CÓDIGO
PENAL – DECRETO-LEI N 2.848, DE 07 DE DEZEMBR0 DE 1940 – EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS
DA NOVA PARTE ESPECIAL DO CÓDIGO PENAL - (...) PARTE ESPECIAL - DA PERICLITAÇÃO
DA VIDA E DA SAÚDE - VARGAS DIGITADOR
DA PERICLITAÇÃO DA VIDA E DA
SAÚDE
43. Sob esta epígrafe, o
projeto contempla uma série de crimes de perigo
contra a pessoa, umas já constantes, outros desconhecidos da lei penal vigente.
Pelo seu caráter especial, seja quanto ao elemento objetivo, seja quanto ao
elemento subjetivo, tais crimes reclamam um capítulo próprio. Do ponto de vista
material, reputam-se consumados ou perfeitos desde que a ação ou omissão cria
uma situação objetiva de possibilidade de
dano à vida ou saúde de alguém. O evento, aqui (como nos crimes de perigo
em geral), é a simples exposição a perigo
de dano. O dano efetivo pode ser uma condição de maior punibilidade, mas
não condiciona o momento consumativo
do crime. Por outro lado, o elemento subjetivo é a vontade consciente referida
exclusivamente à produção do perigo. A ocorrência do dano não se compreende na
volição ou dolo do agente, pois, do contrário, não haveria porque distinguir
entre tais crimes e a tentativa de
crime de dano.
44. Entre as novas entidades
prefiguradas no capítulo em questão, depara-se, em primeiro lugar, com o
“contágio venéreo”. Já há mais de meio século, o médico francês Després
postulava que se incluísse tal fato
entre as espécies do ilícito penal,
como já fazia, aliás, desde 1866, a lei dinamarquesa. Tendo o assunto provocado
amplo debate, ninguém mais duvida, atualmente, da legitimidade dessa
incriminação. A doença venérea é uma lesão corporal e de compatibilizar
gravíssimas, notadamente quando se trata da sífilis. O mal da contaminação
(evento lesivo) não fica circunscrito a uma pessoa determinada. O indivíduo
que, sabendo-se portador de moléstia venérea, não se priva do ato sexual, cria
conscientemente a possibilidade de um contágio extensivo. Justifica-se,
portanto, plenamente, não só a incriminação do fato, como o critério de declarar-se
suficiente para a consumação do crime a produção do perigo de contaminação. Não há dizer-se que, em grande número de
casos, será difícil, senão impossível, a prova de autoria. Quando esta não
possa ser averiguada, não haverá ação penal (como acontece, aliás, em relação a
qualquer crime); mas a dificuldade de prova não é a razão para queixar-se de
incriminar um fato gravemente atentatório de um relevante bem jurídico. Nem
igualmente se objete que a incriminação legal pode dar ensejo, na prática, a chantage ou especulação extorsiva. A tal
objeção responde cabalmente Jimenez de Asúa (O delito de contágio venéreo): “... Não devemos esquecer em muitos
outros crimes, que, nem por isso, deixam de figurar nos Códigos. O melhor
remédio é punir severamente os chantagistas, como propõem Le foyer e faux”. Ao conceituar
o crime de contágio venéreo, o projeto rejeitou a fórmula híbrida do Código
italiano (seguida pelo projeto Alcântara), que configura, no caso, um “crime de
dano como dolo de perigo”. Foi preferida a fórmula do Código dinamarquês: o
crime se consuma com o simples fato da exposição a perigo de contágio. O eventus damni não é elemento
constitutivo do crime de maior punibilidade. O costume é punido não só a título
de dolo de perigo, como a título de culpa (isto é, não só quando o agente sabia
achar-se infeccionado, como quando devia sabê-lo pelas circunstâncias). Não se
faz enumeração taxativa das moléstias
venéreas (segundo a lição científica, são elas a sífilis, a blenorragia, o ulcus
molle e o linfogranuloma inguinal, pois
isso é mais próprio de regulamento sanitário. Segundo dispôs o projeto (que
neste ponto, diverge do seu modelo), a ação penal, na espécie, depende sempre
de representação (e não apenas no caso
em que o ofendido seja cônjuge do agente). Este critério é justificado pelo
raciocínio de que de que, na repressão do crime de que se trata, o streptus judicii, em certos casos, pode
ter consequências gravíssimas, em desfavor da própria vítima e da sua família.
45. É especialmente
prefigurado, para o efeito de majoração da pena, o caso em que o agente tenha
procedido com intenção de transmitir
a moléstia venérea. É possível que o rigor técnico exigisse a inclusão de tal
hipótese no capítulo das lesões corporais, desde que seu elemento subjetivo é o
dolo de dano, mas como se trata, ainda nessa modalidade, de um crime para cuja
consumação basta o dano potencial, pareceu à Comissão revisora que não havia
despropósito em classificar o fato entre os crimes de perigo contra a pessoa. No
caso de dolo de dano, a incriminação é extensiva à criação do perigo de
contágio de qualquer moléstia grave.
46. No artigo 132, é
igualmente prevista uma entidade criminal estranha à lei atual: “expor a vida
ou saúde de outrem, a perigo direto e iminente”, não constituindo o fato crime
mais grave. Trata-se de um crime de caráter eminentemente subsidiário. Não o informa o animus
necandi ou o animus laedendi, mas
apenas a consciência e vontade de expor a vítima a grave perigo. O perigo
concreto, que constitui o seu elemento objetivo, é limitado a determinada
pessoa, não se confundindo, portanto, o crime em questão com os de perigo comum
ou contra a incolumidade pública. O exemplo frequente é típico dessa species criminal é o caso do empreiteiro
que, para poupar-se ao dispêndio com medidas técnicas de prudência, na execução
de obra, expõe o operário ao risco de grave acidente. Vem daí que Zurcher, ao
defender, na espécie, quando da elaboração do Código Penal suíço, um
dispositivo incriminador, dizia que este seria um complemento da legislação
trabalhista (wir haben geglaubt, dieser
Artikel werde einen Teil der Arbeiterschutzgesetz-gebung bilden). Este pensamento
muito contribuiu para se formulasse o artigo 132; mas este não visa somente
proteger a indenidade do operário, quando em trabalho, senão também a de
qualquer outra pessoa. Assim, o crime de que ora se trata não pode deixar de
ser reconhecido na ação, por exemplo, de quem dispara uma arma de fogo contra
alguém, não sendo atingido o alvo, nem constituindo o fato tentativa de
homicídio.
Ao definir os crimes de
abandono (artigo 133) a omissão de socorro (artigo 135), o projeto,
diversamente da lei atual, não limita a proteção penal aos menores, mas
atendendo ao ubi eadem ratio, ibi eadem dispositivo, amplia-a aos incapazes em
geral, aos enfermos, inválidos e feridos.
47. Não contém o projeto dispositivo especial sobre
o duelo. Sobre tratar-se de um fato
inteiramente alheio aos nossos costumes, não há razão convincente para que se
veja no homicídio ou ferimento causado em duelo
um crime privilegiado: com ou sem as
regras cavalheirescas, a destruição da vida ou lesão da integridade física de
um homem não pode merecer transigência alguma do direito penal. Pouco importa o
consentimento recíproco dos duelistas,
pois, quando estão em jogo direitos inalienáveis, o mutuus consensus não é causa excludente ou sequer minorativa da
pena. O desafio para o duelo e a aceitação dele são, em si mesmos, fatos
penalmente indiferentes; mas, se não se exaurem como simples jactância,
seguindo-se-lhes efetivamente o duelo, os contendores responderão, conforme o
resultado, por homicídio (consumado
ou tentado) ou lesão corporal.
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