quarta-feira, 11 de junho de 2014

356-a. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL COM BASE EM PRESCRIÇÃO - DIREITO PROCESSUAL CIVIL III – 1º BIMESTRE – VARGAS DIGITADOR

DIREITO PROCESSUAL CIVIL III – 1º BIMESTRE – VARGAS DIGITADOR – Matéria para prova N2 – que vai de Fases de Postulação até à ... indispensável prova induvidosa. Professor Fábio Baptista – FAMESC – 6º período
TEORIA GERAL DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL E PROCESSO DE CONHECIMENTO
HUMBERTO THEODORO JUNIOR
Parte VI
         PROCEDIMENTO ORDINÁRIO
            CAPÍTULO XVI
            FASE DE POSTULAÇÃO
           § 54. PETIÇÃO INICIAL

Sumário: 353. Petição inicial. 354. Requisitos da petição inicial. 355. Despacho da petição inicial. 356. Casos de indeferimento da petição inicial. 356-a. Indeferimento da petição inicial com base em prescrição. 357. Extensão do indeferimento. 357-a. Julgamento imediato do pedido na apreciação da petição inicial. 357-a-1. Intimação da sentença prima facie. 357-b. Recurso contra o julgamento prima facie. 357-c. Preservação do contraditório e ampla defesa. 358. Efeitos do despacho da petição inicial.

Continuação

356-a. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL COM BASE EM PRESCRIÇÃO

               O propósito da reforma do texto do § 5º do art. 219, segundo se vê da Exposição de Motivos do respectivo Projeto, subscrita pelo Ministro da Justiça, foi permitir ao juiz “decretar de ofício, sem necessidade de provocação das partes, a prescrição, em qualquer caso”. Anteriormente, tal permissão se restringia às hipóteses de “direitos não patrimoniais”. A inovação consistiu na possibilidade de a prescrição ser reconhecida de ofício, pelo juiz, independentemente da natureza dos direitos em litígio e da capacidade das partes.
               Mais uma vez o propósito de celeridade na resolução do litígio empolga o legislador. Desta vez, porém, a pressa de julgar a causa no nascedouro gerará mais problemas do que benefícios para a prestação jurisdicional.
               A rejeição liminar da demanda, por meio da decretação ex officio pelo juiz, esbarra em grandes e insuperáveis obstáculos oriundos da natureza do instituto, que é intrinsecamente de direito material, e não processual.
               Quando o texto primitivo do art. 219, § 5º, permitia ao juiz declarar a prescrição dos “direitos não patrimoniais” sem depender de provocação da parte, o fazia porque na verdade tais direitos não se sujeitavam a prescrição, e sim a decadência. A distinção feita pelo Código Processual devia-se a uma notória deficiência do Código Civil de 1916 que não distinguia entre prescrição e decadência, e a todo prazo extintivo de direito ou ação aplicava o rótulo de prescrição.
               Como era impossível, na teoria do direito material, ignorar a diferença entre a prescrição e a caducidade, o Código de Processo Civil teve de recorrer à expressão “prescrição de direitos não patrimoniais” para apartá-los do regime dos “direitos patrimoniais”, onde efetivamente se passa o fenômeno típico da prescrição.
A diferença básica entre a prescrição e a decadência está em que aquela afeta e extingue a pretensão (actio) enquanto esta põe fim ao próprio direito subjetivo. Como a prescrição não elimina o direito, de onde provém a pretensão, o devedor assume, em razão do decurso do tempo legal e da inércia do credor, apenas uma exceção (defesa), de que é livre para usar ou não, caso queira se furtar ao cumprimento da prestação tardiamente reclamada pelo credor.
O direito material não prevê a extinção do direito do credor em virtude do transcurso do prazo prescricional. Segundo o art. 189 do Código Civil, da violação do direito pelo devedor (inadimplemento), nasce a pretensão (poder de exigir a prestação sonegada pelo devedor), a qual irá extinguir ao final do prazo fixado na lei.
Na estrutura do direito material, só ao devedor cabe usar, ou não,  a exceção de prescrição. Trata-se de faculdade, ou de direito disponível, renunciável expressa ou tacitamente. Basta o não uso da exceção para tê-la como renunciada por seu respectivo titular (Código Civil, art. 191).
Já a decadência, o juiz tem não apenas a possibilidade, mas o dever de pronunciá-la, com ou sem provocação da parte, porque, por seu intermédio, extingue-se o próprio direito subjetivo material (Código Civil, art. 210). Ao contrário da prescrição de que o devedor tem livre poder de disposição, é irrenunciável a decadência (Código Civil, art. 209).
Há, na ordem lógica e jurídica, uma verdadeira inviabilidade da decretação da prescrição fora da exceção manejada pelo devedor. Ao contrário da decadência, que é fatal e se atinge inexoravelmente pelo simples decurso do prazo da lei, sem sujeitar-se a suspensões e interrupções, a prescrição é naturalmente imprecisa, não havendo como detectá-la prima facie, tantos são os fatores que interferem em seu fluxo temporal, impedindo-o, suspendendo-o ou interrompendo-o, com muita frequência, e com feições de variados matizes (O Código Civil arrola às dezenas as causas de interrupção, impedimento e suspensão dos prazos  prescricionais – arts. 197 a 204).
Nenhum juiz, portanto, tem condições de, pela simples leitura da inicial, reconhecer ou rejeitar uma prescrição. Não se trata de uma questão apenas de direito, como é a decadência, que se afere por meio de um simples cálculo do tempo ocorrido após o nascimento do direito potestativo de duração predeterminada. A prescrição não opera ipso iure; envolve necessariamente fatos verificáveis no exterior da relação jurídica, cuja presença ou ausência são decisivas para a configuração da causa extintiva da pretensão do credor insatisfeito. Sem dúvida, as questões de fato e de direito se entrelaçam profundamente, de sorte que não se pode tratar a prescrição como uma simples questão de direito que o juiz possa ex officio, levantar e resolver liminarmente, sem o contraditório entre os litigantes. A prescrição envolve, sobretudo, questões de fato, que, por versar sobre eventos não conhecidos do juiz, o inibem de pronunciamentos prematuros e alheios às alegações e conveniências dos titulares dos interesses em confronto.
Se é difícil para o juiz decretar ex officio e liminarmente a prescrição objetiva do Código Civil (art. 189 e 205 e a maioria dos incisos do art. 206), impossível será fazê-lo nos casos de prescrição subjetiva, como a do art. 27 do Código de Defesa do Consumidor e alguns incisos do art. 206 do Código Civil. É que nestes casos, além da interferência dos impedimentos, interrupções e suspensões, há a imprecisão do termo inicial da prescrição que se relaciona com um dado pessoal e subjetivo: a data do “conhecimento do dano e de sua autoria”.
Sem embargo da reforma simplista do § 5º do art. 219 do CPC, o juiz não terá como decretar ex officio a prescrição de direitos patrimoniais, senão quando no direito material houver semelhante previsão. É o caso, v.g., dos créditos tributários, cuja prescrição a Lei nº 6.830/80, art. 40, § 4º, permite seja decretada incidentemente, sem depender de exceção da parte devedora. Isto, porém, decorre do regime do direito tributário, onde se atribui à prescrição algo mais que uma simples defesa para o contribuinte: a qualidade de uma causa de extinção do próprio crédito tributário (CTN, art. 156, inc. V). Esse regime, portanto, confere à prescrição contra o Fisco um caráter especial que mais se aproxima da decadência do que da figura da prescrição civil.
À vista dos argumentos já expostos, e diante dos princípios de hermenêutica que preconizam a compreensão das normas legais sob os ditames da interpretação sistemática e teleológica, chegamos às seguintes conclusões:
a) a revogação do art. 194 do Código Civil, realizada de maneira heterotópica, dentro   de uma lei de reforma do Código de Processo Civil, não quebra necessariamente o conceito e a natureza do instituto da prescrição, figura típica do direito material, reconhecida, como tal, pela própria lei processual (há extinção do processo com resolução do mérito da causa quando o juiz pronuncia a prescrição – art. 269, IV);
b) a sistemática do regime normativo substancial da prescrição e os objetivos sociais e éticos do instituto exigem que a aplicação dos efeitos extintivos da prescrição relacionados com direitos patrimoniais disponíveis fiquem sempre subordinados ao mecanismo da exceção, manejável pelo devedor. Caso a caso, segundo suas conveniências e na oportunidade que lhes aprouver. (Cód. Civil, art 191 e 193);
c) a não fatalidade do prazo prescricional, sujeito que é a numerosos e constantes fatores de interrupção e suspensão (Cód. Civil, art. 197 a 204), não permite ao juiz sequer reconhecer, sem o concurso da parte, a consumação da prescrição, na generalidade dos casos. A decretação in limine litis da prescrição agride o devido processo legal, violando interesses legítimos tanto do credor quanto do devedor, ao negar-lhes o eficaz contraditório e ampla defesa e privá-los do livre exercício de direitos e faculdades assegurados pela ordem jurídica material;
d) a decretação autoritária e sumária da prescrição, sem a necessária provocação da parte, ofende ainda a garantia do devido processo legal por não respeitar os interesses tanto do credor como do devedor: do credor, porque o surpreende, sem dar-lhe oportunidade de adequada demonstração das objeções que legalmente possa opor a uma causa extintiva que não é automática e que em regra envolve, ou pode envolver, complexos elementos de fato e de direito; ao devedor, porque lhe impõe o reconhecimento de uma obrigação e uma exoneração que nem sempre correspondem a seus desígnios éticos e jurídicos.
e) as regras procedimentais que cogitam de decretação de prescrição sem condicioná-las à provocação do devedor (CPC, art 295, IV, e 219, § 5º) somente podem ser aplicadas, in concreto, nos casos em que a lei material considere indisponível o direito patrimonial (casos, v.g., de prescrição em favor de pessoas absolutamente incapazes;

– (A decretação ex officio, no caso de interesses dos absolutamente incapazes,, se justifica pela indisponibilidade de seus bens patrimoniais. A não arguição da prescrição equivale juridicamente a uma renúncia de direito, com reflexos diretos sobre o patrimônio do devedor. Com efeito, a prescrição de obrigação passiva do incapaz corresponde a um acréscimo a seu patrimônio, cuja indisponibilidade resta sempre tutelável pela Justiça. O seu não reconhecimento, portanto, corresponde a uma liberalidade, em detrimento do patrimônio do incapaz. Explica Serpa Lopes: “A renúncia, se não é um ato de alienação de um direito, pelo menos importa num ato de abdicação de um direito, recebendo, assim, um tratamento análogo ao da primeira” (SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1996, v. 1, n. e15, p. 574).

- ou quando a própria lei substancial determine a aplicação ex officio da prescrição (caso como o da Lei de Execução Fiscal, art. 40, § 4º, a respeito dos créditos tributários;

- Justifica-se a decretação ex officio em Direito Tributário porque a prescrição, diferentemente do que se passa com a obrigação civil, apresenta-se como causa de extinção do próprio crédito tributário (CTN, art. 156, V), e não apenas como simples faculdade de resistência do devedor. A prescrição tributária, portanto, mais se aproxima da decadência do que propriamente da prescrição civil.
- “Ao juiz é dado conhecer da prescrição ex officio nos seguintes casos: a) quando fundar-se em motivos de ordem pública ou na necessidade social; b) em se tratando de ações de estado” (SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso, cit., v. 1, n. 410, p. 571). Na hipótese “a” enquadram-se os interesses indisponíveis dos incapazes e, na “b”, os direitos não patrimoniais, já que não sujeitos à prescrição, mas à decadência, na moderna concepção do Código Civil.

               Essa é a única interpretação que permite aos referidos dispositivos processuais harmonizarem-se com o sistema e os objetivos da prescrição, disciplinada pela ordem jurídica substancial. Aliás, o próprio texto do inc. IV do art. 295 (caput) dá a entender que nem sempre será viável o reconhecimento da prescrição (e até da decadência) antes da ouvida do demandado. Nos termos do dispositivo em tela, a petição inicial será indeferida, não em qualquer hipótese de prescrição, mas “quando o juiz verificar, desde logo”, a prescrição. Se, pois, pelas exigências de ordem material, o juiz não tiver condições fático-jurídicas para “verificar, desde logo”, a consumação da prescrição, não poderá indeferir a petição inicial. O tema ficará relegado para estágio ulterior à citação e resposta do réu. Com isso, reduz-se o atrito que a Lei nº 11.280, em hora de má inspiração, criou entre o regime processual e o material, no campo da prescrição das pretensões oriundas de direitos subjetivos patrimoniais disponíveis.
               f) Melhor mesmo seria revogar, de lege ferenda, a infeliz inovação, mas, enquanto isto não se der, o dever do intérprete e aplicador da lei inovadora será o de buscar minimizar as impropriedades contidas em sua literalidade, e reduzir sua aplicação apenas às hipóteses compatíveis com a natureza, finalidade e sistema da prescrição dentro do direito material.

               O tema do reconhecimento ex officio da prescrição, para sumário indeferimento da petição inicial, está mais amplamente explorado em nosso livro As novas reformas do Código de Processo Civil, em seu Capítulo II (Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2006).

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