sexta-feira, 3 de abril de 2015

MANUAL DE PROCESSO PENAL – O PROCESSO ABSORVEU AS DEMAIS FORMAS COMPOSITIVAS DO LITÍGIO? – O “JUS PUNIENDI” - VARGAS DIGITADOR

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – NOÇÕES PRELIMINARES – O PROCESSO ABSORVEU AS DEMAIS FORMAS COMPOSITIVAS DO LITÍGIO? – O “JUS PUNIENDI” - VARGAS DIGITADOR

O processo absorveu as demais formas compositivas do litígio?

Insta acentuar que, embora a composição dos litígios se opere por meio do processo, este não absorveu por completo as demais formas compositivas da lide. Excepcionalmente, permite a lei ao indivíduo prover a conservação ou a obtenção de um bem jurídico com a execução de atos que regra geral lhe são defesos. Vejam-se, a propósito, as normas que se contêm nos arts. 1.210, 1283 e 644 do Código Civil. Trata-se de casos de verdadeira “autodefesa”, consentida e moderada pelo Estado. Por outro lado, proclamam os arts. 188 do Código Civil e 24 e 25 do CP serem lícitos os atos praticados em legítima defesa ou em estado de necessidade.

Quanto à autocomposição, ainda se mantém, quando em jogo interesses disponíveis. As transações são muito comuns na esfera extrapenal. Atualmente, com a criação dos Juizados Especiais Criminais, nas causas penais de menor potencial ofensivo, a “transação” não passa de verdadeira “autocomposição”.

O “jus puniendi”

Dos bens ou interesses tutelados pelo Estado (por meio das normas), uns existem cuja violação afeta sobremodo as condições de vida em sociedade. O direito à vida, à honra, à integridade física são exemplos. Tais bens e muitos outros são tutelados pelas normas penais, e sua violação é o que se chama ilícito penal ou infração penal. O ilícito penal atenta pois, contra os bens mais caros e importantes de quantos possua o homem, e, por isso mesmo, os mais importantes da vida social! Cabe ao legislador dizer quais são esses bens.

Como esses bens ou interesses são tutelados em função da vida social, como são eminentemente sociais, o Estado, então, não permite que a aplicação do preceito sancionador ao transgressor da norma de comportamento, inserta na lei penal, cabe ao próprio Estado, por meio dos seus órgãos, tomar a iniciativa motu proprio, para garantir, com sua atividade, a observância da lei.

Porque os bens tutelados pelas normas penais são eminentemente públicos, o direito de punir os infratores corresponde à sociedade. Ninguém desconhece que a prática de infrações penais transtorna a ordem pública, e a sociedade é a principal vítima, por isso mesmo, tem o direito de prevenir e reprimir aqueles atos que são lesivos à sua existência e conservação.

Como a sociedade, assim entendida, é uma entidade abstrata, a função que lhe cabe, de reprimir as infrações penais, permanece em mãos do Estado, que a realiza por meio dos seus órgãos competentes.

O jus puniendi pertence, pois, ao Estado, como uma das expressões mais características da sua soberania. Observe-se, contudo, que o jus puniendi existe in abstracto  e in concreto. Com efeito. Quando o Estado, por meio do Poder Legislativo, elabora as leis penais, cominando sanções àqueles que vierem a transgredir o mandamento proibitivo que se contém na norma penal, surge para ele o jus puniendi num plano abstrato e, para o particular, surge o dever de abster-se de realizar a conduta punível. Todavia, no instante em que alguém realiza a conduta proibida pela norma penal, aquele jus puniendi desce do plano abstrato para o concreto, pois, já agora, o Estado tem o dever de infligir a pena ao autor da conduta proibida. Surge, assim, com a prática da infração penal, a “pretensão punitiva”.

Desse modo, o Estado pode exigir que o interesse do autor da conduta punível em conservar a sua liberdade se subordine ao seu, que é o de restringi-la com a inflição da pena.

A pretensão punitiva surge, pois, no momento em que o “jus puniendi” in abstracto se transfigura no “jus puniendi” in concreto.

E de que maneira consegue o Estado tornar efetivo o seu direito de punir, infligindo a pena ao culpado? Também por intermédio do processo.

Da mesma forma que não haveria equilíbrio estável no meio social se se permitisse, no campo extrapenal, às próprias partes litigantes decidirem, pelo uso da força, seus litígios, também e principalmente no campo penal, na esfera repressiva, os abusos indescritíveis se multiplicariam em número sempre crescente, em virtude dos desmandos que o titular do direito de punir, cego e desenfreado, passaria a cometer.

Pondo os olhos nessa realidade incontrastável, o Estado, então, autolimitou o seu poder repressivo.

Assim, pelo respeito à dignidade humana e à liberdade individual é que o Estado fixa a manifestação do seu poder repressivo não só em pressupostos jurídico-penais materiais  (nullum crimen, nulla poena sine lege – não há crime sem prévia definição, nem pena sem anterior cominação legal), como também assegura a aplicação da lei penal ao caso concreto, de acordo com as formalidades prescritas previamente em lei, e sempre por meio dos órgãos jurisdicionais (nulla poena sine judice, nulla poena sine judicio – nenhum pena pode ser imposta senão pelo Juiz, nenhuma pena pode ser aplicada senão por meio do processo).

Daí as regras previstas no art. 5º, XXXIX, XXXV, LIII, e LIV, da Magna Carta: “não há crime sem lei anterior que o defina”; “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito”; “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”; e, finalmente, “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Desse modo, o Estado somente poderá infligir pena ao violador da norma penal após a comprovação de sua responsabilidade (por meio do processo) e mediante decisão do órgão jurisdicional.

Assim, quando alguém comete uma infração penal, o Estado, como titular do direito de punir, impossibilitado, pelas razões expostas, de autoexecutar seu direito, vai a juízo (tal qual o particular que teve seu interesse atingido pelo comportamento ilícito de outrem) por meio do órgão próprio (o Ministério Público) e deduz a sua pretensão, isto é, esclarece o que deseja, o que pretende. O Juiz, então, procura ouvir o pretenso culpado. Colhe as provas que lhe forem apresentadas por ambas as  (Ministério Público e réu), recebe as suas razões e, após o estudo do material de cognição recolhido, procura ver se prevaleceu o interesse do Estado em punir o culpado, ou se o interesse do réu, em não sofrer restrição no seu jus libertatis. Em suma: o Juiz dirá qual dos dois tem razão. Se o Estado, aplica a sanctio juris ao culpado. Se o réu, absolve-o. isso é processo.

Se o direito de punir pertence ao Estado, se a pena somente poderá ser imposta pelo órgão jurisdicional por meio de regular o processo, se este se instaura com a propositura da ação, é óbvio que o Estado necessita de órgãos para desenvolverem a necessária atividade, visando a obter a aplicação da sanctio juris ao culpado. Essa atividade é denominada persecutio criminis. E tal direito à persecução penal (investigar o fato infringente da norma e pedir o julgamento da pretensão punitiva) é uma obrigação funcional do Estado para lograr um dos fins essenciais para os quais o próprio Estado para lograr um dos fins essenciais para os quais o próprio Estado foi constituído (segurança e reintegração da ordem jurídica).

Para que o Ministério Público, como órgão do Estado, possa exercer o direito de ação penal, levando ao conhecimento do Juiz a notícia sobre um fato que se reveste de aparência criminosa, apontando-lhe, também, o autor, é curial deva ele ter em mãos os dados indispensáveis. Tais informações preliminares são colhidas, no primeiro momento da persecução, pela Polícia Judiciária, ou Polícia Civil, como diz a Constituição, outro órgão do Estado incumbido de investigar o fato típico e sua respectiva autoria, a fim de possibilitar a propositura da ação penal. Assim, a persecutio criminis apresenta dois momentos distintos: o da investigação e o da ação penal. Esta consiste no pedido de julgamento da pretensão punitiva, enquanto a primeira é atividade preparatória da ação penal, de caráter preliminar e informativo.

Cumpre observar não ser pacífico falar em “lide” no campo processual penal. Se a lide é caracterizada por uma pretensão resistida ou insatisfeita, diz-se não se pode conceber lide no Processo Penal, à semelhança do que ocorre no cível. Sendo o Estado o titular do direito de punir e o do bem-estar social, e sedo este a maior das suas finalidades, quando alguém comete uma infração penal, não é vontade dele infligir a pena ao criminoso, mas, simplesmente, querer que o Juiz aprecie aquele fato e diga se o seu autor merece ou não ser punido. Sustenta-se, então, não haver conflito de interesses, e sim, tão-somente, um único interesse: interesse em apurar se o réu merece ou não receber a reprimenda.

Sem embargo, a doutrina majoritária fala de “lide penal”.


O Estado é titular único e exclusivo do direito de punir. Poderia reprimir os delitos pelos seus órgãos administrativo, ou pelos seus Juízes, como acontecia no processo inquisitivo, mas como ninguém suportaria viver num Estado em que o titular do direito de punir pudesse exercê-lo desenfreadamente, ele autolimitou o seu poder repressivo, preferindo, tal como se dá no cível, o uso das vias judiciárias para julgar o seu interesse na repressão, e, ao mesmo tempo, tutelando o direito de liberdade, de maneira bem significativa, exigindo a paridade de armas, o contraditório e a ampla defesa, não admitindo que o autor da conduta punível se submeta à pena sem reação, criou um verdadeiro processo de partes. Sua pretensão punitiva, nascida no instante mesmo em que se verifica a infração, deve ser resistida. Daí por que ninguém poderá ser processado sem defensor ainda que ausente ou foragido. Daí por que o Estado não pode, em nenhuma hipótese, deixar de oferecer ao acusado a oportunidade de defender-se. Queira ou não, o acusado é obrigado a defender-se. Nada impede que ele reconheça a sua culpa (pleas guilty – submissão) ou abdique dos seus direitos, como na transação. E não basta a defesa material, ou autodefesa. Exige-se, sob pena de nulidade absoluta, a defesa técnica. Não é pelo fato de o Estado desejar um julgamento justo, imparcial, que deixa de existir a lide penal. O interesse do réu em não sofrer restrição na sua liberdade, tenha ou não razão, contrapõe-se ao interesse do Estado, que é o de puni-lo, se culpado for, contudo, embora não haja absoluta identidade entre lide civil e lide penal, não será possível negar a existência de uma lide penal. Pouco importa se ela é artificial ou não. Nem por isso deixa de ser lide. Se a lide civil pode ser solucionada amigavelmente, se no processo civil, quando em jogo interesses disponíveis há sempre a fase de conciliação e no processo penal, de regra, a pretensão deve ser obrigatoriamente resistida, o mínimo que se poderá dizer é que a lide penal é sui generis. Ademais, cumpre observar que em face da Lei n. 11.313, de 28-6-2006, aumentou, consideravelmente, o número de infrações de menor potencial ofensivo e que por isso mesmo, coo no cível, comportam acordos, transações... Sobre o tema v: o excelente trabalho do Prof. José Carlos Teixeira Giorgis. A lide como categoria comum do processo, Porto Alegre, LeJur, 1991, em especial p. 89 e ss.).

quinta-feira, 2 de abril de 2015

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – NOÇÕES PRELIMINARES – FORMAS COMPOSITIVAS DO LITÍGIO - O MONOPÓLIO DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA. O PROCESSO - VARGAS DIGITADOR

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – NOÇÕES PRELIMINARES – FORMAS COMPOSITIVAS DO LITÍGIO -  O MONOPÓLIO DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA. O PROCESSO - VARGAS DIGITADOR

FORMAS COMPOSITIVAS DO LITÍGIO

O emprego da força devia ter sido a forma mais usual para a sua solução. Era a “autodefesa”. Por óbvio não era a solução ideal, porquanto o mais forte levaria vantagem. “La raison du plus fort est toujours la meilleure” – a razão do mais forte é sempre a melhor – como dizia La Fontaine em uma de suas fábulas.

Outro meio para a solução dos litígios era a “autocomposição”. Pela economia de despesas, de gastos, ausência de violência, seria uma forma excelente. Todavia, embora vigente, ainda hoje, para numerosos casos, não pode ser estendida à generalidade dos conflitos, uma vez que, com frequência, “envolve uma capitulação do litigante de menor resistência”. Ademais, e se um dos conflitantes não quisesse a composição? Por óbvio, o conflito não seria solucionado.

O MONOPÓLIO DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA. O PROCESSO

Era preciso, destarte, que a composição, a solução do litígio, se fizesse de maneira pacífica e justa e ficasse a cargo de um terceiro. Era preciso antes de mais nada que se tratasse de um terceiro forte demais, de modo a tornar sua decisão respeitada e obedecida por todos, principalmente pelos litigantes.

Como se percebe, somente o Estado é que podia ser esse terceiro. Então o Estado avocou a tarefa de administrar justiça restaurando a ordem jurídica quando violada. Essa intervenção, entretanto, ocorreu paulatina e gradativamente.

Hoje somente o Estado é que pode dirimir os conflitos de interesses. Daí a regra do art. 345 do CP: é proibido fazer justiça com as próprias mãos, embora a pretensão seja legítima. Só o Estado, e exclusivamente o Estado, é que pode administrá-la. Daí se infere que, detendo ele o monopólio da administração da justiça, surge-lhe o dever de garanti-la.

Desse modo, se apenas o Estado é que pode administrar justiça, solucionando os litígios, e ele o faz por meio do Poder Judiciário, é óbvio que, se alguém sofre uma lesão em seu direito, estando impossibilitado de fazê-lo valer pelo uso da força, pode dirigir-se ao Estado, representado pelo Poder Judiciário, e dele reclamar a prestação jurisdicional (aquilo que ele se prontificou a fazer com exclusividade), isto é, pode dirigir-se ao Estado-Juiz e exigir dele se faça respeitado o seu direito. A esse direito de invocar a garantia jurisdicional chama-se direito de ação. Daí proclamar a Lei Fundamental no seu art. 5º, XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.


Dessa maneira o Estado consegue dirimir os conflitos de interesses? Por meio do processo. Este nada mais é senão forma de composição de litígios. Em sua etimologia, a palavra processo traz a ideia de ir para a frente, de avançar. Então o processo  é uma sucessão de atos com os quais se procura dirimir o conflito de interesses. Nele se desenvolve uma série de atos coordenados visando à composição da lide, e esta se compõe quando o Estado, por meio do Juiz, depois de devidamente instruído com as provas colhidas, depois de sopesar as razões dos litigantes, dita a sua resolução com força obrigatória. Pode-se dizer, também, que processo é aquela atividade que o Juiz, encarregado que é de solucionar os conflitos de interesses de maneira imparcial, secondo verità e secondo giustizia, desenvolve, objetivando dar a cada um o que é seu.

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Ed. Saraiva – NOÇÕES PRELIMINARES - O LITÍGIO - VARGAS DIGITADOR

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Ed. Saraiva – NOÇÕES PRELIMINARES - O LITÍGIO - VARGAS DIGITADOR
Capítulo 1
O LITÍGIO

O homem não pode viver senão em sociedade. As sociedades são organizações de pessoas para a obtenção de fins comuns, em benefício de cada qual. Mas, se não houvesse um poder, nessas sociedades, restringindo as condutas humanas, elas jamais subsistiriam. Cada um faria o que bem quisesse e entendesse, invadindo a esfera de liberdade do outro, e, desse modo, qualquer agrupamento humano seria caótico. Daí o surgimento do Estado, com os seus indefectíveis elementos: povo, território e governo.

Visando à continuidade da vida em sociedade, à defesa das liberdades individuais, em suma, ao bem-estar geral, os homens organizaram-se em Estado. Desde então eles se submeteram às ordens dos governantes, não mais fazendo o que bem queriam e entendiam, mas o que lhes era permitido ou não proibido.

Evidentemente, nos seus primeiros anos, todos os poderes se enfeixavam nas mãos de uma só pessoa, como no regime tribal, ou na família de tipo patriarcal. Depois, com o crescimento do agrupamento humano, por certo houve necessidade de distribuição de funções, e, finalmente, num estágio mais avançado, os órgãos que desempenhavam as funções mais importantes, as funções básicas, atingiram a posição de Poderes.

A transformação foi paulatina.

Para atingir seus fins, as funções básicas do Estado – legislativa, administrativa e jurisdicional – foram entregues a órgãos distintos: Legislativo, Executivo e Judiciário. Três, pois, os órgãos que se altearam a Poderes.

Eles devem ser independentes e harmônicos entre si. Nenhum deles pode sobrepor-se aos demais dentro nos seus círculos de atribuições. Não há nem deve haver hierarquia entre eles. Cada qual atua dentro nas suas respectivas esferas,

A função do Legislativo é legislar, elaborando leis que venham ao encontro dos reclamos da sociedade, sem ferir a Constituição. A do Executivo, administrar, observando os preceitos legais. A do Judiciário, julgar, aplicando as leis aos casos concretos.

Para manter a harmonia no meio social e, enfim, para atingir os seus objetivos, um dos quais se alça à posição de primordial – o bem-estar geral -, o Estado elabora as leis, por meio das quais se estabelecem normas de conduta, disciplinam-se as relações entre os homens e regulam-se as relações derivadas de certos fatos e acontecimentos que surgem na vida em sociedade. Essas normas, gerais e abstratas, dispõem, inclusive, sobre as consequências que podem advir do seu descumprimento. Em face de um conflito de interesses, desde que juridicamente relevante, a norma dispõe não só quanto à relevância de um deles, como também quanto às consequências da sua lesão.

Tais normas são indispensáveis, para que se saiba o que se pode e o que não se pode fazer. O homem precisa, pois, contribuir para que a sociedade não se destrua, não se extermine, porquanto sua destruição implica seu próprio aniquilamento. Se ele precisa da sociedade, obviamente deve pautar seus atos de acordo com as normas de conduta que lhe são traçadas pelo Estado, responsável pelos destinos, conservação, harmonia e bem-estar da sociedade.

Entretanto, não é isso o que ocorre. Os conflitos de interesses, dos mais singelos aos mais complexos, verificam-se com frequência.

Quando “o sujeito de um dos interesses em conflito encontra resistência do sujeito do outro interesse”, fala-se em lide.

Lide, pois, na difundida lição de Carnelutti, é um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida ou insatisfeita.

Ainda segundo o ensinamento do mestre, denomina-se pretensão a exigência de subordinação de um interesse alheio ao interesse próprio. Na lide, há um interesse subordinante e um subordinado. Um que deve prevalecer, por ser protegido pelo Direito, e outro que deve ser subordinado, por lhe faltar a tutela jurídica.

Mas pouca importância teria essa tarefa do Estado em estabelecer normas de conduta aos seus coassociados com a ameaça de uma sanção se, porventura, não conseguisse um modo razoável para solucionar esses conflitos de interesses que surgem a todo instante na vida em sociedade. E os conflitos se resolvem e ficam solucionados fazendo-se prevalecer o interesse que realmente for tutelado pelo direito objetivo.


De nada valeriam essas normas se o legislador não cominasse sanções àqueles que viessem a transgredi-las. Para as infrações mais graves, sanções mais severas; para os ilícitos menos graves, sanções mais brandas. Mas como resolver esses conflitos?

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição – Editora Saraiva – NOTA INTRODUTÓRIA – VARGAS DIGITADOR

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição – Editora Saraiva – NOTA INTRODUTÓRIA – VARGAS DIGITADOR

As dificuldades da vida moderna, agitada, conturbada, a vontade inopinável da mocidade de querer conciliar o estudo com o struggle for life, a falta de tempo para maiores pesquisas, o número de matérias que consome a vida acadêmica e, ao mesmo tempo, a necessidade de conhecer a disciplina de maneira mais rápida, sem se afastar do seu conteúdo, tudo, tudo levou-me, em face dos longos anos de magistérios a procurar escrever um Manual de Processo Penal que pudesse atender não só aos acadêmicos, mas também àqueles que militam na área criminal, inclusive, e melhormente, os concursandos.

Todos os aspectos fundamentais do Direito Processual Penal, como lei processual no tempo e no espaço, fontes do Direito Processual Penal, interpretação, inquérito, ação penal, ação civil, jurisdição e competência, questões incidentais, prova, sujeitos processuais, prisão e liberdade provisória, citação, notificação, intimação, atos jurisdicionais, nomeadamente a sentença, a coisa julgada, todas as formas procedimentais, os recursos e as ações especiais como o habeas corpus e a revisão criminal, tudo foi posto no Manual, segundo o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência.

Afastei-me das discussões, às vezes até acadêmicas ou bizantinas, como as pertinentes à natureza jurídica da relação processual e da representação, às teorias sobre o direito de ação, das críticas sobre a ação penal privada, sobre ser ou não ser o impeachement verdadeira ação penal, das várias modalidades de indícios e, por último, de temas de Direito Penal que podem ser encontrados em sede própria.

Restringi-me ao essencial, esperando que eventuais interessados em temas aqui não estudados ou procurem resposta nos meus outros trabalhos ou em obras que de há muito integram o nosso acervo de doutrina processual penal.

No Manual, à proporção que são analisadas as matérias objeto dos vários títulos do Código de Processo Penal, há dezenas de indagações (rememorando), para que a própria pessoa que empreendeu a leitura responda. E, se por acaso não o fizer, de certo, instintivamente, monologando, dirá: “acabei de ler esse assunto”, e, assim, será levada a buscar a resposta no corpo do texto. É um modo de memorizar o estudo empreendido. É o meu desejo. Se êxito houver, todos seremos recompensados.

O Autor

Provavelmente, tão logo acabe de digitar este compêndio com o Código Penal de 1940, deverei ser obrigado a realizar outra digitação, haja vista estarmos às portas de nova edição com o Novo Código Penal Brasileiro, que estará valendo a partir do mês de julho de 2015. Acontece, que vejo meus colegas acadêmicos tão sem norte em sua inicial caminhada e estudando agora o que daqui a alguns dias mudará, que, creio, firmemente, se não tiverem este início, muito provavelmente ficarão completamente desconsertados com as novidades, sem terem sequer ideia de por onde começar. (Grifo de Vargas Digitador).

domingo, 29 de março de 2015

DIREITO ECONÔMICO: DIREITO ANTITRUSTE – CAPÍTULO 11 - OBRA DE EUGÊNIO ROSA DE ARAÚJO E APLICADA PELO PROFESSOR FELIPE NOGUEIRA NO CURSO DE DIREITO 8º PERÍODO FAMESC - BJI – 1º SEMESTRE / 2015 - VARGAS DIGITADOR

DIREITO ECONÔMICO: DIREITO ANTITRUSTE – OBRA DE EUGÊNIO ROSA DE ARAÚJO E APLICADA PELO PROFESSOR FELIPE NOGUEIRA NO CURSO DE DIREITO 8º PERÍODO FAMESC - BJI – 1º SEMESTRE / 2015 - VARGAS DIGITADOR

CAPÍTULO 11

No Direito Constitucional brasileiro o art. 170 da Constituição Federal estabelece  como princípios a livre concorrência, a propriedade privada, observada sua função social, a proteção do consumidor e do meio ambiente, ao lado da repressão ao abuso do poder econômico praticado com o objetivo de dominação do mercado, a eliminação da concorrência ou do aumento arbitrário dos lucros, conforme o texto do art. 173, § 4º da CRFB/88.


Disciplinando o tema do Direito Antitruste (LAT) visando à proteção da própria estruturação do mercado e ao seu livre funcionamento, resguardando-o de práticas lesivas aos consumidores, trabalhadores e empresários, o que resulta claro do art. 1º da LAT, onde ficou consignado que a lei “dispõe sobre a repressão a infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico, ressaltando o parágrafo único que a estrutura de mercado, por (art. 219 da CRFB/88) se constituir em direito difuso (transindividual e indisponível) de toda a coletividade, sendo esta a titular do bem jurídico tutelado pela lei antitruste (LAT).”


Importante ressaltar, desde já, que será da conjugação dos arts. 20 e 21 da LAT que exsurgirá a tipificação legal das práticas agressivas à ordem econômica, à concorrência e ao livre mercado, submetendo-as às punições previstas nos arts. 23 e 24 do mesmo diploma.


No que se refere à territorialidade prevista no art. 2º da LAT, optou a legislação antitruste pelo critério da territorialidade objetiva, em vigor também no Direito comunitário, onde o âmbito de validade da lei relaciona-se com o mercado em que se projetaram os efeitos da prática empresarial lesiva à Constituição Econômica.


Se a ação ou o resultado tiver se verificado mesmo em parte, no Brasil, aplica-se a LAT, de forma que se o ilícito afeta o mercado brasileiro, incidirá o comando pertinente e eventuais sanções.


Constituído em forma de autarquia, o CADE, segundo o art. 3º da LAT, constitui-se em pessoa jurídica de direito público, com patrimônio e receita próprios, voltado para a execução de atividades típicas de administração pública que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada.


Embora no REsp 590960, da relatoria do Min. Fux, o Superior Tribunal de Justiça tenha decidido que por serem complexas e técnicas as decisões do CADE são similares às decisões judiciais, discordamos destas afirmação, posto que o texto legal evidencia uma impropriedade, tendo em vista que nosso ordenamento constitucional adotou o sistema de jurisdição única insusceptíveis de revisão com a estabilização criada pela coisa julgada, disso decorrendo que as decisões da autarquia produzem sim, preclusão administrativa, mas não coisa julgada.


Tal conclusão não se altera quando a confrontamos com o art. 50 da LAT que afirma que as decisões do CADE não podem ser revistas ou avocadas administrativamente, bem como do comando do art. 60 que dá as suas decisões força de título executivo extrajudicial, ou ainda, com a letra do art. 65, que impede que ações contra suas decisões suspendam a execução do referido título.


Dentre as competências do CADE previstas no art. 7º da LAT, ressalta em importância a do inciso II, onde incumbe à autarquia decidir sobre a existência de infração contra a ordem econômica, prevista nos arts. 20 e 21, devendo atuar de forma vinculada; não pode o CADE abster-se de verificar a ocorrência do ilícito, o mesmo não ocorrendo no que tange à aplicação das penalidades, onde será possível a atuação discricionária, em razão dos critérios de individualização da pena previstos no art. 27 e no § 1º do art. 54, segundo os quais é facultado ao CADE a aprovação de certos atos de concentração que possam limitar ou prejudicar a livre concorrência, bem como resultar na dominação de mercado relevante de bens e serviços, desde que preencham os requisitos dos incisos I a IV, a saber: aumento da produtividade, melhora da qualidade de bens ou serviços e propiciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico.


Logo, conclui-se que a verificação e análise da ocorrência de inflação contra a ordem econômica são de natureza vinculada, ao passo que a aplicação das penalidades previstas em lei tem cunho discricionário.


Das infrações à ordem econômica tratadas nos arts. 15 a 19, ressalta, em primeiro plano, a figura do sujeito ativo como sendo o empresário, hoje tipificado no novo Código Civil, como sendo “quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens e serviços” (art. 966), sendo certo que o seu espectro de incidência é amplo, abrangendo, por exemplo, empresários individuais, consórcios, microempresas, inclusive pessoas jurídicas de direito público interno que, no exercício de atividades econômicas em sentido estrito (art. 173 da CRFB/88), venham a adotar atitude que colida com a LAT.


A solidariedade dos dirigentes, administradores e sociedades filiadas a grupos, prevista nos arts. 16 e 17 da LAT, implica na responsabilização, não só da empresa, mas também de seus dirigentes e administradores, criando uma dupla sujeição passiva, afora, evidentemente, atividades exercidas por empresário individual. Há uma pluralidade de relações subjetivas e uma unidade objetiva da prestação, vez que cada dirigente ou administrador é obrigado por toda a obrigação e submetido pela responsabilidade. Note-se que no caso das filiadas a regra do direito societário não é a solidariedade, o que para efeito de tutela das estruturas do livre mercado a lei antitruste é lei especial em relação, por exemplo, à Lei das S.A. (arts. 165 a 277).


No art. 18 adotou-se teoria da desconsideração da personalidade jurídica, já prevista no art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, bem como no art. 50 do novo Código Civil, segundo a qual supera-se a autonomia patrimonial existente entre a pessoa jurídica e o sócio ou administrador, quando estes violarem dita autonomia para a realização de fraudes ou abusos de direito, ficando o responsável pelo mau uso da personalidade jurídica da entidade diretamente responsável pela obrigação.


A pessoa jurídica não deixa de existir, os seus atos praticados regularmente continuam eficazes e válidos, apenas ocorrerá uma ineficácia temporária dos seus atos constitutivos. No caso da lei antitruste a teoria da desconsideração poderá ser aplicada tanto na fase de averiguação da existência de infração contra a ordem econômica, quanto por ocasião da aplicação de penalidades.


A repressão das infrações à ordem econômica, não exclui a punição do empresário por ilícitos penais e civil, derivados do mesmo fato gerador previsto na lei antitruste (art. 19), i.e, a sua eventual absolvição criminal não implicará, por exemplo, no pleito civil do lesado, salvo, evidentemente, se restar configurada a inexistência do fato ou autoria. Note-se que o art. 935 do novo Código Civil dispõe que “a responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.”


Quer a lei antitruste, para a caracterização de quaisquer condutas infracionais do art. 21, a indispensável conjugação com o art. 20 e, para tanto, deve ser feita breve análise dos conceitos de livre iniciativa, livre concorrência, mercado relevante e posição dominante.


A livre iniciativa, prevista no art. 170 caput da Constituição Federal como princípio da ordem econômica, implica na possibilidade, ampla em nosso ordenamento, do exercício de qualquer atividade econômica lícita (art. 966 do CCB/02) ou que seja permitida por lei ou autorizada por autoridade competente.


A livre concorrência, prevista no art. 170, IV, da Constituição Federal é desdobramento do princípio da livre iniciativa, complementando-o com sua ponderação e, para tanto, o legislador constituinte no § 4º do art. 174 dispôs que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. A Constituição não condena o exercício do poder econômico; apenas seu abuso suscita a intervenção estatal, coibindo excessos tais como os cartéis e monopólios de rato que venham a turbar o livre funcionamento das estruturas de mercado.


Identifica-se um mercado relevante (art. 20, II, da Lei nº. 8.884/94) levando-se em conta sua configuração ligada a aspectos geográficos, às peculiaridades dos bens e serviços e da análise de inúmeras variantes, buscadas caso a caso. Para que se revele o mercado relevante é necessário identificar o espaço geográfico em que se desenvolvem as relações de concorrência em que atua o agente econômico, bem como as especificidades do bem ou serviço em si, hábitos do seu consumidor, qualidade/necessidade do bem ou serviço, custos, barreiras econômicas que dificultem ou impeçam a produção ou prestação por outros agentes, incentivos creditícios ou fiscais concedidos e a fungibilidade do bem ou serviço, que se traduz na possibilidade de troca do consumo por outro tipo ou qualidade (elasticidade).


Para melhor compreensão da ideia de mercado relevante e seus contornos, muito elucidativo é o exemplo das escovas e pastas de dente.


Pode-se analisar, no Brasil, os mercados destes produtos na região Nordeste ou Sudeste (maior renda x menor renda); verificar a possibilidade de substituição dos bens por outros similares (pasta de dente e escovas não possuem substitutos no mercado); analisar os hábitos do consumidor (Nordeste/preço x Sudeste/qualidade) e, por fim, é possível verificar a existência de barreiras de entrada no mercado, i.e, a dificuldade de produção em pequena escala destes produtos.


Verifica-se que a conquista de mercado decorrente de processo natural fundado na maior eficiência do agente econômico em relação aos seus concorrentes afasta a ilicitude da conduta tipificada no inciso II do art. 20 da Lei n. 8.884/94, nos termos do § 1º do art. 10. Nesse caso, o poder no mercado é incapaz de tipificar a dominação ilícita, em razão dos resultados obtidos pela concorrência natural da maior eficiência por parte do agente econômico.


Note-se que eficiência não se confunde com eficácia. Eficiência significa a aptidão para obter o máximo ou melhor resultado ou rendimento com a menor perda ou o menor dispêndio de esforços e liga-se à noção de rendimento, produtividade e adequação à função, ao passo que a eficácia é aptidão para produzir efeitos.


Identifica-se a posição dominante (art. 20, § 2º, LAT) quando do controle de “parcela substancial do mercado relevante” confere ao seu detentor quantidade de poder econômico tal que passa a exercer influência determinante sobre a concorrência, principalmente no que se refere à formação de preços, seja pelo volume da oferta, seja pela procura, proporcionando elevado grau de independência em face dos demais agentes econômicos de um mercado relevante. A posição dominante só é punida quando haja prejuízo à livre concorrência – o percentual de 20% indica mera presunção relativa, admitindo prova em contrário (de não ter sido violada a livre concorrência e colocado o mercado em risco).


Nem toda restrição à livre concorrência significa domínio de mercado ou abuso de posição dominante. Sem que haja restrição à livre concorrência, as noções isoladas de mercado relevante e posição dominante não são determinantes para o direito antitruste. Dominação de mercados ou abuso de posição dominante se entrosam, na medida em que somente estão configurados enquanto afetarem a livre concorrência.


Dessa forma, para a configuração das infrações previstas nos arts. 20 e 21 da LAT (CRFB/88, art. 173, § 4º), torna-se indispensável a conjugação dos dois dispositivos. A conduta empresarial (art. 21) somente é infratora se o seu efeito, efetivo ou potencial, no mercado estiver configurado no art. 20. Apenas se a conduta produzir efeitos para além das relações econômicas do exclusivo interesse dos agentes diretamente envolvidos é que a própria estrutura do mercado estará em risco.


A responsabilidade administrativa, assim, decorre de avaliação objetiva dos efeitos da conduta empresarial, não interessando se o empresário pretendeu ou não os resultados, agindo culposamente com imprudência, negligência ou imperícia.


Das penas previstas nos arts. 23 a 27 da LAT, importa destacar que as mesmas podem deixar de ser aplicadas se a conduta eventualmente tida como infracional não redundar em malefício à política econômica traçada pelo Poder Executivo, no que se refere à promoção do desenvolvimento regional, à empregabilidade, à robustez da política fiscal etc.


Nesse sentido, a aplicação das penalidades por parte do CADE submete-se ao critério da discricionariedade, embora vinculado à aferição da ocorrência da infração contra a ordem econômica.


O art. 28 da LAT, que tratava da prescrição das infrações contra a ordem econômica, foi revogado pela Lei n. 9.873/99, dispondo em seu art. 1º que “prescreve em cinco anos a ação punitiva da administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor, contados da data do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado”. Dispôs ainda o  § 1º que “incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada”.


Nos termos do § 2º do art. 1º da referida Lei n. 9.873/99, interrompe-se a prescrição pela citação por qualquer ato inequívoco que importe apuração do fato, e nos termos do § 3º suspende-se a prescrição durante a vigência dos compromissos de cessação ou de desempenho, previstos nos arts. 53 e 58 da LAT.


A definitividade administrativa das decisões do CADE está previsto no art. 50 da LAT, o que significa que suas decisões não podem ser revistas ou avocadas tanto por Ministro de Estado quanto pelo Presidente da República, devendo qualquer tipo de irresignação ser direcionado ao Poder Judiciário.


Importante instrumento da lei antitruste é o compromisso de cessação de prática sob investigação, cuja anuência por parte do empresário investigado não importa confissão quanto à matéria de fato, nem reconhecimento da ilicitude da conduta analisada, a teor do art. 53 da LAT. A composição com o empresário realça a atuação preventiva do Estado e visa adequar o comportamento do agente econômico aos padrões concorrenciais previstos na Constituição federal e na norma antitruste.


De arremate, é preciso destacar que o compromisso de cessação constitui título executivo extrajudicial, nos termos do § 4º do art. 53 da LAT, e não se aplica às hipóteses dos incisos I, II e VIII do art. 21 do mesmo diploma.


É preciso relembrar, nesse passo, que nosso ordenamento constitucional adotou como princípio da ordem econômica a livre iniciativa e a livre concorrência (art. 170, caput, e inciso IV), com perfil capitalista e liberal, onde há a apropriação privada dos meios de produção, isto é, as indústrias e os equipamentos que geram a riqueza nacional não são propriedade exclusiva do Estado.


Assim, retomando alguns conceitos do Capítulo I, é necessário ressaltar a noção de concorrência perfeita como modelo abstrato (inexistente na realidade), onde teríamos um mercado, na vertente dos produtores:


          - incapaz de, por si só, baixar os preços por não poder fornecer uma maior quantidade que os concorrentes;

          - onde todos os compradores e vendedores dispusessem do completo conhecimento dos preços do mercado local e de outras praças;

          - a impossibilidade de o vendedor crescer a ponto de dominar o mercado;

          - a inexistência de barreiras de entrada no mercado, permitindo a livre movimentação dos fatores da produção (terra, trabalho e capital) e dos empresários.


No viés da demanda, o modelo de concorrência perfeita traduz a existência de muitos compradores, incapazes de, com o volume de suas aquisições, forçar a queda do preço dos produtos, a informação completa sobre preços, locais de venda e ausência de problemas com transporte e homogeneidade do produto (indiferença em comprar de um ou de outro vendedor).


Instituto de grande importância no direito concorrencial é a figura do Truste, que se identifica na organização ou estrutura econômico-financeira empresarial na qual várias empresas, já detentoras da maior parte do mercado, fundem-se ou combinam-se para assegurar esse controle, estabelecendo preços elevados, controlando a produção e venda de certos produtos e buscando a monopolização do mercado. Pode-se formar através de fusão ou incorporação de uma empresa em outra, holdings ou qualquer agrupamento societário que possa limitar ou prejudicar, de qualquer forma, a livre concorrência e submetido a uma direção única.


O oligopólio, por outro lado, é um tipo de estrutura em que poucas pessoas detêm o controle da maior parcela do mercado (carros, cigarros, lâmpadas, cartões de créditos etc.).


Veja-se, ainda, a nefasta figura do Cartel, que se caracteriza por meio de grupos de empresas independentes que formalizam um acordo para atuação coordenada, com vista a interesses comuns. Seus objetivos mais comuns são: controle do nível de produção e das condições de venda; fixação do controle de preços, controle das fontes de matéria-prima; fixação de margens de lucros e divisão de territórios de operação; divisão de mercados. Assim: preço único, estratégias comuns, vantagens ao monopólio, organização informal ou clandestina, acordo secreto de “cavalheiros” e delimitação de mercados (deve ser destacada a distinção entre cartel interno {entre agentes situados dentro do país} e externo {entre agentes fora do país)}.


O monopólio, mais uma patologia concorrencial, se traduz na forma de organização de mercado em que poucas empresas, em regra de grande porte, são fornecedoras de determinada matéria-prima, produto ou serviço, ao passo que o monopsônio significa a estrutura de mercado em que existe um comprador de uma mercadoria, em geral matéria-prima ou produto, onde os preços não são determinados pelos vendedores, mas pelo único comprador.


Dadas essas concisas explicações preliminares, já explanadas no Capítulo I, passa-se à breve análise das formas de controle de atos restritivos ou prejudiciais à concorrência, do art. 54 da LAT, que dispõe que os atos, sob qualquer forma manifestados  que possam limitar, ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, deverão ser submetidos à apreciação do CADE.


O CADE poderá autorizar os referidos atos desde que tenham por objetivo, cumulada ou alternativamente, aumentar a produtividade, melhorar a qualidade de bens ou serviços, ou, ainda, propiciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico (inciso I do art. 54 da Lei n. 8.884/94).


Do mesmo modo, podem ser autorizados os atos em que os benefícios decorrentes sejam distribuídos equitativamente entre seus participantes, de um lado, e os consumidores ou usuários finais de outro (inciso II), os que não impliquem eliminação de concorrência da parte substancial de mercado relevante de bens e serviços (inciso III), e nos quais sejam observados os limites estritamente necessários para atingir os objetivos visados (inciso IV).


Poderão ser, ainda, considerados legítimos os atos acima indicados quando necessários por motivos preponderantes da economia nacional, do bem comum, e não impliquem em prejuízo ao consumidor ou usuário final, desde que atenda a, pelo menos, 3 (três) das condições previstas nos incisos I a IV do § 1º do art. 54.


Logo, os ajustes, acordos ou convenções entre empresas de qualquer natureza que produzam efeitos concorrenciais têm validade desde sua celebração, ficando sua eficácia sob condição resolutiva tácita, visto que o controle pelo CADE é a posteriori.


Ocorrem aqui as denominadas regras da razão, as isenções e as autorizações que se constituem em técnicas destinadas a viabilizar a realização de uma determinada prática, ainda que restritiva da concorrência, afastando-se as barreiras legais a sua concretização.


Na regra da razão, somente são consideradas ilegais as práticas que restrinjam a concorrência de forma não razoável ao livre comércio (EUA).


No modelo europeu de isenções, a restrição pode não ser aplicada a determinada atividade caso acarrete a melhoria da produção ou distribuição de bens ou ainda o progresso técnico ou econômico, caracterizando um controle a posteriori.


Por fim, nas autorizações, também de controle posterior, as práticas produzem efeitos plenos até serem formalmente proibidas, conforme o º 4º do art. 54 da LAT.


Estão incluídos no comando do art. 54 da Lei n. 8.884/94 os atos que, de qualquer forma, resultem em participação de empresa ou grupo de empresas resultante em 20% (vinte por cento) de um mercado relevante, seja através de fusão ou incorporação de empresas, constituição de sociedade para exercer controle de empresas de qualquer forma de agrupamento societário, a teor do seu § 3º.


Os atos de que trata o art. 54 deverão ser apresentados para exame, previamente ou no prazo máximo de 15 (quinze) dias úteis de sua realização (§ 4º), sob pena de ineficácia retroativa a esta data (§ 7º), sendo certo que, se não apreciados no prazo de 60 (sessenta) dias, previsto no § 6º, serão automaticamente aprovados (§ 7º, parte final).


A rejeição por parte do CADE (§ 8º) poderá gerar a determinação, por parte da autarquia, de sua desconstituição, total ou parcial, através de distrato, cisão de sociedade, venda de ativos, cessação parcial de atividades ou qualquer ato ou providência que elimine os efeitos nocivos à ordem econômica, independentemente da responsabilidade civil por perdas e danos eventualmente causados a terceiros.



A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) deve comunicar ao CADE as mudanças de controle acionário de companhias abertas e os registros de fusão para análise (§ 10 do art. 54).

sábado, 28 de março de 2015

DIREITO ECONÔMICO: MERCOSUL – OBRA DE EUGÊNIO ROSA DE ARAÚJO E APLICADA PELO PROFESSOR FELIPE NOGUEIRA NO CURSO DE DIREITO 8º PERÍODO FAMESC - BJI – 1º SEMESTRE / 2015 - VARGAS DIGITADOR

DIREITO ECONÔMICO: MERCOSUL – OBRA DE EUGÊNIO ROSA DE ARAÚJO E APLICADA PELO PROFESSOR FELIPE NOGUEIRA NO CURSO DE DIREITO 8º PERÍODO FAMESC - BJI – 1º SEMESTRE / 2015 - VARGAS DIGITADOR

CAPÍTULO 10

O fundamento constitucional do Mercosul é o parágrafo único do art. 4º da Constituição Federal, segundo o qual “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.

Instrumentalizado pelo Tratado de Assunção (1991), 0 Mercado Comum do Sul foi instituído entre a Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai visando basicamente:

·       A livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países, através, entre outros, da eliminação dos direitos alfandegários e restrições não tarifárias à circulação de mercadorias e de qualquer outra medida de efeito equivalente;

·       O estabelecimento de uma tarifa externa comum e a adoção de uma política comercial comum em relação a terceiros Estados ou agrupamentos de Estados e a coordenação de posições em foros econômico-comerciais regionais e internacionais;


·       A coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais entre os Estados-Partes - de comércio exterior, agrícola, industrial, fiscal, monetária, cambial e de capitais, de outras que se acordem -, a fim de assegurar condições adequadas de concorrência entre os Estados-Partes, e

·       O compromisso dos Estados-Partes de harmonizar suas legislações, nas áreas pertinentes, para lograr o fortalecimento do processo de integração.

Em 1994 firmou-se o Protocolo de Ouro Preto em aditamento do Tratado de Assunção, desenhando a estrutura da Pessoa Jurídica de Direito Público Externo, sendo que, em razão do perfil conciso da presente obra indicaremos aqui, como órgãos mais importantes do Mercosul, o Conselho do Mercado Comum e o Grupo Mercado Comum.

O Conselho do Mercado Comum (CMC) é o órgão superior do Mercosul (art. 3º do Protocolo de Ouro Preto) ao qual incumbe a condução política do processo de integração e a tomada de decisões para assegurar o cumprimento dos objetivos estabelecidos pelo tratado e para lograr a constituição final do mercado comum.

Suas funções, segundo o art. 8º, são:

                    I – velar pelo cumprimento do Tratado de Assunção, de seus Protocolos e dos acordos firmados em seu âmbito;

                    II – formular políticas e promover as ações necessárias à conformação do mercado comum;

                    III – exercer a titularidade da personalidade jurídica do Mercosul;

                    IV – negociar e firmar acordos em nome do Mercosul com terceiros países, grupos de países e organizações internacionais. Estas funções podem ser delegadas ao Grupo Mercado Comum por mandato expresso, nas condições estipuladas no inciso VII do art. 14;

                    V – manifestar-se sobre as propostas que lhe sejam elevadas pelo Grupo Mercado Comum;

                    VI – criar reuniões de ministros e pronunciar-se sobre os acordos que lhe sejam remetidos pelas mesmas;                                                                                                                                                                                                                                                                                
                    VII – criar órgãos que estime pertinentes, assim como modificá-los ou extingui-los;

             VIII – esclarecer quando estime necessário, o conteúdo e o alcance de suas decisões;

                    IX – designar o Diretor da Secretaria Administrativa do Mercosul;

                    X – adotar decisões em matéria financeira e orçamentária;

                    XI – homologar o Regimento Interno do Grupo Mercado Comum.

Em seguida, temos o Grupo Mercado Comum, órgão executivo do Mercosul (art. 8º, protocolo) que tem, segundo o art. 14, como atribuições principais:

                    I – velar, nos limites de suas competências, pelo cumprimento do Tratado de Assunção, de seus Protocolos e dos Acordos firmados em âmbito;

                    II – propor projetos de decisão ao Conselho do Mercado Comum;

                    III – tomar as medidas necessárias ao cumprimento das decisões adotadas pelo Conselho do Mercado Comum;

                    IV – fixar programas de trabalho que assegurem avanços para o estabelecimento do mercado comum;
                    V – criar, modificar ou extinguir órgãos tais como subgrupos de trabalho e reuniões especializadas, para o cumprimento de seus objetivos;

                    VI – manifestar-se sobre as propostas ou recomendações que lhe forem submetidas pelos demais órgãos do Mercosul no âmbito de suas competências;

                    VII – negociar com a participação de representantes de todos os Estados-Partes, por delegação expressa do Conselho do Mercado Comum e dentro dos limites estabelecidos em mandatos específicos concedidos para este fim, acordos em nome do Mercosul com terceiros países, grupos de países e organismos internacionais. O Grupo Mercado Comum, poderá delegar os referidos poderes à Comissão de Comércio do Mercosul;

                    VIII – aprovar o orçamento e a prestação de contas anual apresentados pela Secretaria Administrativa do Mercosul;

                    IX – adotar resoluções em matéria financeira e orçamentária, com base nas orientações emanadas do Conselho do Mercado Comum;

                    X – submeter ao Conselho do Mercado Comum seu Regimento Interno;

                    XI – organizar as reuniões do Conselho do Mercado Comum e preparar os relatórios e estudos que este lhe solicitar;

                    XII – eleger o Diretor de Secretaria Administrativa do Mercosul;

                    XIII – supervisionar as atividades da Secretaria Administrativa do Mercosul;

                    XIV – homologar os Regimentos Internos da Comissão de Comércio e do Foro Consultivo Econômico-Social;

É necessário visualizar, no âmbito da globalização, a institucionalização de uma sociedade internacional, por meio do enquadramento dos sujeitos internacionais a determinadas políticas econômicas preordenadas à eliminação de conflitos, busca da paz, redução das desigualdades regionais e promoção da solidariedade.

O esfacelamento dos limites territoriais e a livre circulação de capitais permitiram o estreitamento do comércio exterior, favorecendo o surgimento de blocos econômicos de molde a enfrentar a competição no mercado global e, no caso do Mercosul, a tentativa de formação de uma força comercial formada pr países do cone sul.

No correr do século XX, principalmente no pós-guerra, várias medidas foram sendo adotadas visando à cooperação entre diversos Estados nacionais, por meio da redução de obstáculos ao mercado internacional, com destaque para o denominado GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) de 1948, com a finalidade de expansão do comércio exterior, redução de direitos alfandegários, barreiras não tarifárias e a aplicação da denominada cláusula da nação mais favorecida que estabelece que um benefício outorgado por um Estado a uma das partes contratantes é automaticamente estendido às demais. Atualmente as relações comerciais multilaterais são coordenadas pela Organização Mundial do Comércio (OMC-1994).

A integração entre países pode se dar em vários níveis de interação, sendo os mais importantes a Zona de Livre Comércio, a União Aduaneira, o Mercado Comum e por fim a União Econômica.

Na Zona de Livre Comércio teremos a eliminação ou redução de tarifas aduaneiras e restrições ao intercâmbio, mesmo que nem todos os produtos atinjam, de imediato, o objetivo de implementar a alíquota zero entre os membros do bloco.

Seguindo na escala de integração teremos a União Aduaneira que redunda na fixação de uma tarifa externa comum (TEC), presumindo o livre comércio já em andamento e a livre circulação dos fatores da produção.

O Mercado comum, estágio seguinte de integração, revela uma União Aduaneira ainda mais livre de circulação de bens, serviços, pessoas e capitais, além de regras comuns de concorrência.

Por fim, teremos a União Econômica, que pressupõe o mercado comum, com sistema monetário único, política externa de defesa e fiscal comuns com a constituição de uma autoridade supranacional.

No que se refere à solução de controvérsias entre os Estados-Partes, o Anexo III do Tratado de Assunção dispõe que:

“As Controvérsias que possam surgir entre os Estados-Partes como consequência da aplicação do Tratado serão resolvidas mediante negociações diretas. No caso de não lograrem uma solução, os Estados-Partes submeterão a controvérsia à consideração do Grupo Mercado Comum que, após avaliar a situação, formulará no lapso de 60 (sessenta) dias as recomendações pertinentes às Partes para a solução do diferendo. Para tal fim, o Grupo Mercado Comum poderá estabelecer ou convocar painéis de especialistas ou grupos de peritos com o objetivo de contar com assessoramento técnico. Se no âmbito do Grupo Mercado Comum tampouco for alcançada uma solução, a controvérsia será elevada ao Conselho do Mercado Comum para que este adote as recomendações pertinentes.”


Como se vê, o Mercosul ainda é um projeto a ser realizado, principalmente em razão de nosso processo constitucional de internacionalização (o original traz o termo internalização – modificado por nossa conta e risco para internacionalização, por encontrarmos maior coerência com a ratificação dos tratados entre Estados – grifo de Vargas Digitador) de tratados que demanda longo itinerário que passa pelo Poder Executivo (arts. 84, incisos VII e VIII, da CRFB/88) e para o Poder Legislativo (art. 49, inciso I, da CRFB/88) para sua ratificação, tornando a realidade de nossa integração latino-americana ainda mais difícil.