DIREITO PROCESSUAL CIVIL III – 1º BIMESTRE – VARGAS DIGITADOR – Matéria para prova N2 –
que vai de Fases de Postulação até à ... indispensável prova induvidosa.
Professor Fábio Baptista – FAMESC – 6º período
TEORIA GERAL DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL E
PROCESSO DE CONHECIMENTO
HUMBERTO THEODORO JUNIOR
Parte VI
PROCEDIMENTO ORDINÁRIO
CAPÍTULO XVI
FASE DE POSTULAÇÃO
§ 54. PETIÇÃO INICIAL
Sumário: 353.
Petição inicial. 354. Requisitos da petição inicial. 355. Despacho da petição
inicial. 356. Casos de indeferimento da petição inicial. 356-a. Indeferimento
da petição inicial com base em prescrição. 357. Extensão do indeferimento.
357-a. Julgamento imediato do pedido na apreciação da petição inicial. 357-a-1.
Intimação da sentença prima facie. 357-b.
Recurso contra o julgamento prima facie. 357-c.
Preservação do contraditório e ampla defesa. 358. Efeitos do despacho da
petição inicial.
Continuação
356-a.
INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL COM BASE EM PRESCRIÇÃO
O
propósito da reforma do texto do § 5º do art. 219, segundo se vê da Exposição
de Motivos do respectivo Projeto, subscrita pelo Ministro da Justiça, foi
permitir ao juiz “decretar de ofício, sem necessidade de provocação das partes,
a prescrição, em qualquer caso”. Anteriormente, tal permissão se restringia às hipóteses
de “direitos não patrimoniais”. A inovação consistiu na possibilidade de a
prescrição ser reconhecida de ofício, pelo juiz, independentemente da natureza
dos direitos em litígio e da capacidade das partes.
Mais uma
vez o propósito de celeridade na resolução do litígio empolga o legislador. Desta
vez, porém, a pressa de julgar a causa no nascedouro gerará mais problemas do
que benefícios para a prestação jurisdicional.
A rejeição
liminar da demanda, por meio da decretação ex
officio pelo juiz, esbarra em grandes e insuperáveis obstáculos oriundos da
natureza do instituto, que é intrinsecamente de direito material, e não
processual.
Quando o texto
primitivo do art. 219, § 5º, permitia ao juiz declarar a prescrição dos “direitos
não patrimoniais” sem depender de provocação da parte, o fazia porque na
verdade tais direitos não se sujeitavam a prescrição, e sim a decadência. A distinção
feita pelo Código Processual devia-se a uma notória deficiência do Código Civil
de 1916 que não distinguia entre prescrição e decadência, e a todo prazo
extintivo de direito ou ação aplicava o rótulo de prescrição.
Como era
impossível, na teoria do direito material, ignorar a diferença entre a
prescrição e a caducidade, o Código de Processo Civil teve de recorrer à
expressão “prescrição de direitos não patrimoniais” para apartá-los do regime
dos “direitos patrimoniais”, onde efetivamente se passa o fenômeno típico da
prescrição.
A diferença básica entre a prescrição e a
decadência está em que aquela afeta e extingue a pretensão (actio) enquanto esta põe fim ao próprio direito
subjetivo. Como a prescrição não elimina o direito, de onde provém a pretensão,
o devedor assume, em razão do decurso do tempo legal e da inércia do credor,
apenas uma exceção (defesa), de que é livre para usar ou não, caso queira se
furtar ao cumprimento da prestação tardiamente reclamada pelo credor.
O direito material não prevê a extinção
do direito do credor em virtude do transcurso do prazo prescricional. Segundo o
art. 189 do Código Civil, da violação do direito pelo devedor (inadimplemento),
nasce a pretensão (poder de exigir a prestação sonegada pelo devedor), a qual
irá extinguir ao final do prazo fixado na lei.
Na estrutura do direito material, só ao devedor
cabe usar, ou não, a exceção de
prescrição. Trata-se de faculdade, ou de direito disponível, renunciável
expressa ou tacitamente. Basta o não uso da exceção para tê-la como renunciada
por seu respectivo titular (Código Civil, art. 191).
Já a decadência, o juiz tem não apenas a
possibilidade, mas o dever de pronunciá-la, com ou sem provocação da parte,
porque, por seu intermédio, extingue-se o próprio direito subjetivo material
(Código Civil, art. 210). Ao contrário da prescrição de que o devedor tem livre
poder de disposição, é irrenunciável a decadência (Código Civil, art. 209).
Há, na ordem lógica e jurídica, uma
verdadeira inviabilidade da decretação da prescrição fora da exceção manejada
pelo devedor. Ao contrário da decadência, que é fatal e se atinge inexoravelmente
pelo simples decurso do prazo da lei, sem sujeitar-se a suspensões e
interrupções, a prescrição é naturalmente imprecisa, não havendo como
detectá-la prima facie, tantos são os
fatores que interferem em seu fluxo temporal, impedindo-o, suspendendo-o ou
interrompendo-o, com muita frequência, e com feições de variados matizes (O
Código Civil arrola às dezenas as causas de interrupção, impedimento e
suspensão dos prazos prescricionais –
arts. 197 a 204).
Nenhum juiz, portanto, tem condições de,
pela simples leitura da inicial, reconhecer ou rejeitar uma prescrição. Não se
trata de uma questão apenas de direito, como é a decadência, que se afere por
meio de um simples cálculo do tempo ocorrido após o nascimento do direito
potestativo de duração predeterminada. A prescrição não opera ipso iure; envolve necessariamente fatos
verificáveis no exterior da relação jurídica, cuja presença ou ausência são
decisivas para a configuração da causa extintiva da pretensão do credor
insatisfeito. Sem dúvida, as questões de fato e de direito se entrelaçam
profundamente, de sorte que não se pode tratar a prescrição como uma simples
questão de direito que o juiz possa ex
officio, levantar e resolver liminarmente, sem o contraditório entre os
litigantes. A prescrição envolve, sobretudo, questões de fato, que, por versar
sobre eventos não conhecidos do juiz, o inibem de pronunciamentos prematuros e
alheios às alegações e conveniências dos titulares dos interesses em confronto.
Se é difícil para o juiz decretar ex officio e liminarmente a prescrição
objetiva do Código Civil (art. 189 e 205 e a maioria dos incisos do art. 206),
impossível será fazê-lo nos casos de prescrição subjetiva, como a do art. 27 do
Código de Defesa do Consumidor e alguns incisos do art. 206 do Código Civil. É que
nestes casos, além da interferência dos impedimentos, interrupções e
suspensões, há a imprecisão do termo inicial da prescrição que se relaciona com
um dado pessoal e subjetivo: a data do “conhecimento do dano e de sua autoria”.
Sem embargo da reforma simplista do § 5º
do art. 219 do CPC, o juiz não terá como decretar ex officio a prescrição de direitos patrimoniais, senão quando no
direito material houver semelhante previsão. É o caso, v.g., dos créditos
tributários, cuja prescrição a Lei nº 6.830/80, art. 40, § 4º, permite seja
decretada incidentemente, sem depender de exceção da parte devedora. Isto,
porém, decorre do regime do direito tributário, onde se atribui à prescrição
algo mais que uma simples defesa para o contribuinte: a qualidade de uma causa
de extinção do próprio crédito tributário (CTN, art. 156, inc. V). Esse regime,
portanto, confere à prescrição contra o Fisco um caráter especial que mais se
aproxima da decadência do que da figura da prescrição civil.
À vista dos argumentos já expostos, e
diante dos princípios de hermenêutica que preconizam a compreensão das normas
legais sob os ditames da interpretação sistemática e teleológica, chegamos às
seguintes conclusões:
a) a revogação do art. 194 do Código
Civil, realizada de maneira heterotópica, dentro de uma lei de reforma do Código de Processo
Civil, não quebra necessariamente o conceito e a natureza do instituto da
prescrição, figura típica do direito material, reconhecida, como tal, pela
própria lei processual (há extinção do processo com resolução do mérito da
causa quando o juiz pronuncia a prescrição – art. 269, IV);
b) a sistemática do regime normativo
substancial da prescrição e os objetivos sociais e éticos do instituto exigem
que a aplicação dos efeitos extintivos da prescrição relacionados com direitos
patrimoniais disponíveis fiquem sempre subordinados ao mecanismo da exceção,
manejável pelo devedor. Caso a caso, segundo suas conveniências e na
oportunidade que lhes aprouver. (Cód. Civil, art 191 e 193);
c) a não fatalidade do prazo
prescricional, sujeito que é a numerosos e constantes fatores de interrupção e
suspensão (Cód. Civil, art. 197 a 204), não permite ao juiz sequer reconhecer,
sem o concurso da parte, a consumação da prescrição, na generalidade dos casos.
A decretação in limine litis da
prescrição agride o devido processo legal, violando interesses legítimos tanto
do credor quanto do devedor, ao negar-lhes o eficaz contraditório e ampla
defesa e privá-los do livre exercício de direitos e faculdades assegurados pela
ordem jurídica material;
d) a decretação autoritária e sumária da
prescrição, sem a necessária provocação da parte, ofende ainda a garantia do
devido processo legal por não respeitar os interesses tanto do credor como do
devedor: do credor, porque o surpreende, sem dar-lhe oportunidade de adequada
demonstração das objeções que legalmente possa opor a uma causa extintiva que
não é automática e que em regra envolve, ou pode envolver, complexos elementos
de fato e de direito; ao devedor, porque lhe impõe o reconhecimento de uma
obrigação e uma exoneração que nem sempre correspondem a seus desígnios éticos
e jurídicos.
e) as regras procedimentais que cogitam
de decretação de prescrição sem condicioná-las à provocação do devedor (CPC,
art 295, IV, e 219, § 5º) somente podem ser aplicadas, in concreto, nos casos em que a lei material considere indisponível
o direito patrimonial (casos, v.g., de prescrição em favor de pessoas
absolutamente incapazes;
– (A decretação ex officio, no caso de interesses dos absolutamente incapazes,, se
justifica pela indisponibilidade de seus bens patrimoniais. A não arguição da
prescrição equivale juridicamente a uma renúncia de direito, com reflexos diretos
sobre o patrimônio do devedor. Com efeito, a prescrição de obrigação passiva do
incapaz corresponde a um acréscimo a seu patrimônio, cuja indisponibilidade
resta sempre tutelável pela Justiça. O seu não reconhecimento, portanto,
corresponde a uma liberalidade, em detrimento do patrimônio do incapaz. Explica
Serpa Lopes: “A renúncia, se não é um ato de alienação de um direito, pelo
menos importa num ato de abdicação de um direito, recebendo, assim, um
tratamento análogo ao da primeira” (SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil. 8ª ed. Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 1996, v. 1, n. e15, p. 574).
- ou quando a própria lei substancial determine a aplicação ex officio da prescrição (caso como o da
Lei de Execução Fiscal, art. 40, § 4º, a respeito dos créditos tributários;
- Justifica-se a decretação ex officio em Direito Tributário porque
a prescrição, diferentemente do que se passa com a obrigação civil,
apresenta-se como causa de extinção do próprio crédito tributário (CTN, art.
156, V), e não apenas como simples faculdade de resistência do devedor. A prescrição
tributária, portanto, mais se aproxima da decadência do que propriamente da
prescrição civil.
- “Ao juiz é dado conhecer da prescrição ex officio nos seguintes casos: a)
quando fundar-se em motivos de ordem pública ou na necessidade social; b) em se
tratando de ações de estado” (SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso, cit., v. 1, n. 410, p. 571). Na hipótese
“a” enquadram-se os interesses indisponíveis dos incapazes e, na “b”, os
direitos não patrimoniais, já que não sujeitos à prescrição, mas à decadência,
na moderna concepção do Código Civil.
Essa é a única interpretação que permite
aos referidos dispositivos processuais harmonizarem-se com o sistema e os
objetivos da prescrição, disciplinada pela ordem jurídica substancial. Aliás, o
próprio texto do inc. IV do art. 295 (caput)
dá a entender que nem sempre será viável o reconhecimento da prescrição (e até
da decadência) antes da ouvida do demandado. Nos termos do dispositivo em tela,
a petição inicial será indeferida, não em qualquer hipótese de prescrição, mas “quando
o juiz verificar, desde logo”, a prescrição. Se, pois, pelas exigências de
ordem material, o juiz não tiver condições fático-jurídicas para “verificar,
desde logo”, a consumação da prescrição, não poderá indeferir a petição
inicial. O tema ficará relegado para estágio ulterior à citação e resposta do
réu. Com isso, reduz-se o atrito que a Lei nº 11.280, em hora de má inspiração,
criou entre o regime processual e o material, no campo da prescrição das
pretensões oriundas de direitos subjetivos patrimoniais disponíveis.
f) Melhor
mesmo seria revogar, de lege ferenda,
a infeliz inovação, mas, enquanto isto não se der, o dever do intérprete e
aplicador da lei inovadora será o de buscar minimizar as impropriedades
contidas em sua literalidade, e reduzir sua aplicação apenas às hipóteses
compatíveis com a natureza, finalidade e sistema da prescrição dentro do
direito material.
O tema do
reconhecimento ex officio da
prescrição, para sumário indeferimento da petição inicial, está mais amplamente
explorado em nosso livro As novas
reformas do Código de Processo Civil, em seu Capítulo II (Rio de Janeiro,
Ed. Forense, 2006).