MANUAL
DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – NOÇÕES
PRELIMINARES – PRINCÍPIO DA PERSUASÃO RACIONAL OU DO LIVRE CONVENCIMENTO –
PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE – PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO - VARGAS DIGITADOR
Esse princípio, consagrado
no art. 157 do CPP, impede que o Juiz possa julgar com o conhecimento que eventualmente
tenha extra-autos. Quod non est in actis
non est in hoc mundo. O que não estiver dentro, no processo, é como se não
existisse. E, nesse caso, o processo é o mundo para o Juiz. Trata-se de
excelente garantia para impedir julgamentos parciais. Ele tem inteira liberdade
de julgar, valorando as provas como bem quiser, sem, contudo, arredar-se dos
autos. A fundamentação é de rigor. Sentença sem motivação é uma não sentença,
tanto mais quanto a sociedade e em particular as partes devem saber que motivos
levaram o Magistrado a esta ou àquela posição.
Princípio
da publicidade
Outro princípio
importantíssimo do Processo Penal é o da publicidade,
segundo o qual os atos processuais são públicos.
No Direito pátrio vigora o
princípio da publicidade absoluta, comoo regra. As audiências, as sessões e a
realização de outros atos processuais são franqueados ao público em geral. Em se
tratando de processo da competência do Júri, são impostas algumas limitações
(v. CPP, arts. 476, 481 e 486).
Tal princípio da publicidade
absoluta ou geral vem consagrado como regra no art. 792 do CPP. E deve ser
assim para que a sociedade perceba que a Justiça não é feita entre quatro
paredes. É e deve ser transparente. A despeito de viger tal princípio, o
legislador pátrio admite, também, a publicidade especial ou restrita. Di-lo o §
1º do art. 792. Muito a propósito, também, o inc. LX do art. 5º da Magna Carta:
“A lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa
da intimidade ou o interesse social o exigirem”. E as razões, aqui, são óbvias.
Basta simples leitura desses dispositivos legais.
Por outro lado, a
publicidade não atinge, grosso modo,
os atos que se realizam durante a feitura do inquérito policial, não só pela própria
natureza inquisitiva dessa peça informativa, como também porque o próprio art.
20 do CPP dispõe que a autoridade assegurará no inquérito o sigilo
necessário... Trata-se, de conseguinte, de lex
specialis. Nem se invoque a Constituição. Nela se fala em publicidade dos atos processuais... e os do inquérito
não o são. Nela se fala em litigante... e no inquérito não há litigante. Não obstante,
a Lei n. 8.906/94 O Estatuto da Advocacia), posterior ao Decreto-Lei n.
3.689/41 (Código de Processo Penal) e a este hierarquicamente superior, por ser
Lei e o outro, Decreto-Lei, prevê entre os direitos do Advogado não só o de “comunicar-se
com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração quando estes
se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou
militares, ainda que considerados incomunicáveis” (art. 7º, III), como o de “examinar
em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de
inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade policial,
podendo copiar peças e tomar apontamentos...”(art. 7º, XIV). Então,
praticamente, o princípio da não publicidade dos atos do inquérito sofreu esse
sério revés. Ainda assim, os atos nele realizados não são públicos, isto é, não
se permite que qualquer do povo possa assisti-los, tal como sucede com aqueles
realizados em juízo.
Princípio
do contraditório
A Constituição de 1988 é bem
clara: “Aos litigantes, em processo
judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”
(art. 5º, LV).
E, como se não bastasse
tanta clareza, acentuou: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem
o devido processo legal” (CF, art. 5º, LIV). Claro que nesta expressão – due process of law – estão todas as
garantias processuais.
Aliás, em todo processo de
tipo acusatório, como o nosso, vigora esse princípio, segundo o qual o acusado,
isto é, a pessoa em relação à qual se propõe a ação penal, goza do direito “primário
e absoluto” da defesa. O réu deve conhecer a acusação que se lhe imputa para
poder contrariá-la, evitando, assim, possa ser condenado sem ser ouvido.
Tal princípio
consubstancia-se na velha parêmia audiatur
et altera pars – a parte contrária deve ser ouvida. Traduz a ideia de que a
defesa tem o direito de se pronunciar sobre tudo quanto for produzido em juízo
pela parte contrária. Já se disse: a todo ato produzido por uma das partes
caberá igual direito da outra parte de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que
lhe convenha, ou, ainda, de dar uma interpretação jurídica diversa daquela
apresentada pela parte ex adversa. Assim,
se o Acusador requer a juntada de um documento, a parte contrária tem o direito
de se manifestar a respeito. E vice-versa. Se o Defensor tem o direito de
produzir provas, a Acusação também o tem. O texto constitucional supracitado
quis apenas deixar claro que a defesa não pode sofrer restrições que não sejam
extensivas à acusação. Certo que a lei confere exclusivamente á Defesa o
protesto por novo júri, os embargos infringentes ou de nulidade e até mesmo a
ação de revisão criminal. Faz mais: proíbe a reformatio in pejus (art. 617 do CPP) e permite a absolvição na
hipótese de insuficiência de prova para um decreto condenatório (art. 386, VI,
do CPP). Tudo isso em decorrência do princípio do in dubio pro reo et contra civitatem. Trata-se, em todos esses
casos, de normas inspiradas no princípio do favor
rei ou favor libertatis. O
princípio da proporcionalidade, que se admite na proibição das provas ilícitas
(em favor da Defesa), e a revisão criminal inclusive das decisões do Tribunal
do Júri também nada mais representam que consequências do princípio do favor rei.
De um ponto de vista lógico
tal princípio parecerá, dizia Bettiol, um absurdo, mas, numa perspectiva
política, assinala um avanço da liberdade no árduo caminho que leva a um
processo penal “humano” (G. Bettiol, Instituições
de direito e processo penal, trad. Manuel da Costa Andrade, Coimbra,
Coimbra Ed., 1974, p. 304). Em contrapartida, talvez aqueles benefícios
houvessem sido concedidos à defesa para compensar a desigualdade entre ela e a
acusação, que dispõe de um invejável aparelhamento na fase pré-processual. De qualquer
sorte, Acusação e Defesa estão situadas no mesmo plano, em igualdade de
condições, e, acima delas, o Órgão Jurisdicional, como órgão “superpartes”,
para, afinal, depois de ouvir as alegações das partes, depois de apreciar as
provas, “dar a cada um o que é seu”. O contraditório implica o direito de
contestar a acusação, seja após a denúncia, seja em alegações finais; direito
de o acusado formular reperguntas a todas as pessoas que intervierem no
processo para esclarecimento dos fatos (ofendido, testemunhas, peritos, p.
ex.), de contra-arrazoar os recursos interpostos pela parte ex adversa; direito de se manifestar
sobre todos os atos praticados pela acusação. Não bastasse esse princípio, a
Lei Fundamental acrescenta o da “ampla defesa”. Já aqui se permite à Defesa o
direito de produzir as provas que bem quiser e entender, dês que não proibidas;
direito de contraditar testemunhas; direito de recorrer das decisões que
contrariarem os interesses do acusado; direito de opor exceções (art. 95 do
CPP), de arguir questões prejudiciais; direito de trazer para os autos todo e
qualquer elemento que contradiga a acusação; direito de conduzir para o
processo tudo quanto possa beneficiar o acusado; direito à “defesa técnica”,
tal como se infere dos arts. 261 e 263, todos do CPP, sem embargo de poder
exercer a “defesa material”, consistente em manifestação própria, na
oportunidade do seu interrogatório. Quando alega um “álibi”, quando invoca uma
excludente de ilicitude, quando nega a autoria, tudo integra a defesa “material”.
Alega-se que a Defesa deve falar por último. Depende. Se a prova é produzida
pela Defesa, é a Acusação que fala por derradeiro. E vice-versa. A nosso ver,
quando o Promotor recorre, após as contrarrazões da Defesa, não deveria o
Procurador de Justiça, ao opinar sobre o processo, manifestar-se quanto ao
mérito, e sim sobre o aspecto formal e regularidade do feito. Do contrário estaria,
em última análise, o Ministério Público falando duas vezes... E nem sempre se
manifesta com aquela imparcialidade que é própria do fiscal da lei...
Canotilho, após analisar o sentido constitucional do princípio do contraditório,
conclui implicar ele, em particular, o direito de o réu intervir no processo e
se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros
elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe
designadamente que ele seja o último a intervir no processo, (Canotilho e
Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa anotada. Coimbra, Coimbra Ed., 2003, p. 206).
E no inquérito haverá
contraditório?
Não obstante a Magna Carta
disponha no art. 5º, LV, que “Aos litigantes, em processo judicial ou
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla
defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, o certo é que a expressão “processo
administrativo” não se refere à fase do inquérito policial, e sim ao processo
instaurado pela Administração Pública para apuração de ilícitos administrativos
ou quando se tratar de procedimentos administrativos fiscais, mesmo porque,
nesses casos, haverá a possibilidade da aplicação de uma sanção: punição administrativa,
decretação de perdimento de bens, multas por infração de trânsito, p. ex. Em
face da possibilidade da inflição de uma “pena”, é natural deva haver o
contraditório e a ampla defesa, porquanto não seria justo a punição de alguém
sem o direito de defesa.
Já em se tratando de
inquérito policial, não nos parece que a Constituição se tenha referido ao ele,
até porque, de acordo com o nosso ordenamento, nenhuma pena pode ser imposta ao
indiciado. Ademais, o texto da Lei Maior fala em “litigantes”, na fase da investigação
preparatória não há litigantes... É verdade que o indiciado pode ser privado da
sua liberdade nos casos de flagrante, prisão temporária ou preventiva. Mas,
para esses casos, sempre se admitiu o emprego do remédio heroico do habeas corpus. Nesse sentido, e apenas
nesse sentido, é que se pode dizer que a ampla defesa abrange o indiciado. O que
não se concebe é q permissão do contraditório naquela fase informativa que
antecede à instauração do processo criminal, pois não há ali nenhuma acusação. Não
havendo, não se pode invocar o princípio da par
conditio – igualdade de armas. Todos sabemos que não se admite um decreto
condenatório respaldado, exclusivamente, nas provas apuradas na etapa
pré-processual. A Autoridade Policial não acusa; investiga. E investigação
contraditória é um não-senso. Se assim é, parece-nos não ter sentido estender o
instituto do contraditório ao inquérito, em que não há acusação. Quanto à ampla
defesa, tem o indiciado direito ao habeas
corpus sempre que sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação
na sua liberdade de locomoção. Malgrado essas observações, o Estatuto da
Advocacia confere ao Advogado o direito de examinar em qualquer repartição
policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante ou de inquérito, findos ou
em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar
apontamentos. Mas entre essa conduta e o direito ao contraditório há cem léguas
de distância.
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