Direito Civil Comentado - Art. 1.223, 1.224
Da Perda da Posse - VARGAS, Paulo S. R.
- Livro III
– Título I – Da Posse (Art. 1.196 ao
1.368)
Capítulo IV – Da
Perda da Posse (Arts. 1.223 e 1.224)
– digitadorvargas@outlook.com – vargasdigitador.blogspot.com
Art. 1.223. Perde-se a posse quando cessa, embora contra a vontade do possuidor, o
poder sobre o bem, ao qual se refere o CC 1.196.
Faz menções Francisco Eduardo Loureiro,
ao Código
Civil de 2002 que deixa de enumerar os modos de perda da posse, como fazia o
art. 520 do Código de 1916. A redação atual é mais clara e técnica, eliminando
dúvidas que surgiram no sistema anterior, que, nesse ponto, mesclava as teorias
objetiva e subjetiva da posse. Determinar todas as condutas do possuidor, como
fazia o Código anterior, constituía inútil e especiosa particularização.
Segundo o CC 1.196 do Código Civil, possuidor é todo aquele que tem de fato o
exercício, pleno ou não, de alguns dos poderes inerentes ao domínio. Adquire a
posse quem passa a assim se comportar e perde a posse quem deixa de assim se
comportar. Perde-se a posse toda vez que o possuidor não exerça, ou não possa
exercer, poder correspondente ou análogo ao do proprietário, ou seja, quando
deixa de ter a visibilidade do domínio. Cabe ressaltar que nem sempre o
possuidor mantém conduta comissiva em relação à coisa. Não há necessidade de
manter a coisa sob seu poder físico, imediato, porque nem sempre assim se
comporta o proprietário cm relação ao que é seu. Basta ao possuidor que se
comporte como dono, dando ostensivamente à coisa a sua destinação econômica e
natural, conservando-a e defendendo-a, porque assim age o proprietário. Logo,
não perde o possuidor a posse de uma casa de campo ou de praia, que somente a
frequenta durante temporada de férias, porque esta é a sua natural destinação.
Tem a posse dois elementos, o objetivo (corpus) e o subjetivo (animus).
Perde-se a posse quando deixa de existir qualquer um dos elementos, ou os dois
concomitantemente. Por falta dos elementos objetivo e subjetivo, perde-se a
posse pelo abandono, ou pela tradição. No abandono, o possuidor abdica da
posse, por ato unilateral. Na tradição, o alienante transmite a posse, com
entrega da coisa ao adquirente. Por falta somente do elemento objetivo, perde-se
a posse pela destruição ou perda da coisa, pela posse de outrem e pelo fato de
ser posta fora de comércio. Na perda da coisa, conserva o possuidor a vontade
de recuperá-la, tanto assim que o descobridor, que a localiza, deve devolvê-la
ao possuidor ou proprietário que está à sua procura. Na destruição, a coisa
desaparece contra a vontade do possuidor, quer por fato natural, quer por ato
de terceiro. Deve a destruição ser total e permanente, caso contrário remanesce
a posse sobre o que restou da coisa, ou se mantém a posse sobre a coisa
temporariamente inacessível. Quanto à posse de outrem, pode se dar por ato que
conte com a anuência do possuidor como também contra a sua vontade, caso em que
ocorrerá o esbulho, se o ato de terceiro for ilícito. Nesta última hipótese,
confere o ordenamento direito ao ex-possuidor de reagir, usando a tutela
possessória, quer pela autotutela, quer pelas ações possessórias, para
recuperar a posse injustamente perdida. Quanto à coisa ser posta fora de
comércio, lembre-se de que o Código Civil de 2002 não mais disciplina tal
categoria de bens, de modo que a figura comporta algumas observações. Há
entendimento da incompatibilidade da posse de particulares sobre bens públicos.
Contra a vontade do Poder Público, teria o particular simples detenção sobre a
coisa. Não parece ser exata tal posição, que somente se aplica aos bens
públicos de uso comum do povo ou de uso especial. Claro que não possuo a rua
sobre a qual transito com o meu veículo, nem o parque onde passo horas de recreio,
nem o prédio da repartição onde vou tirar uma certidão. É possível, porém, a
posse de particulares sobre bens públicos dominicais, sem destinação pública.
Tal posse será ad interdicta e não ad usucapionem, na
impossibilidade de o possuidor adquirir sua propriedade pela via da usucapião.
Os demais efeitos da posse, como a tutela possessória, indenização por
benfeitorias, direito à percepção de frutos, porém, se produzem normalmente,
contra terceiros e contra o Poder Público, de acordo com a boa-fé ou a má-fé
do possuidor. Por falta do elemento subjetivo, perde-se a posse pelo constituto
possessório, que nada mais é do que uma forma ficta de tradição, pela qual o
alienante continua com poder material sobre a coisa, mas em nome do adquirente.
(Francisco Eduardo Loureiro, apud Código
Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002.
Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.186-87.
Barueri, SP: Manole, 2010. Acessado 18/09/2020. Revista e atualizada nesta data
por VD).
Historicamente, o dispositivo em tela não sofreu praticamente nenhuma alteração substancial, seja por parte do Senado Federal, seja por parte da Câmara dos Deputados, no período final de tramitação do projeto, tendo mantido basicamente a mesma redação do Anteprojeto. Quando da fase final de revisão do texto legal, apresentou-se proposta de correção encaminhada ao ilustre Relator-Geral, Deputado Fiuza, que terminou por ser acolhida, no sentido de substituir, no texto primitivo, a palavra “coisa” por “bem”, por ser esta mais adequada em face da sua amplitude (gênero), enquanto aquela representa uma de suas espécies. O dispositivo encontra seu paralelo no art. 520 do CC de 1916, nada obstante as inúmeras alterações verificadas.
Na conscientização da doutrina aplicada por Ricardo Fiuza, o possuidor perde a posse quando não há mais, contra sua vontade, poder fático de ingerência socioeconômica sobre determinado bem da vida. Não se pode esquecer de que o poder de fato de ingerência sobre um bem da vida, capaz de excluir terceiros e formar a relação socioeconômica entre o seu titular e o bem respectivo (formação dialética do fenômeno possessório) é o núcleo deste instituto, elemento imprescindível para a sua configuração. Por isso, cessado esse poder contra a vontade do possuidor, considera-se perdida a posse. Todavia, por verdadeira ficção jurídica, o possuidor esbulhado só vem a perder a posse de um bem quando não busca a reintegração dentro do período de ano e dia, que passa a funcionar como uma espécie de condição suspensiva fatual, ou seja, suspensão temporária do prazo com a expectativa de recuperação (prazo decadencial que não se suspende ou Interrompe, não podendo ser ampliado ou reduzido). Trata-se de ficção jurídica porque o possuidor perde, de fato, a posse do bem. Não obstante, a lei confere a garantia de manter-se ou restituir-se por força própria, contanto que o faça logo (CC 1.210, § lº), ou, ajuizando demanda interdital, com rito especial, no prazo de ano e dia, a contar da data do esbulho, para a obtenção da reintegração liminar. Caso contrário, aquele que estiver na posse por mais de ano e dia, nela será mantido até ser convencido pelos meios ordinários. (Direito Civil - doutrina, Ricardo Fiuza – p. 631-32, apud Maria Helena Diniz Código Civil Comentado já impresso pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 18/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Analogamente Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, da mesma forma que a posse tem início pela exteriorização dos atos típicos de quem parece ser o proprietário – atos de exteriorização da propriedade, descritos no CC 1.196 – ela é perdida quando estes mesmos atos deixam de existir, ou seja, quando cessa o poder da pessoa sobre o bem.
O legislador preferiu estabelecer uma forma genérica e ampla de perda da posse, sem especificar outras maneiras particularizadas. Entretanto, a doutrina indica outras causas extintivas: abandono, tradição, perda, destruição da coisa, inalienabilidade e pela posse de terceiros.
O abandono ocorre quando o possuidor, de forma intencional, se afasta do bem com o intuito de não mais exercer sobre ele atos possessórios, privando-se, assim, da disposição sobre a coisa. A tradição se caracteriza pela vontade do possuidor em transferir para outra pessoa o exercício da posse, como pode ocorrer na compra e venda, permuta etc. A perda da posse se dá, aqui, por conta de uma transferência efetivada entra as partes – e não por abandono – onde o alienante deixa de exercer a disposição sobre o bem de forma voluntária.
A destruição da coisa se verifica através de evento natural ou fortuito, por ato do próprio possuidor ou mesmo de terceiros. É necessário que não haja uma mera danificação da coisa, mas sua inutilização econômica total, como se dá na hipótese de um raio que vem a abater o animal bovino no pasto. Assim, sendo destruído o objeto, ocorrerá a extinção do próprio direito do possuidor (Diniz, 2002, p. 71).
Perde-se a posse quando o bem é colocado fora do comércio, tornando-se impossível a ocorrência de qualquer ato de disposição particular sobre a coisa. São inalienáveis, assim, as coisas insuscetíveis, de apropriação, como aqueles bens que, por razões de ordem pública, ou de segurança pública, passam a categoria de bens extra commercium Gonçalves, 2006, p. 104).
Ultima-se a perda da posse na hipótese de esbulho sobre o bem, praticado por terceiro, contra a vontade do antigo possuidor, privando-o do exercício. Pela característica da exclusividade da posse – que não admite a concomitância em seu exercício, excetuada a composse – quando uma terceira pessoa passa a efetuar atos possessórios em detrimento do legítimo possuidor, ocorrerá a perda da posse para este, pode deixar de haver ato de disposição sobre o bem. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 18.09.2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Art. 1.224. Só se considera perdida a posse para quem não
presenciou o esbulho, quando, tendo notícia dele, se abstém de retornar a
coisa, ou, tentando recuperá-la, é violentamente repelido.
Como leciona Francisco Eduardo Loureiro, o artigo em comento mantém o mesmo
conteúdo do art. 522 do Código de 1916, apenas apurando a redação, ao
substituir o termo “ausente”, de significado duplo, pela mais precisa expressão
“quem não presenciou o esbulho”. O CC 1.208 do Código Civil, anteriormente
comentado, dispõe que não autorizam a aquisição da posse os atos violentos ou
clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade. Enquanto
persiste a clandestinidade, portanto, tem o ocupante singela detenção, porque
oculta a situação do verdadeiro possuidor, impossibilitando a sua reação. Ao
tomar conhecimento da ocupação da coisa por parte de terceiro, três condutas se
abrem ao possuidor, a saber: a) expulsa o intruso, usando da autotutela, caso
em que se considera que a posse nem chegou a se perder; b) tenta retomar a
coisa, sendo repelido por terceiro; neste momento a detenção se converte em
esbulho, marcada pelo vício original da clandestinidade; ou c) tomando
conhecimento da ocupação, permanece inerte, caso em que, mais uma vez, a
detenção do terceiro se converte em posse injusta, porque adquirida de modo
ilícito. O preceito deve ser interpretado com cautela, para evitar o excessivo
alargamento da autotutela. O termo temporal da perda da posse, “quando, tendo
notícia do esbulho”, deve ser lido como quando teve o possuidor real
conhecimento, ou poderia ter conhecido o esbulho. Não tem sentido que a conduta
culposa do possuidor, descurando-se daquilo que lhe pertence, postergue o
momento da perda da posse, ou amplie a possibilidade do uso da autotutela.
Entender o contrário teria o efeito de penalizar o possuidor zeloso, em favor
do possuidor desidioso. Note-se que o marco da perda da posse tem também
relevância a efeito para cômputo do prazo de ano e dia para a concessão da
liminar nas ações possessórias, que não pode ser indefinidamente postergado em
favor do possuidor que culposamente desconhece a dominação de terceiro. A
aferição da conduta culposa do possuidor, para efeito de conhecer o
apoderamento por terceiro, leva necessariamente em conta a natureza da coisa e
a função social da posse. É natural que o possuidor desconheça a invasão de sua
casa de veraneio fora da temporada, porque o comparecimento esporádico ao local
atende à natural função econômica e social da posse. A mesma situação teria
solução oposta, se a invasão ocorresse na própria residência onde é o possuidor
domiciliado, ou em terras destinadas ao cultivo, porque, cm tais casos, a
ausência afronta a natureza econômica ou social da posse. (Francisco Eduardo Loureiro, apud Código
Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência: Lei n. 10.406, de 10.02.2002.
Coord. Cezar Peluso – Vários autores. 4ª ed. rev. e atual., p. 1.188. Barueri,
SP: Manole, 2010. Acessado 18/09/2020. Revista e atualizada nesta data por VD).
Como infere o relator Ricardo Fiuza, a
doutrina e a jurisprudência, durante a vigência do Código de 1916, já
assinalavam que a expressão “ausente” empregada no art. 522 não tinha o mesmo
sentido descrito no art. 463 daquele mesmo Código (pessoa desaparecida de seu
domicílio...), mas designava aquele que não está presente no momento da
ocupação. A esse respeito, doutrina Carvalho Santos: “O dispositivo legal quer
dizer é que a simples ausência não importa na perda da posse, podendo o possuidor,
embora ausente, continuar a posse solo animo, ainda que a coisa possuída
por ele tenha sido ocupada por um terceiro, durante a sua ausência” (CC interpretado,
Rio de Janeiro, Freitas Rastos, 1979, v. VII, p. 257). (Direito Civil -
doutrina, Ricardo Fiuza – p. 632, apud Maria Helena Diniz
Código Civil Comentado já impresso
pdf 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 2.012, pdf, Microsoft Word. Acessado em 18/09/2020, corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
Dessa forma acentuam Luís Paulo Cotrim Guimarães e Samuel Mezzalira, quanto ao código anterior
usar o vocábulo ausente, ao invés de esbulhado, para definir
aquela situação do possuidor que se encontrava em viagem ou fora do local da
posse, aplicando, de forma rígida, a penalidade de perda da posse, ainda
que tivesse posse jurídica, ou seja, há mais de ano e dia. Com melhor redação,
o atual dispositivo trata da incúria do possuidor, eis que, ainda que
ciente do esbulho, não chegou a efetivar qualquer ação no sentido de obter de
volta a posse da qual era titular ou, mesmo que tenha tentado recuperá-la, fora
impedido pelo novel esbulhador.
A norma pontifica a ideia de
que o momento da ciência do esbulho, pelo verdadeiro possuidor, e o marco para
o ajuizamento da tutela possessória adequada, seja de manutenção ou
reintegração de posse. Entrementes, há de se adequar a norma ao bom senso que
se exige para este tipo de situação, posto que o longo tempo de ausência pode
significar, ou não, verdadeiro abandono do bem, embora não pareça ser
esta a interpretação adequada ao tipo. Pela especificidade da situação, não se
aplica ao caso o denominado desforço pessoal, ou defesa privada
da posse, referindo-se o dispositivo às medidas judiciais de recuperação da
posse. (Luís Paulo Cotrim Guimarães e
Samuel Mezzalira apud Direito.com acesso em 18.09.2020,
corrigido e aplicadas as devidas atualizações VD).
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