segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Direito Civil Comentado - Art. 496 - Continua - Da compra e Venda - Disposições Gerais – VARGAS, Paulo S. R.


Direito Civil Comentado - Art. 496 - Continua
- Da compra e Venda - Disposições Gerais –
VARGAS, Paulo S. R.

Parte Especial - Livro I – Do Direito das Obrigações
Título VI – Das Várias Espécies de Contrato
 (art. 481 a 853) Capítulo I – Da Compra e Venda
Seção I – Disposições Gerais –
vargasdigitador.blogspot.com

Art. 496. É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido.

Parágrafo único. Em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória.

Como ilustra Nelson Rosenvald, na vigência do CC/1916, a venda do ascendente ao descendente sem o consentimento dos demais descendentes implicava nulidade. O dispositivo em apreço considera que o ato é passível de invalidação, mas por uma sanção diversa: a anulabilidade.

Nulidade e anulabilidade são espécies do gênero invalidade: aquela, mais grave, atingindo norma cogente, acautelando interesses de ordem pública. Já a anulabilidade é uma sanção à lesão a interesses particulares, visados em normas dispositivas. A conveniência do legislador ditará quais são as hipóteses de nulidade e anulabilidade. No atual Código Civil, outras hipóteses até então sancionadas como nulas se tornaram meramente anuláveis, como a previsão do casamento celebrado por autoridade incompetente (art. 1.550, VI). A contrario sensu, casos de anulabilidade se converteram em hipóteses de nulidade, como a simulação (CC. 167).

Na espécie, parece-nos que andou bem o legislador. A alienação do ascendente a um descendente sem que exista o consentimento dos outros é uma situação que atende exclusivamente aos interesses patrimoniais da família, sendo excessiva a imposição da nulidade.

Em comparação ao negócio nulo, as consequências mais evidentes do novo regime de anulabilidade seriam as seguintes: a) possibilidade de ratificação do ato pelos familiares, por posterior assentimento (CC. 176); b) imposição de prazo decadencial de dois anos para o exercício do direito potestativo de desconstituição do negócio jurídico de compra e venda, a contar da data do contrato (CC. 179). Essa nova previsão legal retirou, inclusive, a eficácia da Súmula n. 494 do STF; c) impossibilidade de constatação do vício pelo juiz ou Ministério Público de ofício, havendo necessidade de ajuizamento de ação própria pelos interessados (demais descendentes e cônjuge) para a anulação do contrato (CC.168).

A outro giro, a finalidade da norma é o acautelamento das legítimas dos herdeiros necessários. Descendentes podem praticar negócios jurídicos de doação e compra e venda com ascendentes. A doação dispensa o consentimento dos demais descendentes, pois o controle de qualquer liberalidade apenas ocorrerá após a morte do doador por meio da colação (CC. 2003), restaurando-se a igualdade das legítimas dos herdeiros necessários.

Porém, pelo fato de a compra e venda não estar submetida à colação, faz-se necessária a autorização dos demais descendentes, justamente para que posam eles controlar eventuais artifícios e simulacros capazes de mascarar doações a um descendente em detrimento de outros.

Outra novidade é a necessidade de outorga do cônjuge do doador junto à dos descendentes. A explicação é singela: à medida que o cônjuge se converte em herdeiro necessário (CC. 1845), também não poderá ser privado da legítima, exceto por deserdação (CC. 1.961). como esclarece o parágrafo único, excepciona-se o regime da separação obrigatória, no qual o cônjuge jamais concorrerá com os descendentes em primeiro lugar na ordem de vocação hereditária. Ele sempre disputará a segunda colocação com os ascendentes (CC. 1.829).

Outra novidade é a necessidade de outorga do cônjuge do doador junto à dos descendentes. A explicação é singela: à meda que o cônjuge se converte em herdeiro necessário (CC 1.845), também não poderá ser privado da legítima, exceto por deserdação (CC.1961). como esclarece o parágrafo único, excepciona-se o regime da separação obrigatória, no qual o cônjuge jamais concorrerá com os descendentes em primeiro lugar na ordem de vocação hereditária. Ele sempre disputará a segunda colocação com os ascendentes (CC. 1.829).

Poder-se-ia indagar a razão pela qual não se dispensou também o consentimento do cônjuge no regime da separação convencional de bens, observando-se a fórmula do art. 1.687, que excluiu a necessidade de outorga no aludido regime de bens. Todavia, pensamos que o legislador foi coerente com o aspecto sucessório, no qual o cônjuge, no regime da separação convencional, sempre será herdeiro em primeiro lugar na ordem de vocação, ao lado dos descendentes (CC. 1.829, I).

Apesar da omissão do dispositivo, não raramente o ascendente procurará praticar uma compra e venda como outras pessoas ligadas ao descendente (v.g., sogro, nora). Nesses casos, parece-nos igualmente necessário o consentimento dos demais descendentes e cônjuge, sob pena de se inferir uma simulação através de venda a interposta pessoa, nos termos do CC. 167, § 1º, I.

Eventual doação a qualquer pessoa que não seja descendente ou cônjuge (CC. 544) não será tida como adiantamento de legítima, porém uma simples doação que será reputada como perfeita se não exceder a metade disponível no momento da liberalidade, caso em que haverá a nulidade do excesso (CC. 549).

O dispositivo também não enuncia as consequências da recusa da outorga pelos outros descendentes e cônjuge. Acreditamos que se aplica aqui o mesmo resultado do CC. 1.648. vale dizer que o magistrado suprirá a outorga quando a denegação for privada de motivação justificada, havendo evidencias da boa-fé dos contratantes. É uma forma de controle do abuso do direito potestativo do suprimento, preservando a função econômica e social do negócio jurídico. (ROSENVALD Nelson, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 560-561 - Barueri, SP: Manole, 2010. Acesso 09/09/2019. Revista e atualizada nesta data por VD).

Temos um Histórico e uma Doutrina apresentada por Ricardo Fiuza. Segundo o histórico, a redação original do dispositivo tal como se apresentada no projeto era nos seguintes termos: “Art. 496. É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes expressamente houverem consentido”. Com as alterações implementadas por emenda substitutiva do Deputado Ernani Satyro à Emenda n. 390, revestiu-se da composição atual, com o acréscimo do parágrafo único e passando a exigir também o assentimento do cônjuge do alienante. A exigência do assentimento do cônjuge decorreu do fato dele ter sido erigido à condição de herdeiro em concorrência com os descendentes. Se o regime é o da separação obrigatória, não há direito de sucessão entre cônjuges. Mas não é só: o CC. 1.647, I, dispõe que nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta, alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis. Corresponde ao art. 1.132 do CC de 1916.

Quanto à Doutrina, o preceito objetiva, segundo observa Clóvis Beviláqua, “evitar que, sob color de venda, se façam doações, prejudicando a igualdade das legítimas”. Tal como previsto no art. 877 do Código Civil português, a alienação feita a filhos ou netos é anulável caso os outros filhos (ou netos) não a consintam, embora o diploma lusitano admita, diversamente, suscetível de suprimento judicial o consentimento quando não possa ser prestado ou recusado. No dispositivo, compreende-se a venda a descendente por interposta pessoa; também exigível a prova da simulação (STJ, 4~ T., REsp 71.545-RS, DJ de 29-11-1999).

A referência à anulabilidade da venda, faz cessar antigo dissidio jurisprudencial a respeito: Pela Sumula 404 do STF, de 3-10-1969, com origem no RE 59.417, fixou-se o entendimento da nulidade pleno jure, como decidido, ainda, pelo STJ ao REsp 10.038-MS, de 21-5-1991, por fraude à lei diante da literalidade do texto do art. 1.132, do CC de 1916, e, mais adiante, não admitida pelo REsp 977-0-1’- (DJ de 27-3-1995), com brilhante voto do Min. Sálvio de figueiredo Teixeira “(...) Sem embargo das respeitabilíssimas opiniões em contrário, na exegese do CC. 1.132 tem-se por anulável o ato da venda de bem a descendente sem o consentimento dos demais, uma vez: a) que a declaração de invalidade depende da iniciativa dos interessados; b) porque viável a sua confirmação; porque não se invalidará o ato se provado que justo e real o preço pelo descendente”. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 265, apud Maria Helena Diniz, Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2012, pdf, Microsoft Word. Acesso em 09/09/2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

Expandido o ensinamento, Marco Túlio de Carvalho Rocha alerta que o artigo 496 exige que o vendedor obtenha o assentimento de seu cônjuge e de seus descendentes para realizar venda a um destes.

O objetivo da regra é o de impedir que a venda seja simulada para dissimular negócio benéfico uma vez que o direito brasileiro estabelece limite para doar quando o doador possui herdeiros necessários, como forma de proteger a parte do patrimônio do doador correspondente à metade de seus bens e denominada legítima. O texto é por demais sucinto e deixa abertas muitas lacunas a serem preenchidas mediante interpretação.

A primeira diz respeito à necessidade de outorga conjugal dos cônjuges dos descendentes chamados a anuir na alienação feita pelo ascendente comum a um deles. De acordo com a literalidade do dispositivo, não, pois ele somente exige a anuência do cônjuge do alienante e de seus descendentes. A justificativa é que somente estes são herdeiros necessários. Os cônjuges dos descendentes não são herdeiros e, por isso, a concordância deles não é necessária para a validade do negócio.

Outra dúvida é quanto à incidência da regra na venda realizada por sogro a genro ou nora, principalmente quando casados com o descendente do vendedor pelo regime de comunhão universal ou parcial de bens. O elemento literal não abrange esse tipo de negócio. O caso pode vir a ser de simulação, a fim de se esquivar da restrição imposta pelo artigo 496. A resposta sobre a validade de tal negócio sem a anuência dos demais descendentes impõe que seja avaliada a ocorrência de simulação que pode haver ou não. Se o negócio é realizado a preço de mercado, por exemplo, a simulação deve ser, a princípio, excluída.

No caso de ser civilmente incapaz o descendente chamado a anuir, o consentimento deve ser prestado por seu representante legal. Não há exigência legal de autorização judicial para tanto.

O dispositivo cuida apenas da venda de ascendente a descendente; não faz qualquer restrição à venda de descendente a ascendente, que, tanto quanto aquela, pode simular negócio gratuito, benéfico, lesivo à legítima. A falta de previsão legal dispensa a necessidade de anuência de terceiros na venda de descendente a ascendente. Eventuais prejuízos à legítima podem, no entanto, ser reparados pela via da nulidade por simulação se esta configurar-se.

Embora o dispositivo mencione a necessidade de anuência de descendentes, sem qualquer restrição, o elemento teleológico, ou seja, a finalidade de se proteger a legítima, dispensa a anuência de descendentes que não sejam herdeiros do alienante no momento em que se faz a alienação. Desse modo, o neto do alienante, cujo pai seja o herdeiro direto daquele não tem de anuir à venda. De outro lado, o neto do alienante, cujo pai é falecido no momento da alienação tem de anuir à venda, pois é herdeiro direito do alienante como representante do pai pré-morto.

Outra questão que se levanta é a possibilidade de anulação do negócio pelo descendente cujo vínculo de parentesco não havia ainda sido reconhecido no momento da alienação. Neste caso, embora a ação de reconhecimento de vínculo de filiação seja declaratória, a proteção à confiança e à boa-fé impedem que o filho que não era reconhecido à época do negócio possa requerer sua anulação por ausência de assentimento com base no artigo 496. Nada impedirá de buscar a nulidade por outros fundamentos, como a simulação, se os elementos dela estiverem presentes.

Tendo-se em vista a finalidade do dispositivo, ou seja, a proteção da legítima e prevenir que negócios gratuitos sejam dissimulados na forma de compra e venda, uma vez que esta se faça pelo preço de mercado, com o efetivo pagamento do preço, o negócio deixa de ser anulável. Por isso, entende-se que a anulabilidade da venda de ascendente a descendente por falta de consentimento dos demais descendentes ou do cônjuge do alienante seja uma presunção relativa de anulabilidade, que deixa de existir mediante a prova de ausência de prejuízo. Para o mesmo fim, invoca-se o CC. 533, II, por interpretação sistemática.

O suprimento judicial da autorização de descendente que se recusa injustamente a anuir ao negócio é possível, apesar de a lei não a mencionar, tendo-se em vista a finalidade da norma, i.é, o consentimento, neste caso, não é um direito meramente potestativo do descendente; está vinculado à proteção de seus direitos hereditários e, uma vez que o negócio não os prejudique, não pode ser negado.

O prazo para a anulação do negócio é de 2 anos a contar de sua realização, nos termos do CC. 179. Relativamente a negócios firmados antes da vigência do Código Civil de 2002, o prazo é de 20 anos a contar da realização do negócio, conforme a Súmula n. 494 do Supremo Tribunal Federal. (Marco Túlio de Carvalho Rocha apud Direito.com acesso em 09.09.2019, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

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