sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Direito Civil Comentado - Art. 1.210, 1.211, 1.212 Dos Efeitos da Posse - VARGAS, Paulo S. R.

 

Direito Civil Comentado - Art. 1.210, 1.211, 1.212

Dos Efeitos da Posse - VARGAS, Paulo S. R.

- Livro IIITítulo I – Da Posse (Art. 1.196 ao 1.368)

Capítulo III – Dos Efeitos da Posse (Art. 1.210 a 1.222)

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Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado.

 

§ 1º. O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contato que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse.

 

§ 2º. Não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa.

 

Como explica Francisco Eduardo Loureiro sobre a tutela da posse: gera a posse diversos efeitos, por ser ela o exercício de fato de poderes inerentes à propriedade. Alguns desses efeitos encontram-se positivados nos CC 1.210 a 1.222 do Código Civil. Outros efeitos são apontados pela doutrina, havendo autores que mencionam mais de setenta deles. Entre os efeitos mais relevantes não positivados mas apontados pela doutrina estão: a) a usucapião, que nada mais é do que a posse prolongada e qualificada por requisitos previstos na lei, que se converte em modo originário de aquisição da propriedade; e b) a visibilidade do domínio, ou seja, a presunção relativa de que o possuidor é dono daquilo que tem em seu poder, até que se faça prova em contrário. Alguns efeitos exigem posse revestida de determinadas qualidades, como a percepção de frutos, a indenização de certas benfeitorias e o direito de retenção, que pressupõem a boa-fé do possuidor e especialmente o usucapião, que exige posse prolongada e com requisitos específicos para cada uma de suas modalidades (posse ad usucapionem).

 

O principal efeito da posse, tratado neste artigo em comento, é a tutela possessória, que consiste nos meios defensivos que a lei assegura ao possuidor para repelir a agressão injusta à sua posse. Confere a lei ao possuidor dupla linha de defesa possessória, pela autotutela, ou autodefesa, e pelas ações possessórias. Ambas têm por objetivo resolver a situação originada de rompimento antijurídico da relação estabelecida pelo poder sobre a coisa, a primeira (autodefesa) pelo esforço próprio do possuidor e a segunda mediante interferência do Poder Judiciário, sem necessidade de debater a relação dominial. Toda posse, justa ou injusta, direta ou indireta, de boa-fé ou de má-fé, gera, como principal efeito, o direito à sua defesa pela tutela possessória. É por isso que se diz que toda posse é ad interdicta, porque confere ao seu titular a prerrogativa de defender-se dos ataques injustos de terceiros, inclusive do proprietário. O fundamento da proteção possessória varia de acordo com as teorias subjetiva e objetiva da posse. Para Ihering, é uma linha avançada de defesa da propriedade, o que nem sempre é exato, porque é possível a tutela possessória do possuidor contra o proprietário. Para Savigny, a proteção visa a evitar a violência e seu caráter delituoso e oposto ao direito (quieta non movere). Leva também em conta a paz social e a inconveniência de o estado de fato ser alterado por vontade unilateral, em detrimento de outrem.

 

No que se refere à extensão, a proteção possessória não atinge os direitos pessoais, pela singela razão de não existir poder fático sobre abstrações. Existem remédios próprios para ofensa aos direitos pessoais que não as ações possessórias. A matéria, porém, não é pacífica. Há julgados que admitem a proteção possessória, especialmente para a proteção da propriedade intelectual (vide STJ, REsp n. 41.813/RS, 3ª T., rel. Min. Cláudio Santos, j. 28.11.1994, DJ 20.02.1995; RT 715/285). A jurisprudência majoritária, porém, tem entendimento contrário, afastando o interdito proibitório para a proteção de direitos autorais (STJ, REsp n. 126.797/MG, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 19.02.1998, DJ 06.04.1998; RSTJ 131/68) e propriedade industrial. A polêmica foi sepultada pela Súmula n. 228 do Superior Tribunal de Justiça, do seguinte teor: “E inadmissível o interdito proibitório para a proteção de direito autoral”. Pode perfeitamente ser ajuizada ação possessória relativa a coisa móvel. O rito era sumário, mas a atual lei processual não prevê rito específico, razão pela qual se aplica o procedimento especial de toda a ação possessória. Versando sobre bem móvel, ou, no caso de imóvel, com alçada de valor, pode seguir as regras dos juizados especiais (ver Lei n. 9.099/95). O Código Civil de 2002 eliminou diversos dispositivos do Código de 1916 de caráter nitidamente processual sobre a defesa da posse. Tomem-se como exemplo os arts. 506, 507 c 523 do CC/1916, que tratavam da defesa da posse velha (mais de ano e dia) e da posse nova (menos de ano e dia), mencionando ritos e a possibilidade de concessão de liminar. A alteração de postura tem razão de ser. Não se justifica a inserção de matérias de direito adjetivo no atual Código Civil, uma vez que a competência para legislar sobre processo civil é da União Federal, eliminando o risco de dispositivos díspares nas legislações estaduais, como ocorria nos primórdios do Código de 1916.

 

As moléstias da posse: Três moléstias causadas por atos injustos de terceiros podem atingir a posse, e para cada uma delas prevê a lei um remédio possessório, a saber: esbulho, corrigível pela ação de reintegração de posse; turbação, corrigível pela ação de manutenção de posse; e ameaça, corrigível pela ação de interdito proibitório. O esbulho é a mais grave moléstia, porque significa a perda da posse, sendo impossível o respectivo exercício pelo titular. A ação de reintegração de posse, disciplinada pelos arts. 926 a 931 do Código de Processo Civil, visa a restaurar para o desapossado a situação fática anterior, desfeita pelo esbulho. O objetivo, portanto, é permitir ao possuidor injustamente desapossado recuperar a coisa que se encontra em poder do esbulhador. A turbação é o embaraço ao normal exercício da posse. É de menor gravidade do que o esbulho, porque não leva à perda cia posse, mas apenas dificulta ou perturba o seu regular exercício. A ação de manutenção de posse, disciplinada pelos arts. 926 a 931 do Código de Processo Civil/1973 (Seção II - Da Manutenção e da Reintegração de Posse - hoje correspondendo aos arts. 560 ao 566, no CPC/2015), visa a impedir o desapossamento que ainda não ocorreu e a fazer cessar os atos turbativos, restabelecendo a plenitude dos direitos possessórios. A ameaça é a terceira moléstia e tem como requisitos a seriedade e a efetiva possibilidade de ocorrer em breve espaço de tempo moléstia mais grave à posse. Não há ainda ofensa concreta à posse, mas apenas probabilidade e iminência de sua ocorrência. A ação de interdito proibitório, disciplinada pelos arts. 932 e 933 do Código de Processo Civil/1973 (Seção III – Do Interdito Proibitório - hoje correspondendo aos arts. 567 e 568, no CPC/2015), tem caráter meramente preventivo e visa a impedir que a turbação ou o esbulho comecem.

 

Ações possessórias: São, portanto, três as ações possessórias típicas previstas no Código de Processo Civil, cada uma adequada a uma modalidade distinta de agressão injusta à posse. Embora não seja matéria de cunho substantivo, algumas características das ações possessórias merecem breve alusão. O art. 10, § 2º, do Código de Processo Civil/1973, (hoje elencado no art. 73, § 2º, CPC/2015) com a redação similar à que lhe deu a Lei n. 8.952/94, encerrou antiga polêmica sobre a natureza real ou pessoal das ações possessórias. Diz a lei expressamente que a participação do cônjuge somente é indispensável nos casos de composse ou de atos por ambos praticados. A ação, portanto, é pessoal, com a ressalva de que, em diversos casos, pode ser a posse derivada de um direito real preexistente, como o compromisso de compra e venda levado ao registro, ou usufruto, ou servidão, quando, então, se exigirá a citação do cônjuge. A legitimidade ativa é do possuidor ou do ex-possuidor, no caso de reintegração de posse. O possuidor indireto tem legitimidade ativa, inclusive para litigar contra o possuidor direto, quando este, por atos ilícitos, invadir a esfera de poder e as prerrogativas conferidas ao primeiro. O detentor não tem legitimidade para agir em nome próprio, pela singela razão de não ter posse. Caso seja demandado, na forma do art. 62 do Código de Processo Civil/1973 (V. arts. 338 e 339, relacionados no CPC/2015), nomeia à autoria o verdadeiro possuidor. O proprietário sem posse, ou o titular de outro direito sem posse, deve se valer do ius possidendi nas chamadas ações petitórias, dominiais ou publicianas, não lhe socorrendo as ações possessórias. O herdeiro e o sucessor a título singular podem utilizar a ação possessória pelos institutos da accessio e successio possessionis. O fundamento da ação possessória, em tais casos, será a posse dos antecessores que lhes foi transmitida por ato inter vivos ou causa mortis. Têm legitimidade passiva nas ações possessórias aqueles que praticaram a turbação, o esbulho ou a ameaça, assim como o terceiro que recebeu a coisa de má-fé, na forma do CC 1.212, adiante comentado. A pessoa jurídica pode ser ré em ação possessória, cabendo verificar se os seus prepostos e administradores agiram em nome próprio ou da sociedade. O poder público pode ser réu em ação possessória, embora possa optar o agente pela impetração do mandado de segurança, caso preenchidos os seus requisitos. Caso opte pela via possessória, para a concessão da liminar devem, antes, ser ouvidos os seus representantes, na forma do art. 928 do Código de Processo Civil/1973, (hoje elencado no art. 562 do CPC/2015, ver também o art. 565, relacionado). Caso o apossamento esteja consumado e o imóvel tiver sido empregado em obra pública, esta se torna intangível. A possessória se converterá em ação indenizatória - denominada de desapropriação indireta desde que haja pedido alternativo. As ações possessórias são fungíveis, como prevê o art. 920 do Código de Processo Civil/1973 no Capítulo V, (hoje encontrado no art. 554, Capítulo III – Das Ações Possessórias – Seção I – Disposições Gerais, no CPC 2015, com redação similar), sendo indiferente o ajuizamento de uma por outra, por exemplo manutenção em vez de reintegração de posse. Deve o juiz julgar de acordo com a agressão à posse provada nos autos. É a aplicação do princípio da mihi factum dabo tibi jus, que, porém, só vale em relação às ações possessórias em sentido estrito. Não pode ser usado o princípio da fungibilidade para uma ação petitória converter-se em possessória, ou vice-versa. Comportam as ações possessórias cumulação de pedidos, na forma do art. 921 do Código de Processo Civil/1973 (Elencado hoje no art. 555 do CPC/2015, idêntica redação). Pode o pedido possessório ser cumulado com perdas e danos, cominação de pena e demolitório. No que se refere a perdas e danos, cumpre ressaltar que a posse gera situação proveitosa ao seu titular e quebra a fruição do esbulhado, causando-lhe prejuízo. A reparação abrange não somente os danos efetivos causados à coisa, como a destruição de cercas, mas também o lucro cessante pelo impedimento de seu uso. Os danos devem ter a existência comprovada na fase de conhecimento, embora o montante possa ser relegado para o momento da liquidação.

 

Têm as ações possessórias caráter dúplice, na forma do art. 922 do Código de Processo Civil/1973, (correspondendo hoje ao art. 556 do CPC/2015, com a mesma redação anterior) de modo que o réu pode, em contestação, pedir proteção possessória para si, sem necessidade de reconvenção. Finalmente, os arts. 924, CPC/1973 (correspondendo hoje ao art. 558 do CPC/2015, com a mesma redação anterior) e 928 do Código de Processo Civil/1973 (correspondendo hoje ao art. 562 do CPC/2015, com a mesma redação anterior) dizem que quando intentada a ação dentro de ano e dia do esbulho ou da turbação, com a inicial devidamente instruída, poderá o autor obter liminar de manutenção ou reintegração. Não havendo provas suficientes, poderá ser designada audiência de justificação, para que o autor demonstre o que alegou. Note-se que o ajuizamento da ação após o prazo de ano e dia não retira a sua natureza possessória, mas apenas impede a concessão de liminar. É controversa a possibilidade de concessão de tutela antecipada em ação de posse velha. Parte dos julgados (ver RT 799/254 e Lex-JTA 167/90) entende ser incabível a antecipação nos casos em que o legislador submeteu a liminar a requisitos específicos. Há, porém, entendimento no sentido contrário, de que as liminares nas ações possessórias e na antecipação de tutela estão submetidas a requisitos distintos, não havendo nenhuma incompatibilidade entre elas. Basta que o autor da ação preencha os requisitos ou do art. 273 CPC/1973 (correspondendo, hoje, aos arts. 300, [ver arts. 294, 295, 300, 301, 303, 304, 1.059, relacionados]), ou do art. 928, CPC/1973 (correspondendo, hoje, ao art. 562 do CPC/2015), para que obtenha a liminar (ver RT 740/329). O Enunciado n. 238 da III Jornada de Direito Civil 2004 do Centro de Estudos Jurídicos da Justiça Federal se inclinou pela segunda posição: “Ainda que a ação possessória seja intentada além de ano e dia da turbação ou do esbulho, e, em razão disso, tenha seu trâmite regido pelo procedimento ordinário (art. 924 do CPC/1973, hoje elencada no art. 558 do CPC/2015, com redação no mesmo sentido), nada impede que o juiz conceda a tutela possessória liminarmente, mediante antecipação de tutela, desde que presentes os requisitos autorizadores do art. 273, I ou II, bem como aqueles previstos no art. 461-A e parágrafos, todos do CPC/1973, correspondendo, hoje, aos arts. 300, (ver arts. 294, 295, 300, 301, 303, 304, 1.059, relacionados e 311), e 498 e parágrafos, todos do CPC/2015”.

 

§ Iº O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse.

 

CC/1916: arts. 502 e 505.

 

O Código Civil de 2002 manteve o conteúdo do art. 502 da lei revogada, apenas condensando a redação, antes distribuída, em apenas um parágrafo do art. 1.210. Trata o preceito da autotutela, pelo qual pode o possuidor turbado ou esbulhado repelir direta e pessoalmente, usando sua “própria força”, na dicção da lei, o atentado à posse, desde que o faça incontinente e de forma proporcional à agressão, com uso moderado dos meios necessários. Pressuposto do instituto é que a agressão à posse seja injusta, porque se lícito o ato de terceiro não cabe a reação do possuidor. A autotutela, embora tenha pontos de contato, não se confunde com a legítima defesa, mas vai além dela. O art. 187,1, retira a ilicitude dos atos praticados em legítima defesa, ou no exercício regular de um direito constituído. Exige, porém, que a agressão injusta seja iminente ou atual, jamais pretérita. Já o desforço próprio pode ser utilizado para recuperar a posse de coisa perdida, vale dizer, atos passados, desde que a reação seja tomada “ logo”. Em outras palavras, a lei municia o possuidor não só da legítima defesa, a ser usada em agressões iminentes ou atuais, mas da prerrogativa excepcional de recuperar coisas já perdidas para o esbulhador. Utiliza o legislador a expressão possuidor sem nenhuma distinção, de modo que tanto o possuidor direto como o possuidor indireto podem usar a autodefesa, uma vez que ambos exercem de fato poderes inerentes ao domínio. Não distingue a lei, também, as demais classificações da posse, de modo que tanto o possuidor de boa-fé como o de má-fé, o possuidor justo como o injusto, todos têm legitimidade para exercer a autodefesa, desde que o ato de terceiro seja ilícito. Pode o possuidor usar, na dicção da lei, a força própria, ou solicitar o concurso de terceiros para reagir à agressão injusta. Até o servo ou fâmulo da posse, na qualidade de mero detentor (art. 1.198), pode usar a mesma prerrogativa, com a ressalva de que o faça em nome e em proveito de terceiro, a quem representa na posse, em obediência ao dever de vigiá-la e de conservá-la. Dois são os requisitos cumulativos para a autotutela. O primeiro, de natureza temporal, exige que o possuidor reaja por sua própria força, contanto que o faça “ logo”. Manteve o legislador conceito indeterminado - logo indicativo de reação rápida, pronta, no contexto da agressão, no calor dos acontecimentos, sem permitir que o esbulhador tenha soberania, que consolide a sua situação sobre a coisa. Transferiu-se ao juiz, portanto, a aferição da tempestividade da reação, atento às circunstâncias do caso concreto, levando em conta, por exemplo, a localização e características da coisa, ou o número de esbulhadores. O tempo mínimo que se exige para simples desocupação de imóvel urbano invadido por um só esbulhador não é o mesmo necessário para a reação contra a ocupação de extenso imóvel rural tomado por grande número de pessoas, o que exige certo lapso temporal para reunir forças e recursos para a autotutela. Se a situação já estiver consolidada, resta ao possuidor apenas usar a segunda linha de defesa, vale dizer, as ações possessórias. O segundo requisito é o modo como se exerce a autotutela, usando moderadamente os meios necessários. Deve haver exata proporção entre a ação ilícita e a reação do possuidor para proteger ou retomar a coisa. O abuso, quer temporal, quer quanto aos meios usados na autodefesa, torna a conduta ilícita.

 

§ 2º Não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa.

 

CC/1916: sem correspondente.

 

O preceito em exame consagra uma das mais relevantes inovações do Código Civil em matéria possessória, eliminando de vez a figura da exceção de domínio do ordenamento jurídico. Note-se que o Supremo Tribunal Federal, a fim de harmonizar a redação antinômica dos dois períodos do revogado art. 505, já editara a Súmula n. 487, que contém: “Será deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio, se com base neste for ela disputada”. A redação do § 2º do CC 1.210 positiva o entendimento jurisprudencial, separando os juízos possessório e petitório. Desde o Direito romano tem-se distinguido nitidamente a posse da propriedade. São conhecidos os aforismos separata esse debet possessio a proprietate (a posse deve ser separada da propriedade), nihil commune habet proprietas cum possessione (nada tem em comum a propriedade com a posse) e nihil possessio et proprietas misceri debent (posse e propriedade não devem confundir-se). Percebe-se facilmente que a posse pode ser considerada sob dois ângulos distintos: a) em si mesma, independentemente do fundamento ou do título jurídico; e b) como uma das faculdades jurídicas que integram a propriedade, ou outras relações jurídicas. A expressão ius possidendi significa, literalmente, direito à posse, ou direito de possuir. É a faculdade que tem uma pessoa, por ser já titular de uma situação jurídica, de exercer a posse sobre determinada coisa. É a posse vista como o conteúdo de certos direitos. Pressupõe uma relação jurídica preexistente, que confere ao titular o direito à posse. Ao contrário do que afirmam alguns autores, não só o proprietário goza de tal situação mas também titulares de outros direitos reais, como o usufrutuário e o credor pignoratício, ou mesmo titulares de direitos meramente pessoais, como o locatário e o comodatário. Basta que seja a posse o objeto da relação jurídica, real ou pessoal. O titular do ius possidendi, ao invocar o seu título ou relação jurídica preexistente (real ou pessoal) para assegurar o direito à posse, instaura o chamado juízo petitório. Não se discute a posse cm si mesma considerada, mas a razão, ou causa, pela qual se deve possuir. O jus possessionis, inversamente, é o direito originado da situação jurídica da posse, independentemente da preexistência de uma relação jurídica que lhe dê causa. É indiferente a incidência, ou não, de um título para possuir. Aqui a posse não aparece subordinada a direitos, nem é emanada deles, formando parte de seu conteúdo. Alguns autores chegam a negar a expressão jus, preferindo factum possessionis, como melhor significado de posse sem título anterior. É o reflexo da autonomia do instituto da posse, que se mostra em toda sua pureza. É o fato da posse per se, necessário e suficiente para ter ingresso na significação jurídica. São casos típicos do exercício de jus possessionis aqueles que cultivam a terra abandonada, ou que se apoderam de coisas móveis perdidas. Recebem a proteção possessória, ainda que lhes falte um título que justifique a posse ou dê causa a ela. É o direito de posse. Seu único suporte é a sua própria existência e presença. A melhor forma de distinguir o juízo petitório do possessório é manter estrita correlação entre o jus (factum) possessionis e o possessório e entre o jus possidendi e o petitório. Com isso, garante-se a distinção entre a posse e a propriedade e, sobretudo, protege-se a posse per se como instituição jurídica autônoma. A tutela possessória - só possessória - mínima e básica, na ordem jurisdicional, está constituída pelos interditos, ou, entre nós, ações possessórias em sentido estrito. Deve-se, nas ditas ações possessórias, defender a posse como tal, sem outras ajudas e sem outras complicações: só e simplesmente. Se por trás dela aparece um direito que a atribua, é indiferente. Isso porque posso provar o direito, mas não obter a posse. Posso, em contrapartida, obter a posse e não provar o direito. Aqui é o ponto em que a posse aparece em sua plenitude e, diria, em sua solidão.

 

Na lição clássica e precisa de Wodon, que aparentemente orientou o raciocínio do legislador, “a posse, sendo uma coisa de fato, deve ser cuidadosamente separada de tudo o que se pode chamar direito ao petitório. Não basta que o réu diga feci, sed jure feci (fiz, mas tinha o direito de fazê-lo); é preciso que ele prove que o direito, com que excepciona, exclui a posse do autor em seus caracteres legais, ou tira à turbação o seu caráter de turbação possessória, ou, ainda, serve para apoiar e colorir uma posse contrária” (apud Rezende, Astolpho. A posse e a sua proteção. São Paulo, Lejus, 2000, p. 465).

 

A exceção de domínio não está restrita, como parece, à alegação fundada somente no direito de propriedade. Pode vir calcada em outros direitos, reais ou pessoais. Basta a invocação de uma situação jurídica preexistente, que confira a seu titular direito à posse. Em termos diversos, fundada no jus possidendi. Vale lembrar que veda a lei que o turbador ou esbulhador justifique a agressão injusta à posse invocando a propriedade ou outro direito. A discussão dominial somente terá relevância em duas situações: quando ambos os litigantes discutem a posse com fundamento no domínio (na verdade a ação será petitória), ou quando tanto a posse do autor como a posse do réu se mostrarem duvidosas, caso em que a propriedade funciona como critério supletivo, como indício de que ao proprietário pertence a posse, em razão do direito de sequela.

 

Assentaram os Enunciados 78 e 79, aprovados na Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no período de 11 a 13 de setembro de 2002, sob a coordenação científica do Ministro Ruy Rosado, do STJ, a respeito do tema: “CC 1.210: Tendo em vista a não recepção, pelo novo Código Civil, da exceptio proprietatis (CC 1.210, § 2º), em caso de ausência de prova suficiente para embasar decisão liminar ou sentença final ancorada exclusivamente no jus possessionis, deverá o pedido ser indeferido e julgado improcedente, não obstante eventual alegação e demonstração de direito real sobre o bem litigioso.

 

CC 1.210: A exceptio proprietatis, como defesa oponível às ações possessórias típicas, foi abolida pelo Código Civil de 2002, que estabeleceu a absoluta separação entre os juízos possessório e petitório”. Resta analisar o que dispõe o art. 923 do Código de Processo Civil/1973 que reza: “ Na pendência do processo possessório é defeso, assim ao autor como ao réu, intentar ação de reconhecimento de domínio”. (correspondendo ao art. 557 do CPC/2015, com outra redação: “Na pendência de ação possessória é vedado, tanto ao autor quanto ao réu, propor ação de reconhecimento do domínio, exceto se a pretensão for deduzida em face de terceira pessoa e embora este ainda acrescente um parágrafo único – “Não obsta à manutenção ou à reintegração de posse a alegação de propriedade ou de outro direito sobre a coisa”.). O preceito nada mais pretendeu - como se verá, de modo equivocado - do que dar feição processual à separação e independência entre os institutos da posse e da propriedade. O atrelamento do petitório ao final do possessório, todavia, foi infeliz. Como bem coloca Adroaldo Furtado Fabrício, “o que se vê, pois, é que, a pretexto de separar o possessório do petitório, o que se acaba de fazer é, paradoxalmente, juntá-los e jungi-los um ao outro por uma relação de dependência absolutamente inexistente. Independentes que são, só razões de ordem prática, circunstancial, como a de já estar sendo discutido incidenter o direito de possuir, explicam o fechamento às partes das portas do petitório” {Comentários ao Código de Processo Civil, 12. ed. Rio de Janeiro, Forense, 1984, v. V III, t. III, p. 408). A clássica separação entre o possessório e o petitório tem como propósito evitar que o proprietário justifique sua má conduta no campo possessório invocando o direito de propriedade. Quando, porém, a separação vai além do limite acima mencionado e torna-se proibição genérica, o vínculo de subordinação (somente se inicia o petitório ao terminar o possessório) acaba por produzir efeito contrário, unindo indevidamente os dois juízos. Na verdade, o que se deve indagar é simplesmente o seguinte: caso corram ações petitória e possessória simultaneamente, haverá o risco de sentenças contraditórias? A pergunta poderia ser formulada em outros termos: há relação de prejudicialidade recíproca entre os juízos petitório e possessório? Parece inexistir o risco de sentenças contraditórias e muito menos relação de prejudicialidade entre os referidos juízos. Isso porque, embora o objeto possa ser o mesmo em ambas as demandas - a posse -, é ele disputado por razões radicalmente distintas. Pode-se indagar: como a mesma coisa pode ter dois comandos distintos de entrega, um no juízo possessório e outro no juízo petitório, sem conflito? Simples. O bem é entregue no juízo possessório até que o proprietário o tome pelos meios legais, ou seja, no juízo petitório. A relação de direito material é perfeitamente compatível com o andamento simultâneo de ambas as ações. Por isso, o entendimento hoje prevalente é que a proibição contida no CC 923 não é absoluta, sob pena de mutilar o direito de propriedade e levar a situações de flagrante injustiça. A única interpretação possível do CC 923 é a utilização de critérios semelhantes aos aplicados pelo Supremo Tribunal Federal ao interpretar o art. 505 do Código Civil, distinguindo as situações possessórias puras (jus possessionis) das situações possessórias impuras (jus possidendi).

 

Somente haverá situação antinômica entre a ação possessória e a ação petitória que correm paralelamente, se na primeira a posse for disputada com fundamento no ius possidendi. Poderia aí a situação gerar sentenças contraditórias, uma vez que ambas analisariam a posse sob o mesmo fundamento, qual seja como conteúdo de um direito preexistente.

 

A jurisprudência mais recente conforta o ponto de vista ora adotado (RT 605/55, RT 650/67, RT 507/194, RJTJESP-Lex 123/217,124/297). A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal endossou a conclusão citada ao julgar o Recurso Extraordinário n. 89.179-0/PA, com ementa do seguinte teor: “ Na pendência de processo possessório, fundado em alegação de domínio, é defeso assim ao autor como ao réu intentar ação de reconhecimento de domínio” (Publicado no DJU 31.08.1979, p. 6.470, rel. Min. Cordeiro Guerra). Outra não foi a conclusão a que chegou o I o Simpósio de Curitiba, ao editar a conclusão n. LX X III, do seguinte teor: “o CC 923, I a parte, só se refere a ações possessórias em que a posse seja disputada a título de domínio”. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.162-65. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 11/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

 

Historicamente, o dispositivo em tela não foi alvo de qualquer espécie de alteração, seja por parte do Senado Federal, seja por parte da Câmara dos Deputados, no período final de tramitação do projeto. A redação atual é a mesma do anteprojeto, cujo Livro III, referente ao Direito das Coisas, ficou a cargo de Ebert Vianna Chamoun.  O dispositivo aglutina, em outros termos e com algumas modificações, as normas delineadas nos arts. 499, 501, 502 e 505 do CC de 1916.

 

Doutrinariamente, por conta de Ricardo Fiuza, é de bom alvitre que se faça uma abordagem breve e preliminar acerca da perda da posse, da pretensão de recuperação, sobre os atos turbativos e o justo receio de molestamento, porquanto são eles os elementos essenciais formadores de todo o arcabouço que dará ensejo à pretensão de tutela interdital (petitum e causa petendi) e, via de consequência, objeto de conhecimento do Estado-juiz.  

 

A perda da posse dos bens contra a vontade do possuidor ocorre somente quando ele não for manutendo ou reintegrado em tempo hábil (CC 1.223 e CC 1.224). Dentro de nossa sistemática normativa, tempo competente é o período que o legislador entendeu razoável para o possuidor esbulhado recuperar a posse, ou seja, um ano e um dia (art. 924 do CPC/1973, hoje elencada no art. 558 do CPC/2015, com redação no mesmo sentido e art. 523 do CC de 1916).

 

O NCC, assim como o CC de 1916, não definem o que venha a ser esbulho, mas permite-nos chegar ao perfil necessário da actio spolii por meio de interpretação do CC 1.210. Na linguagem comum, esbulhar significa privar alguém de alguma coisa, subtraindo-a, tolhendo-a, eliminando-a. A pretensão jurídica articulada pelo possuidor esbulhado é, inquestionavelmente, a restituição, a reintegração na posse do bem que lhe foi espoliado. Portanto, esbulho representa a perda, total ou parcial, do poder Fáctico de ingerência socioeconômica sobre um determinado bem da vida. O esbulho possessório é ato ilícito civil e penal (crime de usurpação, previsto nos incisos 1 e II do art. 161 do CP), praticado por terceiro em detrimento da posse de outrem, que resulta no perdimento (absoluto ou relativo) do poder de fato, invertendo-se a titularidade da relação possessória, passando o esbulhador a ter injustamente (posse ilegítima) o uso e a disponibilidade econômica do bem respectivo. Em outras palavras, é ato eficiente capaz de impedir o possuidor de prosseguir na sua normal relação fático-potestativa, retirando o bem da esfera de seu poder e tornando-o disponível ao autor do esbulho ou a terceiros. Em suma, o esbulho é qualquer ato de molestamento que acarrete ao possuidor, injustamente, a perda da posse, correspondente à privação total ou parcial do poder de fato socioeconômico de utilização e disponibilidade.

 

Quanto ao chamado elemento subjetivo (ou psicológico) do esbulho — o animus spoliandi — ou seja, a intenção de praticar a ofensa possessória, entendemos ser de absoluta irrelevância para fins de obtenção da tutela interdital, não podendo ser assimilado ou confundido com o dolo ou a culpa preconizados na teoria aquiliana. O animus não é requisito fático para configuração da perda da posse — o que se dá no mundo dos fatos — tampouco requisito legal, não passando de puro questionamento ou especulação doutrinária. O componente subjetivo é supérfluo para a obtenção do resultado — a tutela possessória — porquanto o fundamento da proteção reside na demonstração do elemento objetivo, qual seja a efetiva perda da posse, total ou parcial. No direito aplicado, o aspecto volitivo não está compreendido no ato-fato da moléstia (esbulho ou turbação), pois não pertence à estrutura do ato lesivo. Colocada a ação à exclusiva proteção de uma situação de fato, entendida no seu aspecto concreto e atual, não pode ser limitada pela falta de voluntariedade do ato nem pela circunstancia que poderia justificar o comportamento do agente.  

 

Na distinção entre esbulho e turbação, o intérprete não deverá valorar a abstrata correspondência dos atos lesivos à noção de moléstia; deve, sim, passar à análise dos verdadeiros impedimentos da função social assinalada ao poder de fato sobre o bem da vida, dentro da relação possessória. Somente comportamentos que determinem uma desfuncionalização do poder de fato, além da normal tolerabilidade, merecem ser reprimidos por meio das ações possessórias. O esbulho significa a perda (total ou parcial) da posse; a turbação, a prática de atos de molestamento.  

 

A turbação é todo ato ilícito de moléstia à posse, diverso do esbulho, não compreendendo, portanto, qualquer situação fática de perda do poder de Ingerência sobre o bem. Contudo, para sua caracterização faz-se mister a existência de uma lesão à posse, não sendo suficiente a turbação simples ou a mera intenção de turbar; imprescindível toma-se o agravamento qualitativo ou quantitativo da situação possessória causada pela moléstia.

 

Por sua vez, o interdito proibitório tutela a posse, garantindo a permanência do possuidor e a abstenção por parte de terceiros da prática de turbação ou esbulho que ainda não se concretizaram, mas que ele tem justo receio de que se realizem futuramente. Esse futuro foi chamado pelo legislador de iminente. Tendo em vista as particularidades que envolvem as diversas situações de fato, comumente complexas, não se pode interpretar de maneira literal iminente como imediato. Assim, deve-se considerar que se pretendeu o não-rompimento do liame temporal em relação ao interesse do possuidor, razão por que não há de se falar num futuro longínquo ou remoto, mas que também não precisa ser breve ou imediato — basta que seja próximo. O justo receio de sofrer perturbação importa em temor fundado, e não em mera possibilidade, especulação ou ilação do possuidor Resultará de ameaça (verbal ou escrita) ou terá como causa o comportamento do sujeito que exprima a sua vontade inequívoca em traduzir os seus gestos em atos de moléstia (esbulho ou turbação). A verdade é que a expressão justo receio representa juridicamente um conceito vago, vinculando a interpretação do magistrado à análise das peculiaridades de cada caso concreto, porquanto somente estas demonstrarão a existência desse requisito para a concessão da tutela de conteúdo cominatório negativo.

 

Verifica-se que as denominadas ações vindicatórias da posse (ou reivindicatórias da posse) fundadas no art. 521 do CC de 1916 foram suprimidas (injustificadamente) do atual NCC, quando deveriam ter sido apenas deslocadas do Capitulo IV, “Da perda da posse”, onde se encontravam, passando a integrar este Capítulo III, “Dos efeitos da posse”, por ser o seu hábitat natural, mantendo-se assim, a coerência do sistema.  

 

Por isso, afigura-se de boa técnica a inclusão da previsão normativa da demanda apontada, para que dúvidas futuramente não pairem, a fim de autorizar o possuidor a proteção interdital (muitas vezes mais vantajosa), sem ter de recorrer à demanda de natureza real (reivindicatória), visto que esta ação (vindicatória) pode ser dirigida contra terceiros com justo título e boa-fé, o que é juridicamente impossível com as ações de reintegração de posse.

 

O § 1º versa a respeito da autotutela (legítima defesa e desforço incontinenti). Sendo a posse um importante fenômeno socioeconômico do mundo fático, palco natural dos principais acontecimentos da vida humana, permitiu o legislador que o possuidor turbado ou esbulhado pudesse ser mantido ou restituído por força própria, desde que a providência fosse tomada logo. Contudo, esses atos de defesa ou de desforço não poderiam ultrapassar o limite indispensável à manutenção ou restituição da posse.

 

São estes requisites que devem estar presentes para justificar a prática de atos de defesa (contra a turbação) ou de desforço (contra o esbulho): a) ofensa à posse; b) imediatidade da repulsa (resistência à turbação e recuperação da posse); c) moderação nos atos de defesa ou de desforço (equilíbrio entre a moléstia sofrida e o ato de repulsa); e d) prática dos atos pelas próprias mãos.

 

A exceção de domínio (exceptio proprietatis), mesmo como regra de exceção, sempre violou a pureza dos interditos, afrontando assim o senso maior dos puristas que preconizavam a tutela possessória e o seu julgamento com base tão-somente na questão de mérito ancorada no ius possessionis, à medida que neste tipo de ação não se discute o título de propriedade. A exceção vinha à baila somente quando ambos os litigantes postulavam a posse com base em direito real, ou quando duvidosas as posses. Nesses casos, aplicava-se a segunda parte do art. 505 do CC de 1916 — excerto não mais repetido no § 2º deste CC 1.210—que assim preconizava: “Não se deve, entretanto, julgar a posse em favor daquele a quem evidentemente não pertencer o domínio”.  O próprio STF chegou a editar a Súmula 487 a respeito do tema: “Será deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio, se com base neste for ela disputada”. A novidade insculpida no CC 1.210, § 22, modifica radicalmente o panorama sobre o tema apresentado, considerando-se a supressão da segunda parte do antigo art. 505 do CC de 1916, que, em outros termos, significa a não recepção do instituto jurídico da exceptio proprietatis. Doravante, os julgamentos em sede possessória haverão de pautar-se, tão-somente, com base na pureza dos interditos, i. é, levando-se em conta, para a tomada de decisão, apenas as questões pertencentes ao mundo dos fatos.

 

 Sugestão legislativa: Pelas razões expostas, oferece-se ao Deputado Ricardo Fiuza a seguinte sugestão: NCC ~ 2º Se a coisa móvel ou título ao portador houverem sido furtados ou perdidos, o possuidor poderá reavê-los da pessoa que o detiver; ressalvado a essa o direito de regresso contra quem lhos transferiu. Sendo o objeto comprado em leilão público, feira ou mercado, o dono, que pretender a restituição, é obrigado a pagar ao possuidor o preço por que o comprou. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 624-26, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 11/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

 

No lecionar de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, o ordenamento jurídico prevê uma série de medidas protetivas à disposição do possuidor, sempre que for verificada a ocorrência de lesão ao exercício regular da posse. Com efeito, tratando-se de um fato que produz interesse social, cabe ao Direito protegê-la adequadamente, seja na hipótese de esbulho ou turbação ou, ainda, quando ocorrer simples ameaça. Dentre as medidas protetivas da posse, toma corpo a defesa pessoal contra o esbulho ou turbação, tratando-se de atos de legítima defesa, tal como afigura na esfera penal, sob a proteção do ordenamento, desde que cumpridos os requisitos legais.

 

A autodefesa da posse é também denominada autotutela, reportando-se à prerrogativa legal que tem o possuidor, antes do ajuizamento da medida possessória adequada, de usar da própria força física, ou de mecanismos adequados, para repelir a atuação violenta de quem pretenda apossar-se injustamente da coisa. O conhecido desforço pessoal tem caráter de reação, de resistência, podendo ser viabilizado para recuperação da posse, sempre que atos de violência (esbulho ou turbação) estejam ocorrendo, mas não quando já estiverem devidamente consumados ou sedimentados (Mário, 2004, p. 63).

 

O desforço pessoal da posse é condicionado à existência de dois elementos fundamentais, quais sejam: a) que a reação seja imediata, e não retardada no tempo (imediatismo); b) que a reação seja adequada e proporcional a violência perpetrada pelo agente (proporcionalidade), equivalendo, assim, a uma verdadeira legítima defesa da posse. Os requisitos do desforço pessoal – imediatidade e proporcionalidade – previstos no texto legal devem ser analisados à luz do plano da efetividade, ou seja, faz-se necessária uma reação que seja capaz de impedir a consolidação da ocupação injusta, com os meios adequados à repulsa, o que não significa a utilização de idênticos meios efetivados pelo esbulhador.

 

A ação de manutenção da posse é cabível sempre que o possuidor vivenciar uma situação de perturbação no exercício de sua posse, mesmo que não tenha sido privado desta. Aliás, conforme a regra do art. 927 do CPC/1973 (correspondendo hoje ao art. 561, idêntica redação, no CPC/2015), a turbação se traduz por atos típicos de molestação da posse alheia, sem que fique o titular privado totalmente de seu exercício. Com efeito, sofrendo o possuidor embaraço no pleno exercício, mas sem chegar a perder a posse, poderá postular ao juiz a concessão de medida liminar inaudita altera pars, a fim de que seja expedido competente mandado de manutenção, desde que os atos turbativos contem com menos de ano e dia, pois, caso contrário, não caberá pedido de liminar, nos moldes do art. 928 do CPC/1973 (correspondendo hoje ao art. 562, idêntica redação, no CPC/2015). Note-se que a ação judicial poderá ser intentada contra terceiros ou mesmo contra o próprio possuidor indireto (proprietário), eis que ordenamento concede ampla proteção àquele que exerce, de forma imediata e justa, a posse. De outro prisma, o possuir indireto também poderá se utilizar desta ação contra terceiros, mas nunca contra o possuidor direto, que detém o corpus.

 

Quando os atos de turbação forem numerosos, ou múltiplos no tempo, será investigado se há, entre eles, um liame ou desdobramento lógico. Se houver, conta-se o prazo de ano e dia a partir do último ato praticado; caso contrário, se cada ato constituir-se numa turbação autônoma, contar-se-á o prazo da prática de cada um deles (Mário, 2004, p. 68). A ação de reintegração de posse é a medida judicial adequada na hipótese de o titular vir a perder, efetivamente, o exercício da posse que antes detinha. Buscará, com esta medida, a recuperação da posse de que fora privado, por ato caracterizado como esbulho. Reintegração significa ter de volta aquilo do qual foi privado por ato esbulhador ou de espoliação, postulando o titular, assim, a recuperação do exercício da posse através de tutela liminar, da mesma maneira como se dá na ação de manutenção. Poderá o possuidor ficar impedido do exercício da posse por ato de terceiros ou do possuidor indireto, por meio de alguns dos vícios já analisados, como a violência, a clandestinidade ou a precariedade. O elemento diferencial da ação de reintegração em relação à de manutenção é que nesta não ocorre a perda efetiva do exercício da posse, o que sucede na outra, por um dos vícios apontados.

 

O interdito proibitório diz respeito a uma defesa preventiva da posse, ou seja, tem utilização nas situações em que o possuidor sentir-se-á ameaçado de turbação ou esbulho, sem que estes atos tenham efetivamente se consumado. O ordenamento assegura o possuidor da ocorrência de violação iminente que venha a sofrer ao seu livre exercício de posse. Tal prerrogativa legal se encontra à disposição tanto do possuidor direto quanto do indireto, desde que demonstre fundado receio de turbação ou esbulho em sua posse, requerendo ao juiz a expedição de competente mandado proibitório.

 

O mandado proibitório consiste, pois, em ordem judicial determinando que o ré se abstenha da prática dos atos ameaçadores, cominando pena de multa diária, em caso de descumprimento do preceito, destinada ao autor ou a terceiros, nos exatos termos do art. 932 do CPC/1973, Da Seção III – do Interdito Proibitório, correspondendo hoje ao art. 567 do CPC/2015.

 

Não é qualquer ameaça que possibilita a utilização do interdito, mas sim aquela capaz de gerar a firme convicção de que serão consumados os atos de turbação ou esbulho. De fato, o que importa é a seriedade da ameaça, não sendo necessária, entretanto, a efetiva prova do animus turbandi do réu. Se o possuidor está ameaçado de ser molestado em sua posse, não importa averiguar-se a real intenção do agente, bastando, pois, que seja fundado e plausível o receio de concretizar-se a turbação ou o esbulho (Gomes, 1980, p. 88) Efetivamente, nem sempre é possível obter-se uma prova idônea e eficiente da ameaça praticada pelo réu. Se, no curso do processo, vier a consumar-se a turbação ou o esbulho, até então sob forma de ameaça, o interdito proibitório transmuda-se em ação de manutenção ou reintegração, com a concessão da medida liminar específica, bastando a simples comunicação do autor ao juiz, sem necessidade de novo processo. Já o contrário não se admite.

 

Nas medidas possessórias denominadas de força velha admite-se a antecipação de tutela, uma vez presentes os requisitos constantes do art. 273 do CPC/1973, (correspondendo hoje ao art. 300 do CPC/2015 - [V. arts. 294, 295, 300, 301, 303, 304, 1.059, relacionados]), ou seja, havendo prova inequívoca quanto aos fatos e verossimilhança do alegado pelo suscitante (Enunciado 238). Os conceitos de prova inequívoca e verossimilhança devem ser valorados conjuntamente. Na antecipação de tutela, não se exige a certeza, bastando a probabilidade (RJ 229/75).

 

Enunciado 78 do Conselho da Justiça Federal: “Tendo em vista a não-recepção pelo novo Código Civil da exceptio proprietatis (CC 1.210, § 2º) em caso de ausência de prova suficiente para embasar decisão liminar ou sentença final ancorada exclusivamente no ius possessionis, deverá o pedido ser indeferido e julgado improcedente, não obstante eventual alegação e demonstração de direito real sobre o bem litigioso”.

 

Enunciado 79 do Conselho de Justiça Federal: “A exceptio proprietatis, como defesa oponível às ações possessórias típicas, foi abolida pelo Código Civil de 2002, que estabeleceu a absoluta separação entre os juízos possessório e petitório”.

 

Enunciado 238 do Conselho da Justiça Federal: “Ainda que a ação possessória seja intentada além de “ano e dia” da turbação ou esbulho, e, em razão disso, tenha seu trâmite regido pelo procedimento ordinário (CPC/1973, art. 924, correspondendo no CPC/2015 ao art. 558) nada impede que o juiz conceda a tutela possessória liminarmente, mediante antecipação de tutela, desde que presentes os requisitos autorizadores do s os requisitos autorizadores do art. 273, I ou II, bem como aqueles previstos no art. 461-A e parágrafos, todos do CPC/1973, correspondendo, hoje, aos arts. 300, (ver arts. 294, 295, 300, 301, 303, 304, 1.059, relacionados e 311)”.

 

Enunciado 239 do Conselho da Justiça Federal: “na falta de demonstração inequívoca da posse que atenda à função social, deve-se utilizar a noção de “melhor posse”, com base nos critérios previstos no parágrafo único do art. 507 do CC/1916”.

 

Enunciado 495 do Conselho da Justiça Federal: “No desforço possessório, a expressão “contanto que o faça logo” deve ser entendida restritivamente, apenas como a reação imediata ao fato do esbulho ou da turbação, cabendo ao possuidor recorrer à via jurisdicional nas demais hipóteses”.

 

O CPC/2015 estabeleceu novo dispositivo no Capítulo – Das Ações Possessórias – relativo ao litígio coletivo pela posse do imóvel, determinando que quando o esbulho ou a turbação tiver ocorrido há mais de ano e dia, o juiz deverá designar audiência de mediação antes de apreciar, o juiz deverá designar audiência de mediação antes de apreciar a liminar (art. 565). (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 11.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

 

Art. 1.211. Quanto mais de uma pessoa se disser possuidora, manter-se-á provisoriamente a que tiver a coisa, se não estiver manifesto que a obteve de alguma das outras por modo vicioso.

 

Sob o prisma de Francisco Eduardo Loureiro o Código Civil de 2002 pouco alterou o preceito semelhante do art. 500 do Código revogado. Apenas tornou a redação mais técnica, substituindo o termo “a que detiver a coisa” por “a que tiver a coisa”, eliminando a ideia de que o mero detentor pudesse invocar a seu favor a tutela possessória. Consagra a regra o velho princípio quieta non movere. Havendo dúvida fundada acerca de quem é o real possuidor, mantém-se a coisa em poder de quem com ela fisicamente se encontra, coibindo o conflito das partes pelo seu apoderamento. É uma espécie de manutenção provisória da coisa em poder de quem com ela se encontra, até que haja final decisão na ação possessória. A regra, porém, não vale para o caso em que houver prova robusta de que aquele que tem o poder imediato sobre a coisa a obteve dos demais de modo vicioso. O art. 500 do Código de 1916 sempre foi interpretado cm consonância com o art. 507 do mesmo diploma, que tratava da manutenção e da reintegração liminar nas ações de posse nova, determinando que, no caso de dúvida, houvesse o sequestro da coisa litigiosa. Como não foi a regra do art. 507 reproduzida, prevalece a disciplina dos arts. 920 e seguintes do Código de Processo Civil/1973, (correspondendo hoje ao art. 554 e ss. do CPC/2015 no seu Capítulo III. O Enunciado n. 239 da II Jornada do Centro cie Estudos Judiciários da Justiça Federal vai no mesmo sentido: “Na falta de demonstração inequívoca de posse que atenda à função social, deve-se utilizar a noção de ‘melhor posse’, com base nos critérios previstos no parágrafo único tio art. 507 do CC/1916”. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.170. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 11/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).

 

Historicamente, o presente dispositivo não estava previsto no anteprojeto do eminente Ebert Vianna Chamoun, tendo sido acrescentado por emenda do Deputado Marcelo Gato, ainda no período inicial de tramitação na Câmara dos Deputados. Posteriormente não veio a sofrer qualquer nova alteração, seja por parte do Senado Federal, seja por parte da Câmara dos Deputados, no período fina] de tramitação do projeto.  A emenda teve por escopo conservar a disposição constante do art. 500 do CC de 1916, com uma ligeira alteração: “tiver” em lugar de “detiver”. Comentando o art. 500, lembra Pontes de Miranda que corresponde ao chamado summarissimum possessorium, ou seja, medida administrativa, extrajudicial, de proteção da posse. Se o possuidor esbulhado pode desforçar-se, inclusive com emprego da violência, também pode, com maior razão, solicitar auxílio à autoridade judiciária. Esta, obediente ao princípio da conservação da situação fática que preside a toda proteção possessória, dar-lhe-á força, se for manifesto que o reclamante foi despojado da posse injustamente; caso contrário, manterá na posse aquele que estiver em poder do bem.  Trata-se de regra importante que merecia ser mantida no sistema. A proteção possessória não está afeta apenas ao Judiciário, e suprimir tal regra significa dar alento aos inescrupulosos. A substituição do verbo “detiver’ pelo verbo “tiver” foi feita em atenção à terminologia do projeto, que configura a detenção como a posse em nome de outrem. “Tiver”, aí empregada, alude a poder corpóreo, físico, sobre a coisa, isto é, aquilo a que se chama “tença”.  O art. 500 do CC de 1916 é praticamente idêntico ao que ora comentou-se.

 

Em sua Doutrina, Ricardo Fiuza aponta que, Nesses casos mencionados no dispositivo em análise, será provisoriamente mantida na posse do bem a pessoa que estiver possuindo, no momento da propositura da ação, não sendo manifesto que a obteve de outras por modo vicioso, isto é, se houver um possuidor aparente, cuja posse não seja viciosa, este é quem deve ser mantido na posse, sem qualquer indagação sobre a qualidade dela. Assim, o êxito da demanda interdital depende da qualidade da posse que se pretende manter ou recuperar.  Porém, o NCC não recepcionou a regra insculpida no art. 507 do CC de 1916 que sempre era interpretado sistematicamente com o art. 500 e que, efetivamente, completavam-se entre si, in verbis: “Na posse de menos de ano e dia, nenhum possuidor será manutenido, ou reintegrado judicialmente, senão contra os que não tiverem melhor posse. Parágrafo único. Entende-se melhor a posse que se fundar em justo título; na falta de título, ou sendo os títulos iguais, a mais antiga; se da mesma data, a posse atual. Mas, se todas forem duvidosas, será sequestrada a coisa, enquanto se não apurar a quem toque”. Agora, à doutrina e aos tribunais caberá conferir esse entendimento, na interpretação e aplicação do novo dispositivo. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 626-27, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 11/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

 

Sob a tutela de Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, o presente dispositivo não estava previsto no anteprojeto do Prof. Ebert Chamoun, pendo sido acrescentado por posterior emenda, mantendo na íntegra, todavia, a redação do art. 500 do Código revogado, substituindo, tão somente, a expressão detiver a coisa (que lembra a figura do detentor) por tiver a coisa (reforçando a ideia de posse). Tratando-se de situação fática, a pessoa que tiver o pleno exercício sobre a coisa será mantida provisoriamente na posse, ressalvada a hipótese comprovada de que a obteve de forma defeituosa, dentre os apontados vícios de clandestinidade, precariedade ou violência.

 

Em verdade, o dispositivo traça a noção de que, caso seja provocado, o poder judiciário deverá manter na posse aquele que a vem exercendo continuamente, despida de vícios – a denominada posse jurídica – ante o princípio da conservação da posse como pode ocorrer caso venha a sofrer esbulho. Mas se restar demonstrado que a posse questionada foi obtida mediante violência, ou outro vício, deverá o juiz manter aquele que se encontra no bem. O judiciário, obediente ao princípio da conservação da situação fática que preside a toda proteção possessória, dar-lhe-á força, se for manifesto que o reclamante foi despojado da posse injustamente; caso contrário, manterá na posse aquele que estiver em poder do bem. (Joel Dias, Novo Código Civil Comentado, coord. Ricardo Fiuza, Saraiva, 2002, p. 1.083). aqui enfrentamos a situação de dois contendores que se autoproclamam possuidores, ou seja, sem qualquer referência a domínio ou titularidade sobre o bem, cada qual alegando o pleno exercício de fato sobre o bem sem a afirmação da condição de proprietários (exceptio dominii). Portanto, a decisão judicial, para esse fim, não poderá se fundar em alegação de domínio. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 11.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

 

Art. 1.212. O possuidor pode intentar a ação de esbulho, ou a de indenização, contra o terceiros, que recebeu a coisa esbulhada sabendo que o era.

 

Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira estendem seu conhecimento quando apontam que o legislador protege o possuidor contra qualquer terceiros que esteja injustamente em poder do bem, desde que este tenha conhecimento do vício que incide sobre a posse que veio a adquirir. Em sendo ignorado o vício pelo terceiro possuidor, há de considera-lo como possuidor de boa-fé, não cabendo qualquer ação possessória contra o mesmo, por se tratar de parte ilegítima, pertinente, apenas, demanda reivindicatória, que possui dilação probatória mais abrangente.

 

Enunciado 80 do Conselho da Justiça Federal: “É inadmissível o direcionamento de demanda possessória ou ressarcitória contra terceiro possuidor de boa-fé, por ser parte passiva ilegítima diante do disposto no CC 1212. Contra o terceiro de boa-fé, cabe tão-somente a propositura de demanda de natureza real”.

 

Enunciado 236 do Conselho da Justiça Federal: “Considera-se possuidor, para todos os efeitos legais, também a coletividade desprovida de personalidade jurídica”. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 11.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

 

O histórico reza que o dispositivo em tela não foi atingido por qualquer espécie de modificação, seja da parte do Senado Federal, seja da parte da Câmara dos Deputados, no período final de tramitação do projeto. A redação atual é a mesma do anteprojeto. A redação atual é idêntica à do art. 504 do CC de 1916.

 

A Doutrina de Ricardo Fiuza mostra que as ações de manutenção (turbação) ou de reintegração (esbulho) de posse somente podem ser dirigidas contra o sujeito que, efetivamente, praticou o ato ou contra terceiros que se encontram em poder do bem, sabedores dos vícios que maculam a posse adquirida. Em outras palavras, verifica-se carência de ação por falta de legitimidade passiva no direcionamento de demanda interdita contra terceiro com justo título e boa-fé. Resta-lhe, se for também titular de direito real, ajuizar demanda de natureza real (direito de sequela e oponível erga omnes). (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 627, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 11/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).

 

Expandindo-se, Francisco Eduardo Loureiro acrescenta que a regra em comento deriva do interdito unde vi do Direito romano, que tinha por objeto recuperar a posse dos imóveis esbulhados por ato violento e só podia ser intentado contra o próprio esbulhador. Foi posteriormente estendido pelo direito canônico ao terceiro adquirente, desde que estivesse de má-fé no momento da aquisição da posse. Considera o legislador que tanto o terceiro adquirente de boa-fé como o esbulhado são - ou foram - titulares de posse justa e inclina-se a favor do primeiro, que nenhum ato ilícito praticou e tem a posse atual da coisa. Note-se que o esbulhado não tem ação possessória para recuperar a coisa em poder do adquirente de boa-fé, fundada no ius possessionis. Tem, porém, ação petitória para tal finalidade, fundada no ius possidendi, vale dizer em relação jurídica de direito real ou pessoal que confira direito à posse, matéria esmiuçada no comentário ao § 2º do CC 1.210. Cabe a ressalva de que nem todo terceiro está amparado por este artigo do Código Civil. O sucessor causa mortis e o sucessor universal continuam de direito a posse de seus antecessores, recebendo-a com os mesmos caracteres. Logo, se a posse do autor da herança era de má-fé, têm os sucessores legitimidade para figurar no polo passivo da ação possessória e da ação indenizatória. A posse é a mesma, com idênticas qualidades e vícios, e apenas prossegue com titular distinto. No que se refere à sucessão inter vivos - accessio possessionis - a união das posses, como já visto, é mera faculdade do adquirente, que, portanto, não tem a sua situação jurídica automaticamente contaminada pelos vícios da posse ou má-fé do antecessor. Se, no entanto, ao adquirir a posse tinha conhecimento dos vícios, tem o dever de restituir a coisa ao esbulhado, além de compor perdas e danos.

 

Assentou o Enunciado n. 80 aprovado na Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no período de 11 a 13 de setembro de 2002, sob a coordenação científica do Ministro Ruy Rosado, do STJ, a respeito do tema: “CC 1.212: É inadmissível o direcionamento de demanda possessória ou ressarcitória contra terceiro possuidor de boa-fé, por ser parte passiva ilegítima, diante do disposto no CC 1.212 do novo Código Civil. Contra o terceiro de boa-fé cabe tão somente a propositura de demanda de natureza real”. Cabe apenas a ressalva de que, após a citação na ação possessória, irrelevante é a cessão da posse, ou a boa-fé do adquirente. Isso porque, nos exatos termos do art. 42, combinado com o art. 219, ambos do Código de Processo Civil de 1973, (correspondendo hoje aos arts. 109 e 240, do CPC/2015, respectivamente, tendo acréscimo na redação do 240 em relação à redação anterior) a alienação da coisa ou do direito litigioso, a título particular, por ato entre vivos, não altera a legitimidade das partes. Em tal hipótese, a sentença proferida entre as partes originárias estende os seus efeitos aos adquirentes ou cessionários. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002. Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.171-72. Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 11/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).


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