro I – Do Direito das Obrigações
Título VI – Das Várias Espécies de Contrato
 (art. 481 a 853) Capítulo XVI – Da Constituição de Renda
 – Seção III - (art. 803 a 813) - vargasdigitador.blogspot.com -

Art. 809. Os bens dados em compensação da renda caem, desde a tradição, no domínio da pessoa que por aquela se obrigou.

Na constituição onerosa de renda, prevista no art. 804, supra, entrega-se ao rendeiro ou censuário bem móvel ou imóvel que é, verdadeiramente, a contrapartida pelas prestações a cujo pagamento ele se obriga. Pois essa entrega, o que desde o Código de 1916 já se acentuava, é mesmo uma alienação que faz o rentista. Tanto assim é que, conforme redação do art. 1.426 do CC/1916, bem como a do artigo presente, do Código Civil de 2002, os bens dados em compensação da renda que se institui caem no domínio da pessoa que por esta se obrigou. Referem-se ambos os dispositivos à transferência do domínio dos bens ao rendeiro desde a tradição, aqui, todavia, empregada em sentido amplo, portanto abrangendo o registro quando se cuide de bens imóveis, forma pela qual se trate de móveis, e desde o registro, para os imóveis, opera-se a transmissão do domínio dos bens entregues ao rendeiro em compensação do pagamento de prestações periódicas a que ele fica obrigado. O preceito presente foi sempre motivo para caracterização da constituição de renda como contrato real, porque somente é aperfeiçoado com a entrega dos bens ao rendeiro, a despeito de crítica a propósito levantada, como se mencionou no comentário ao CC 804, tanto porque dessa forma se transformaria o ajuste, forçosamente, em trato unilateral, como no mútuo,, quanto porque somente cogitável o registro do imóvel transferido uma vez já existente o contrato, decorrendo o ato já de efeito de sua entabulação. Certo, porém, que a obrigação de pagamento das prestações periódicas instituídas depende, de toda sorte, da entrega dos bens que são sua contrapartida. Se se tem em vista a alienação de bens ao rendeiro, importa não só que os bens sejam alienáveis como também que deles tenha plena disponibilidade o rentista que aliena. Desde a entrega passam a correr por conta do rendeiro os riscos da coisa, de tal arte que o perecimento não o exime da obrigação de adimplir as prestações por que se obrigou. Mas, em se tratando de uma alienação, ao rentista alienante concerne a responsabilidade pela evicção. (Claudio Luiz Bueno de Godoy, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 834 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 20/02/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Sob o prisma de Ricardo Fiuza, a norma opera no sentido de evidenciar, quanto satis, o caráter real do contrato de constituição de renda, visto que à sua caracterização jurídica é a transmissibilidade dominial do bem, em favor do rendeiro, elemento essencial do contrato. O bem entregue ao rendeiro, em compensação da renda, passa a integrar, pela tradição, o seu acervo patrimonial. A renda vinculada ao referido bem torna-se um direito real, obrigando-se o rendeiro, ou censuário, prestá-la ao instituidor, na forma estipulada, sob pena de rescisão contratual. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 425 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 20/02/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

No brilho de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, aponta-se na constituição de renda onerosa, o rendeiro recebe bem móvel ou imóvel. O dispositivo esclarece que a entrega do bem ao rendeiro é feita para a transferência do domínio. Assim, o negócio em que se estipule a entrega de coisa ao devedor para mera fruição não configura constituição de renda, mas negócio atípico. O negócio de transferência do bem ao rendeiro pode ser concomitante à escritura pública de constituição de renda ou ser elaborado em instrumento à parte. A transferência do bem ao rendeiro é onerosa, pois tem como contraprestação o pagamento da renda. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 20.02.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 810. Se o rendeiro, ou censuário, deixar de cumprir a obrigação estipulada, poderá o credor da renda acioná-lo, tanto para que lhe pague as prestações atrasadas como para que lhe dê garantias das futuras, sob pena de rescisão do contrato.

Aprende-se com Claudio Luiz Bueno de Godoy, serem várias as hipóteses que determinam a extinção do contrato de constituição de renda. Em primeiro lugar, pelo implemento do prazo ou pela morte do beneficiário, quando o caso de que se cuidou no comentário ao CC 806, a que ora se remete o leitor. Também desde o Código anterior se reconhecida a possibilidade de a constituição ser extinta pelo resgate, direito potestativo de o devedor antecipar o pagamento das prestações periódicas futuras (v.g., Orlando Gomes. Contratos, 9.ed. Rio de Janeiro, Forense, 1983, p. 461).

O artigo em tela, porém, cuida de caso excepcional de extinção, que se dá pelo inadimplemento da obrigação que tem o rendeiro de pagar as prestações contratuais. Havido esse descumprimento, como de resto é a regra geral dos contratos, abre-se a possibilidade de o credor exigir judicialmente o pagamento das prestações em atraso, com os encargos da mora. Da mesma forma, e de novo como corolário evidente do sistema contratual, pode o credor exigir garantias, sob qualquer de suas espécies (ver CC 805), do pagamento das prestações futuras que se tenham tornado duvidosas, inclusive pelo inadimplemento das vencidas. Isso tudo, segundo o dispositivo presente, sob pena da rescisão (rectius: resolução) do contrato, para Carvalho Santos somente se esgotadas e inexitosas as providencias anteriores (Código Civil brasileiro interpretado, 5. ed. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1951, v. XIX, p. 192), mas lembrando-se aqui concorrer a regra geral do CC 474 e 475, podendo-se, pois, diante do inadimplemento, resolver o contrato, se oneroso, devolvendo-se o bem móvel ou imóvel entregue, assim repondo-se as partes no estado anterior, sem devolução das prestações acaso anteriormente pagas, até então havida posse da coisa a ser devolvida. (Claudio Luiz Bueno de Godoy, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 835 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 20/02/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Relembrando Ricardo Fiuza, como antes referido, assume o rendeiro, perante o instituidor, a obrigação de restar-lhe renda ou prestação periódica em fase da entrega de certo capital ou bem, vinculados estes à constituição de renda.

O inadimplemento contratual implica o reclamo judicial do credor para a exigibilidade do seu crédito, no atinente às prestações vencidas, bem como poderá o instituidor exigir garantias para as rendas ou prestações futuras na forma do CC 805. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 426 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 20/02/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Segundo Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, como ordinariamente ocorre em casos de inadimplemento, a primeira opção que surge para o credor é a de requerer o cumprimento específico da obrigação mediante execução forçada. O dispositivo dá ao credor, igualmente o direito de requerer que o devedor lhe dê garantia de pagamento das obrigações futuras. Se o contrato for oneroso e o descumprimento for grave, abre-se para o credor o direito de requerer a resolução do contrato e a consequente restituição do bem que tiver transferido ao rendeiro. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 20.02.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 811. O credor adquire o direito à renda dia a dia, se a prestação não houver de ser paga adiantada, no começo de cada um dos períodos prefixos.

Na ribalta de Claudio Luiz Bueno de Godoy, a prestação devida em virtude da constituição de renda pode ser paga, conforme pactuarem as partes, mediante periodicidade variada. Destarte, pode-se pactuar seu pagamento de forma mensal, semestral, anual e assim por diante. Da mesma maneira, podem as partes estabelecer que o pagamento da prestação se dê ao início de cada período prefixado, portanto de modo adiantado. E, nessa hipótese, devida a prestação ao início do período, nenhuma repetição haverá, por exemplo, se o interregno não se completa pela morte do credor. Isso porquanto, a rigor, a cada início de período já terá direito o credor à percepção da renda relativa a todo o interregno. Dito de outra maneira, e na esteira da disposição do artigo presente, apenas quando não houver de ser a renda paga de maneira adiantada é que ela se proporcionaliza, sendo, malgrado paga de uma só vez, ao final do período, adquirida dia a dia, assemelhada, pois, aos frutos (CC 1.215). Assim sendo, se falecido o credor no curso do período, haverá direito, transmissível aos herdeiros, de percepção da renda do período, mas proporcional ao tempo dentro dele decorrido, até o óbito. (Claudio Luiz Bueno de Godoy, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 835 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 20/02/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Revendo Ricardo Fiuza, em análise do dispositivo, o notável Clóvis Beviláqua comenta, com rigor e brilho: “Pela constituição de renda, o instituidor entrega o capital, e o devedor obriga-se a pagar, por período, as prestações combinadas. Se o pagamento se faz por períodos vencidos, a cada fração do tempo do período corresponderá uma fração proporcional da prestação. A prestação é anual, suponha-se, e já decorreram cem dias; a renda devida será a do ano menos a proporção correspondente do tempo necessário para completa-lo. Divide-se a renda anual pelo número de dias que tem o ano, e multiplica-se o quociente pelo número de dias decorridos” Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado: obrigações. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1919, v. 5, t. 2, p. 177).

Diante da magistral lição aqui colacionada, conclui-se que a renda poderá, uma vez não paga por adiantamento, no começo do período correspondente e prefixado, ser feita em parcelas, caso em que terá o instituidor direito à renda dia a dia, observadas as frações proporcionais. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 426 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 20/02/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Na toada de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, se o contrato nada dispuser a respeito, a renda deve ser paga após cada período. Ela é devida pro rata die, i.é, na proporção do número de dias devidos no momento do pagamento. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 20.02.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 812. Quando a renda for constituída em benefício de duas ou mais pessoas, sem determinação da parte de cada uma, entende-se que os seus direitos são iguais; e, salvo estipulação diversa, não adquirirão os sobrevivos direito à parte dos que morrerem.

No lecionar de Claudio Luiz Bueno de Godoy, a constituição de renda, gratuita ou onerosa, poderá beneficiar mais de uma pessoa. Nesse caso, pode o instituidor estabelecer a cota a cada qual dos beneficiários, pertencente. Se não o fizer, porém, presume a lei, desde o CC/1916 (art. 1.429), que os direitos dos beneficiários serão iguais, ou seja, cada um terá direito a uma mesma cota da renda, assim dividida em partes iguais, conforme o número de beneficiários. Mais, explicita o dispositivo que, entre os beneficiários, não haverá direito de acrescer. Isso significa que, faltando um dos beneficiários, sua parte não acresce à dos demais, frise-se, a não ser que o inverso tenha sido disposto pelo instituidor. Vale dizer que o direito de acrescer não existe como regra, todavia no silêncio do contrato nada impedindo seu estabelecimento na instituição. Apenas será presumido o direito de acrescer na excepcional hipótese de a renda ser instituída a marido e mulher, mercê de socorro analógico ao CC 551, parágrafo único, de resto tal como de maneira tranquila já se entendia desde a vigência do CC/1916.

A controvérsia que aqui se coloca, tanto quanto na interpretação do dispositivo que prevê a doação conjunta ou conjuntiva ao casal, está na extensão ou não da regra que faz presumir o acréscimo quando a constituição de renda beneficie não pessoas casadas, mas que vivam em união estável. Pois a despeito de não haver nenhuma diferença de dignidade entre ambas as instituições constitucionalmente protegidas, cujo idêntico conteúdo material está no desenvolvimento de uma relação de afetividade, induzindo a união estável a um vínculo familiar idêntico àquele decorrente do casamento, o que as partes não querem, na união estável, por natureza informal. É possível saber, sempre, mercê do registro público, se há casamento, quando começou e se terminou. Daí a existência de diferenças resultantes da forma de uma ou outra espécie de união. Por isso, exemplificativamente, o casamento emancipa o cônjuge menor, mas não a união estável, cuja existência necessariamente não se dá a saber a terceiros. Parece ser esse o caso, também, da regra em comento, eis que pressuposta a existência do casamento, tanto quanto no momento da doação, no exato instante da constituição. Ou seja, importa a publicidade inerente ao casamento, que permite, garantindo-se a segurança jurídica, saber de sua consumação e persistência logo quando se efetiva a doação ou, no caso, a constituição de renda. Assim, entende-se, a despeito da discussão que a propósito há, mesmo no tocante à própria regra do CC 551 (v.g., estendendo o preceito à união estável: Arnaldo Rizzardo. Contratos, 3. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 464. Em sentido contrário: Sylvio Capanema de Souza. Comentários ao novo Código Civil, coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro, Forense, 2004, v. VIII, p. 223), que, pretendendo constituir renda em favor de companheiros, e tencionando o acréscimo de que ora se trata, deve estipulá-lo, expressamente, o instituidor, repita-se, basicamente por não se ter como saber, a priori, da existência e mesmo da persistência de uma eventual união estável entre os beneficiários da renda, no momento da sua instituição, o que, admitida a tese inversa, fomentaria a potencialidade de controvérsias, a dano da segurança jurídica.

Bem de ver que todo o regramento examinado pressupõe a instituição de beneficiários simultâneos, embora no CC/1916 se entendesse nada impedir a instituição de beneficiários sucessivos, portanto para que um sucedesse ao anterior, quando falecido, mas por testamento e cláusula fideicomissária, segundo Clóvis Beviláqua (Código Civil comentado. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1939, v. V, p. 186), o que, não é uma forma possível de instituição de renda, forçosamente inter vivos (CC 803). (Claudio Luiz Bueno de Godoy, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 835-36 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 20/02/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Na concepção de Ricardo Fiuza, ressabido que a constituição de renda pode ser instituída com pluralidade de beneficiários, presume-se, à falta de disposição expressa sobre a parte de renda de cada um deles, que a perceberão em perfeita paridade. Também não haverá direito aos beneficiários sobrevivos de acrescer a renda atribuída ao que vier a falecer, salvo por prévia estipulação. Excetua-se dessa hipótese a circunstância de serem os beneficiários casados entre si, operando-se, nesse sentido, por analogia, a regra do parágrafo único do CC 551, ou seja, subsistirá na totalidade a renda para o cônjuge beneficiário sobrevivo, que a acrescerá à sua parte. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 426 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 20/02/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Para Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, nada impede que a renda seja devida em relação a mais de uma pessoa. Se o contrato não fixar o valor devido a cada um dos beneficiários, presumem-se credores de partes iguais. O direito de acrescer não se presume e, portanto, com a extinção a renda em relação a um dos beneficiários, a parte dele não acresce à parte dos demais, salvo disposição contratual em sentido contrário. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 20.02.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Art. 813. A renda constituída por título gratuito pode, por ato do instituidor, ficar isenta de todas as execuções pendentes e futuras.

Parágrafo único. A isenção prevista neste artigo prevalece de pleno direito em favor dos montepios e pensões alimentícias.

Na lembrança de Claudio Luiz Bueno de Godoy, desde o anterior Código Civil se permitia, exclusivamente na constituição de renda gratuita em favor de terceiro, sua clausulação pelo instituidor, como de resto se pode dar, no sistema brasileiro, nas liberalidades em geral que alguém faça beneficiando outrem. Persiste o Código Civil de 2002, todavia, na omissão em que, no caso, já incidia o CC/1916 quando aludia à instituição, na constituição gratuita, tão somente de impenhorabilidade da renda, assim deixando de mencionar a inalienabilidade e mesmo a incomunicabilidade. Mas sempre se entendeu que todas essas cláusulas, esses vínculos pudessem ser impostos, desde que a constituição fosse gratuita, já que, no nosso ordenamento, repita-se, apenas nas liberalidades são instituíveis tais restrições. Vale lembrar, hoje consolidada no CC 1.911, a orientação, já antes sumulada pela Suprema Corte (Súmula n. 49), no sentido de que a cláusula de inalienabilidade induz, necessária e automaticamente, porquanto mais extensa, a incomunicabilidade e impenhorabilidade, que afinal, de alguma forma, acabam implicando uma alienação. A exigência de que a imposição das cláusulas se dê em constituição de renda favorecendo terceiro beneficiário atende à vedação genérica de clausulação do próprio bem, em especial, com impenhorabilidade.

Por fim, estabelece o artigo em comento uma restrição legal para os montepios e para as pensões alimentícias. Ou seja, impõe-se uma impenhorabilidade legal, que vem desde o Regulamento n. 737, de 1850, em favor das instituições de rendas alimentícias, como é aquela devida, nos montepios, aos beneficiários, também ditos pensionistas, de alguém via de regra falecido. É, enfim, nesse caso, a impenhorabilidade do pecúlio devido aos beneficiários. Ainda em outras palavras, a ideia é que essas pensões instituídas não respondem pelas dívidas do instituidor, dada a natureza alimentar em favor de seus beneficiários. (Claudio Luiz Bueno de Godoy, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 836-37 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 20/02/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

Encerrando a participação de Ricardo Fiuza no capítulo, a redação atual é a mesma do anteprojeto. Repete o art. 1.430 do CC de 1916, com pequena melhoria de ordem redacional, acrescentando-se parágrafo único.

É lícito ao doador da renda gravá-la com a cláusula de inalienabilidade e impenhorabilidade, isentando-a de todas as execuções pendentes e futuras, “porque, tratando-se de liberalidade, em que o estipulante visa garantir a sobrevivência do beneficiário, a intenção daquele seria frustrada se se possibilitasse a alienação da renda ou sua penhora pelos credores do seu titular” (Silvio Rodrigues, Direito Civil: dos contratos e das declarações unilaterais da vontade, 27. ed., São Paulo, Saraiva, 2000, p. 338-9).

Tal isenção existirá de pleno direito em favor dos montepios e pensões alimentícias, pontificando, a esse comando da lei, a relevância assistencial da constituição de renda. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 426-27 apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 20/02/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Encerrando o capítulo com Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, a renda constituída a título gratuito tem a natureza jurídica da doação e, por isso, sujeita-se às regras relativas a ela. A doação pode ser gravada com as cláusulas de incomunicabilidade, impenhorabilidade e inalienabilidade. Relativamente à renda constituída, a incomunicabilidade deriva da própria natureza do pagamento, equiparável às pensões. A renda é inalienável, porque o contrato não pode ser cedido pelo beneficiário sem a anuência do rendeiro. A impenhorabilidade, conforme o dispositivo, depende de previsão expressa. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 20.02.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).