DIREITO CIVIL COMENTADO - Art. 243, 244, 245
– Das Obrigações de Dar Coisa Incerta
– VARGAS,
Paulo S. R.
Parte
Especial - Livro I – Do Direito das Obrigações
Título I
– Das Modalidades das Obrigações (art. 233 a 285)
Capítulo
I – Das Obrigações de Dar – Seção II – Das Obrigações
De Dar
Coisa Incerta - vargasdigitador.blogspot.com
Art. 243. A coisa incerta será indicada, ao menos,
pelo gênero e pela quantidade.
Conforme
leciona Gustavo Bierambaum, a obrigação de dar coisa incerta só é possível se o
credor e o devedor tiverem condições mínimas de identificar o bem a ser
entregue. Essa identificação mínima reside na indicação do gênero e da
quantidade. Verifique-se que tanto um quanto outro devem ser indicados, pois
não se trata de requisitos alternativos, na medida em que a presença de apenas
um deles não permitirá a escolha ou concentração – ato pelo qual se identifica
a coisa incerta, que, neste momento, se torna certa e passa a ser regida pelas
regras aplicáveis à obrigação de dar coisa certa. Basta imaginar que a
obrigação de entregar cem sacas de café é obrigação de dar coisa incerta, pois
não há especificação do tipo de café a ser entregue, de modo que diversos deles
poderão representar o atendimento da prestação. Não é suficiente afirmar que o
objeto da prestação é cem sacas (quantidade), sem especificar o gênero do
produto, pois a obrigação será inexequível. Do mesmo modo, não basta dizer que
deverão ser entregues sacas de café colombiano (gênero), sem a indicação da
quantidade delas. Não sendo a prestação determinável – pelo gênero e pela
quantidade -, ao menos haverá que reconhecer a invalidade do negócio nos termos
do disposto nos arts. 166, II, c/c 104, II do Código Civil. A obrigação de dar
coisa incerta não se confunde com as obrigações alternativas (arts. 252 e 256
do CC), nas quais as prestações são especificadas e não se identificam apenas
pelo gênero e pela quantidade. Essencialmente, nas alternativas, as prestações
colocadas á escolha de um dos contratantes são, em si, certas e determinadas,
não sendo, necessariamente, do mesmo gênero (BIERAMBAUM, Gustavo, “Classificacão:
obrigações de dar, fazer e não fazer”. Obrigações: estudos na perspectiva
civil-constitucional, coord. Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro. Renovar,
2005, p. 133).
No entender de Caio Mário da Silva Pereira, para que as obrigações
de dar coisa incerta sejam possíveis, deverão estar, cumulativamente,
indicados, no título correspondente, o gênero e a quantidade do bem objeto da
obrigação. Sem a presença de qualquer um deles, impossibilita-se o ato de
escolha ou concentração, por meio do qual é identificada a coisa incerta, a
qual, nesse momento, torna-se certa. Nesse aspecto, Pereira preleciona que “o estado de indeterminação é transitório, sob
pena de faltar objeto à obrigação. O devedor não pode ser compelido à prestação
genérica. Até o momento da execução, a obrigação de gênero deverá converter-se
em entrega de coisa certa”. Assim, nos casos em que não for possível
proceder-se com a escolha, deverá ser decretada invalidade do negócio (CC,
arts. 104, II e 166, II). (Pereira, Caio Mário da Silva. Teoria Geral das Obrigações, Rio de
Janeiro: Forense, p. 56.)
Art. 244. Nas coisas determinadas pelo gênero e
pela quantidade, a escolha pertence ao devedor, se o contrário não resultar do
título da obrigação; mas não poderá dar a coisa pior, nem será obrigado a
prestar o melhor.
Segundo Luís Paulo Cotrim Guimarães e
Samuel Mezzalina, faculta-se às partes a escolha tanto de quem deverá escolher,
como do momento em que a escolha será realizada. Na falta de indicação precisa,
a escolha caberá ao devedor e quedar-se-á concretizada no momento da entrega do
bem. E estendem-se que na individuação dos bens a serem entregues, inexistindo
qualquer indicação precisa, deve-se escolher os bens que guardem as qualidades
médias das coisas de seu gênero. Por questão de boa-fé (CC, arts. 113 e 422),
não poderá o devedor optar pelas piores, nem o credor exigir as melhores. (Direito Civil Comentado, Luís Paulo Cotrim Guimarães
e Samuel Mezzalina, apud Direito.com em
13.03.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Na
visão de Hamid Charaf Bdine Jr, ilustrando artigo onde cita Caio Mário da Silva Pereira,
esse dispositivo se aplica aos casos em que a coisa a ser entregue é
determinada apenas pelo gênero e pela quantidade. Assegura que a escolha deverá
ser feita pelo devedor, se o título não dispuser de modo diverso. Trata-se de norma
de natureza dispositiva, uma vez que nada impede que as partes decidam atribuir
a escolha ao credor ou à terceira pessoa. Nos casos em que o devedor é quem
escolhe o bem a ser entregue, isto e, quem decide qual a coisa certa dentre as
várias alternativas fixadas pelo gênero e pela quantidade, o dispositivo em
exame estabelece que ele deverá optar pelo bem de qualidade intermediária, pois
não poderá dar bem da pior qualidade, nem estará obrigado a dar da melhor. No
tratamento do legado, no direito das sucessões, o Código Civil, em seu art.
1.929, estabelece que, se o legado foi determinado pelo gênero, a escolha será
feita pelo herdeiro, que também deverá optar por bem de qualidade
intermediária. O art. 1.930 determina que se aplique a mesma regra quando a
escolha do legado for deixada ao arbítrio de terceiro ou, quando esse não
quiser ou não puder exercer a escolha, do juiz. O art. 244 deve ser
interpretado segundo o princípio de que o devedor deve escolher entre as várias
alternativas possíveis, um bem de qualidade intermediária (Pereira,
Caio Mário da Silva. Instituições de
direito civil, 20, ed., atualizada por Luiz Roldão de Freitas Gomes. Rio de
Janeiro: Forense, 2003, v. II, p. 56). O
fato de o artigo indicar que o devedor não pode escolher a coisa pior poderá
dar ao intérprete a impressão de que ele está autorizado a entregar o penúltimo
bem na ordem de gradação. Ou seja, havendo dez bens, o devedor pode escolher o
que estiver em nono lugar em uma hipotética tabela de classificação. A
interpretação que melhor atende à finalidade do dispositivo, contudo, é a que
considera que ele estará sempre obrigado a entregar um bem de qualidade
intermediária. Essa conclusão está adequada à boa-fé objetiva – o dever de agir
como homem reto, leal e solidário, atento aos interesses do outro contratante
(art. 422 do CC). Nada impede, porém, adverte Caio Mário, que as partes
convencionem que será entregue o pior ou o melhor dentre as coisas do gênero
(op cit., p. 56). Gustavo Bierambaum, a nosso ver com razão, discorda de Sílvio
Rodrigues e sustenta que também o credor que tiver a opção de escolha não
poderá eleger o melhor dos bens disponíveis (“Classificação: obrigações de dar, fazer e não
fazer”. Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional, coord.
Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro. Renovar, 2005, p. 130). (Hamid
Charaf Bdine Jr, apud Código Civil Comentado: Doutrina e
Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord.
Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p 195 - Barueri, SP:
Manole, 2010. Acesso 11.03.2019. Revista e atualizada nesta data por VD).
Art.
245. Cientificado
da escolha o credor, vigorará o disposto na Seção antecedente.
Seguindo
na esteira do Hamid Charaf
Bdine Jr, após a escolha do bem a ser entregue, ele
estará individualizado e deixará de ser incerto. Em consequência, as regras que
se aplicam à solução do cumprimento da obrigação são aquelas da seção
antecedente destinadas às obrigações de dar coisa certa. O dispositivo deixa
assentado que somente após a cientificação do credor tornar-se-á a coisa objeto
da obrigação. O art. 876 do Código civil de 1916 estabelecia a própria escolha
como momento a partir do qual incidiam as regras da seção anterior, o que
permitia a interpretação de que o devedor podia fazer a escolha e aplicar as
regras da obrigação de dar coisa certa antes mesmo de o credor saber qual bem
especificamente lhe seria entregue. Outra questão que o dispositivo pode
suscitar é o fato de ele cuidar apenas da identificação da escolha ao credor,
sem disciplinar os casos em que a faculdade de escolher é dele, e não do
devedor. É certo, porém, que nesse caso a escolha do credor tornará certa a
obrigação apenas a partir do momento em que for cientificado o devedor. Até
essa oportunidade, a escolha feita pelo credor não pode ser oponível ao
devedor. Do mesmo modo, acrescenta Renan Lotufo, “se a concentração for da
competência do credor ou de terceiro, aplicar-se-á outra regra, qual seja, ela
somente obterá eficácia no instante em que for comunicada ao devedor ou a
ambos, quando a escolha for de terceiro. Do contrário, conforme Antunes Varela
(Das obrigações em geral, p. 850), o
devedor não saberia que coisas lhe podiam ser exigidas, nem o credor com que
coisas poderia contar” (Código Civil
comentado. São Paulo, Saraiva, 2003, v. II, p. 44). Não se diga, porém, que
a cientificação da escolha referida no presente dispositivo seja suficiente
para caracterizar a mora. É possível que o momento da escolha não coincida com
o do cumprimento efetivo, de maneira que, a despeito de a escolha ter sido
cientificada ao interessado, ele ainda não fará jus à entrega. Assim, se um
criador de cães é obrigado a entregar um animal ao adquirente no prazo de
noventa dias, o fato de lhe comunicar qual o cão que lhe será entregue não
implica que não possa aguardar o decurso do prazo estipulado para fazer a
entrega. Nessa hipótese, é válida a escolha e a obrigação passa a ser de
entrega de coisa certa. As regras a respeito da mora e do inadimplemento
absoluto passam a ser as relativas à obrigação de dar coisa certa (arts. 233 e
ss, do CC). (Hamid Charaf Bdine
Jr, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei
n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e
atual., p 195 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 13.03.2019. Revista e
atualizada nesta data por VD).
Na
comunhão de Caio Mário da Silva Pereira, o ato de escolha é, conforme
determinado no art. 246, o divisor de águas nas obrigações de entregar coisa
incerta. Antes da individuação, o devedor continua obrigado a cumprir a
obrigação, independentemente de qualquer dano que se abata à coisa; após a
escolha, havendo a perda da coisa sem que haja culpa ou dolo de sua parte, a
obrigação resolve-se. Desse modo, faz-se imperioso que o ato da escolha seja
positivado de maneira inequívoca. Não basta que o devedor separe o bem a ser
entregue ao credor, mas que, efetivamente, venha a coloca-lo à disposição do
credor. Inexistindo indicação diversa em contrato, o credor deverá ser
notificado da escolha, por via judicial ou extrajudicial.
E
conclui, com a escolha, a relação obrigacional passa a ser regida pelas normas
atinentes às obrigações de dar coisa certa (CC, arts. 233 a 242). Nesse
sentido, Pereira destaca que o estado de indeterminação “cessará, pois, com a escolha, a qual se verifica e se reputa consumada,
tanto no momento em que o devedor efetiva a entrega real da coisa, como ainda
quando diligencia praticar o necessário á prestação”. (Pereira,
Caio Mário da Silva. Teoria Geral das
Obrigações, Rio de Janeiro: Forense, p. 56.)
De
forma mais abrangente, Hamid Charaf Bdine Jr, afirma que até o
momento da escolha – ou, mais especificamente, como assegura o artigo
antecedente, até a cientificação da escolha -, não há individualização do bem a
ser entregue pelo devedor, de modo que não é possível admitir o perecimento ou
a deterioração para a resolução da obrigação. Com efeito, até a escolha, o bem
indicado pelo gênero e pela quantidade pode ser encontrado para a satisfação da
obrigação devida, sendo irrelevante que o bem separado pelo devedor, com o
objetivo de dar cumprimento à obrigação, venha a se perder ou deteriorar. É
essencial para que a escolha produza efeitos em relação ao credor que ela seja exteriorizada,
permitindo que se possa saber exatamente qual o bem que será entregue ao credor
(art. 245 do CC). Adverte Caio Mário da Silva Pereira que somente por exceção
se poderá dizer que determinado gênero desapareceu completamente (Instituições de direito civil, 20, ed.,
atualizada por Luiz Roldão de Freitas Gomes. Rio de Janeiro: Forense, 2003,
v. II, p. 57). Enquanto houver possibilidade de encontrar
quantidade suficiente do gênero da coisa indicada para cumprimento da
prestação, o adimplemento será possível. Talvez a regra não possa ser aplicada
com extremo rigor em hipóteses específicas, em que, a despeito de a obrigação
recair sobre a entrega de coisa incerta e de o ajuste ser celebrado entre as
partes, seja possível extrair que a universalidade sobre a qual recairá a
escolha integra gênero restrito (MIRANDA, Pontes
de. Tratado de direito privado,
Campinas, Bookseller, 2003, t. XXII, p. 134-5). Nesse caso, se todos os bens
perecerem ou se deteriorarem sem culpa do devedor, será aplicável à hipótese a
solução própria das obrigações de dar coisa certa (arts. 234 e 235 do CC) (PEREIRA,
Caio Mário. Op cit., p. 57). Caso o perecimento ou a
deterioração resultarem de culpa do devedor, as soluções serão as que se
estabelecem nos arts 234, segunda parte, e 236. Basta imaginar que determinada
viúva de um marceneiro se obriga a entregar ao credor uma das várias mesas
confeccionadas por ele. No entanto, antes da data da entrega, os móveis são
furtados, de maneira que a infungibilidade da obrigação irá impedi-la de
cumprir tal obrigação, sendo irrelevante que se tratasse de obrigação de coisa
incerta, determinada apenas pelo gênero e pela quantidade (CRUZ,
Gisela Sampaio da. “Obrigações alternativas e com faculdade alternativa.
Obrigações de meio e de resultado”. Obrigações:
estudos na perspectiva civil-constitucional, coord. Gustavo Tepedino, Rio
de Janeiro. Renovar, 2005, p. 150-I). O tema também foi enfrentado por Gustavo
Bierambaum que aponta outra exceção à regra em exame: mercadoria que deixa de
ser fabricada entre o momento da celebração do negócio e o da concentração –
momento da identificação da coisa, que passa a ser certa – (“Classificacão: obrigações
de dar, fazer e não fazer”. Obrigações: estudos na perspectiva
civil-constitucional, coord. Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro. Renovar,
2005, p. 132). (Hamid Charaf Bdine
Jr, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei
n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e
atual., p 195 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 13.03.2019. Revista e
atualizada nesta data por VD).
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