segunda-feira, 6 de abril de 2015

MANUAL DE PROCESSO PENAL – NOÇÕES PRELIMINARES – PRINCÍPIO DA INICIATIVA DAS PARTES – PRINCÍPIO DO “NE EAT JUDEX ULTRA PETITA PARTIUM” – PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ - VARGAS DIGITADOR

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – NOÇÕES PRELIMINARES – PRINCÍPIO DA INICIATIVA DAS PARTES – PRINCÍPIO DO “NE EAT JUDEX ULTRA PETITA PARTIUM” – PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ - VARGAS DIGITADOR

Segundo esse princípio, cabe à parte provocar a prestação jurisdicional. Tal princípio vem cristalizado no velho aforismo nemo judex sine atore não há Juiz sem autor) ou ne procedat judex ex officio (o Juiz não pode dar início ao processo sem a provocação da parte). Contudo o Código lhe permite conceder habeas corpus de ofício (e o habeas corpus é uma ação penal popular). Permite-lhe decretar, de ofício, a prisão preventiva (e a prisão preventiva é ação cautelar...), o que demonstra que o nosso processo penal, embora acusatório, não o é genuinamente, visto permitir ao Juiz praticar atos próprios das partes, como da produção de provas, p. ex. Certo que até o advento da Carta Política de 1988, possibilitava-se ao Juiz dar início ao processo sem ser provocado. Isso acontecia nas contravenções (arts 26 e 531 do CPP) e nos crimes de lesão e homicídio culposos (Lei n. 4.611/65), quando a autoria era conhecida nos primeiros 15 dias. Ainda hoje se vislumbra no Código de Processo Penal a lembrança daquela época: basta simples leitura do seu art. 531. O art. 129, I, da Magna Carta, contudo, proclamou ser função institucional do Ministério Público promover privativamente a ação penal pública, e como nos crimes de lesão e homicídio culposos a ação penal é pública, o mesmo sucedendo com as contravenções (art. 17 da Lei das Contravenções Penais), logo, o princípio da iniciativa das partes passou a ter a dignidade que merecia e merece.

Princípio do “ne eat judex ultra petita partium” (o Juiz não pode ir além dos pedidos das partes)

Iniciada a ação, fixam-se os contornos da res in judicio deducta (do pedido formulado em juízo), de sorte que o Juiz deve pronunciar-se sobre aquilo que lhe foi pedido, que foi exposto na inicial pela parte. Esse o fato objeto do processo instaurado. Daí “se segue que ao Juiz não se permite pronunciar-se, senão sobre o pedido e nos limites do pedido do autor e sobre as exceções e nos limites das exceções deduzidas pelo réu”. Se por acaso, ao sentenciar, o Juiz observar que a qualificação jurídico-penal dada ao fato fique mais severa, nos termos do artigo 383 do CPP, mesmo porque o réu se defende do fato que lhe é imputado e não da sua qualificação... Mas se o fato contestado for outro, por óbvio o Juiz não pode sair do perímetro traçado pelo acusador, a não ser haja possibilidade de nova definição jurídica do fato em consequência de prova existente nos autos de circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia, quando então, conforme o caso, fará observar o disposto no art. 384, caput, do CPP ou no seu parágrafo único. Revendo nossa posição, entendemos que essa mesma regra é aplicável, também, na hipótese prevista no § 4º do art. 408 do CPP. Assim, se a denúncia descreve um crime de homicídio simples e no curso do procedimento surge prova a respeito de eventual qualificadora, deve o Juiz aplicar a regra do parágrafo único do art. 384 do mesmo estatuto, porque se trata de nova definição jurídica do fato, e não de diversa definição. Na sentença, o Juiz não fica adstrito à classificação do crime (art. 383). Assim também na pronúncia, conforme dispõe o § 4º do art. 408 do CPP.

Princípio da identidade física do Juiz


Vigora no Processo Penal o princípio da identidade física do Juiz? O Juiz que inicia a instrução criminal deverá ficar à frente do processo até o seu término? O Processo Civil, sem os exageros da Legislação passada, o mantém; a propósito, o art. 132. No campo processual penal, nenhuma regra nesse sentido.

MANUAL DE PROCESSO PENAL – NOÇÕES PRELIMINARES – PRINCÍPIO DA PERSUASÃO RACIONAL OU DO LIVRE CONVENCIMENTO – PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE – PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO - VARGAS DIGITADOR

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – NOÇÕES PRELIMINARES – PRINCÍPIO DA PERSUASÃO RACIONAL OU DO LIVRE CONVENCIMENTO – PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE – PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO - VARGAS DIGITADOR

Esse princípio, consagrado no art. 157 do CPP, impede que o Juiz possa julgar com o conhecimento que eventualmente tenha extra-autos. Quod non est in actis non est in hoc mundo. O que não estiver dentro, no processo, é como se não existisse. E, nesse caso, o processo é o mundo para o Juiz. Trata-se de excelente garantia para impedir julgamentos parciais. Ele tem inteira liberdade de julgar, valorando as provas como bem quiser, sem, contudo, arredar-se dos autos. A fundamentação é de rigor. Sentença sem motivação é uma não sentença, tanto mais quanto a sociedade e em particular as partes devem saber que motivos levaram o Magistrado a esta ou àquela posição.

Princípio da publicidade

Outro princípio importantíssimo do Processo Penal é o da publicidade, segundo o qual os atos processuais são públicos.

No Direito pátrio vigora o princípio da publicidade absoluta, comoo regra. As audiências, as sessões e a realização de outros atos processuais são franqueados ao público em geral. Em se tratando de processo da competência do Júri, são impostas algumas limitações (v. CPP, arts. 476, 481 e 486).

Tal princípio da publicidade absoluta ou geral vem consagrado como regra no art. 792 do CPP. E deve ser assim para que a sociedade perceba que a Justiça não é feita entre quatro paredes. É e deve ser transparente. A despeito de viger tal princípio, o legislador pátrio admite, também, a publicidade especial ou restrita. Di-lo o § 1º do art. 792. Muito a propósito, também, o inc. LX do art. 5º da Magna Carta: “A lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. E as razões, aqui, são óbvias. Basta simples leitura desses dispositivos legais.

Por outro lado, a publicidade não atinge, grosso modo, os atos que se realizam durante a feitura do inquérito policial, não só pela própria natureza inquisitiva dessa peça informativa, como também porque o próprio art. 20 do CPP dispõe que a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário... Trata-se, de conseguinte, de lex specialis. Nem se invoque a Constituição. Nela se fala em publicidade dos atos processuais... e os do inquérito não o são. Nela se fala em litigante... e no inquérito não há litigante. Não obstante, a Lei n. 8.906/94 O Estatuto da Advocacia), posterior ao Decreto-Lei n. 3.689/41 (Código de Processo Penal) e a este hierarquicamente superior, por ser Lei e o outro, Decreto-Lei, prevê entre os direitos do Advogado não só o de “comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis” (art. 7º, III), como o de “examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade policial, podendo copiar peças e tomar apontamentos...”(art. 7º, XIV). Então, praticamente, o princípio da não publicidade dos atos do inquérito sofreu esse sério revés. Ainda assim, os atos nele realizados não são públicos, isto é, não se permite que qualquer do povo possa assisti-los, tal como sucede com aqueles realizados em juízo.

Princípio do contraditório

A Constituição de 1988 é bem clara: “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5º, LV).

E, como se não bastasse tanta clareza, acentuou: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (CF, art. 5º, LIV). Claro que nesta expressão – due process of law – estão todas as garantias processuais.

Aliás, em todo processo de tipo acusatório, como o nosso, vigora esse princípio, segundo o qual o acusado, isto é, a pessoa em relação à qual se propõe a ação penal, goza do direito “primário e absoluto” da defesa. O réu deve conhecer a acusação que se lhe imputa para poder contrariá-la, evitando, assim, possa ser condenado sem ser ouvido.

Tal princípio consubstancia-se na velha parêmia audiatur et altera pars – a parte contrária deve ser ouvida. Traduz a ideia de que a defesa tem o direito de se pronunciar sobre tudo quanto for produzido em juízo pela parte contrária. Já se disse: a todo ato produzido por uma das partes caberá igual direito da outra parte de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que lhe convenha, ou, ainda, de dar uma interpretação jurídica diversa daquela apresentada pela parte ex adversa. Assim, se o Acusador requer a juntada de um documento, a parte contrária tem o direito de se manifestar a respeito. E vice-versa. Se o Defensor tem o direito de produzir provas, a Acusação também o tem. O texto constitucional supracitado quis apenas deixar claro que a defesa não pode sofrer restrições que não sejam extensivas à acusação. Certo que a lei confere exclusivamente á Defesa o protesto por novo júri, os embargos infringentes ou de nulidade e até mesmo a ação de revisão criminal. Faz mais: proíbe a reformatio in pejus (art. 617 do CPP) e permite a absolvição na hipótese de insuficiência de prova para um decreto condenatório (art. 386, VI, do CPP). Tudo isso em decorrência do princípio do in dubio pro reo et contra civitatem. Trata-se, em todos esses casos, de normas inspiradas no princípio do favor rei ou favor libertatis. O princípio da proporcionalidade, que se admite na proibição das provas ilícitas (em favor da Defesa), e a revisão criminal inclusive das decisões do Tribunal do Júri também nada mais representam que consequências do princípio do favor rei.

De um ponto de vista lógico tal princípio parecerá, dizia Bettiol, um absurdo, mas, numa perspectiva política, assinala um avanço da liberdade no árduo caminho que leva a um processo penal “humano” (G. Bettiol, Instituições de direito e processo penal, trad. Manuel da Costa Andrade, Coimbra, Coimbra Ed., 1974, p. 304). Em contrapartida, talvez aqueles benefícios houvessem sido concedidos à defesa para compensar a desigualdade entre ela e a acusação, que dispõe de um invejável aparelhamento na fase pré-processual. De qualquer sorte, Acusação e Defesa estão situadas no mesmo plano, em igualdade de condições, e, acima delas, o Órgão Jurisdicional, como órgão “superpartes”, para, afinal, depois de ouvir as alegações das partes, depois de apreciar as provas, “dar a cada um o que é seu”. O contraditório implica o direito de contestar a acusação, seja após a denúncia, seja em alegações finais; direito de o acusado formular reperguntas a todas as pessoas que intervierem no processo para esclarecimento dos fatos (ofendido, testemunhas, peritos, p. ex.), de contra-arrazoar os recursos interpostos pela parte ex adversa; direito de se manifestar sobre todos os atos praticados pela acusação. Não bastasse esse princípio, a Lei Fundamental acrescenta o da “ampla defesa”. Já aqui se permite à Defesa o direito de produzir as provas que bem quiser e entender, dês que não proibidas; direito de contraditar testemunhas; direito de recorrer das decisões que contrariarem os interesses do acusado; direito de opor exceções (art. 95 do CPP), de arguir questões prejudiciais; direito de trazer para os autos todo e qualquer elemento que contradiga a acusação; direito de conduzir para o processo tudo quanto possa beneficiar o acusado; direito à “defesa técnica”, tal como se infere dos arts. 261 e 263, todos do CPP, sem embargo de poder exercer a “defesa material”, consistente em manifestação própria, na oportunidade do seu interrogatório. Quando alega um “álibi”, quando invoca uma excludente de ilicitude, quando nega a autoria, tudo integra a defesa “material”. Alega-se que a Defesa deve falar por último. Depende. Se a prova é produzida pela Defesa, é a Acusação que fala por derradeiro. E vice-versa. A nosso ver, quando o Promotor recorre, após as contrarrazões da Defesa, não deveria o Procurador de Justiça, ao opinar sobre o processo, manifestar-se quanto ao mérito, e sim sobre o aspecto formal e regularidade do feito. Do contrário estaria, em última análise, o Ministério Público falando duas vezes... E nem sempre se manifesta com aquela imparcialidade que é própria do fiscal da lei... Canotilho, após analisar o sentido constitucional do princípio do contraditório, conclui implicar ele, em particular, o direito de o réu intervir no processo e se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo, (Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada. Coimbra, Coimbra Ed., 2003, p. 206).

E no inquérito haverá contraditório?

Não obstante a Magna Carta disponha no art. 5º, LV, que “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, o certo é que a expressão “processo administrativo” não se refere à fase do inquérito policial, e sim ao processo instaurado pela Administração Pública para apuração de ilícitos administrativos ou quando se tratar de procedimentos administrativos fiscais, mesmo porque, nesses casos, haverá a possibilidade da aplicação de uma sanção: punição administrativa, decretação de perdimento de bens, multas por infração de trânsito, p. ex. Em face da possibilidade da inflição de uma “pena”, é natural deva haver o contraditório e a ampla defesa, porquanto não seria justo a punição de alguém sem o direito de defesa.


Já em se tratando de inquérito policial, não nos parece que a Constituição se tenha referido ao ele, até porque, de acordo com o nosso ordenamento, nenhuma pena pode ser imposta ao indiciado. Ademais, o texto da Lei Maior  fala em “litigantes”, na fase da investigação preparatória não há litigantes... É verdade que o indiciado pode ser privado da sua liberdade nos casos de flagrante, prisão temporária ou preventiva. Mas, para esses casos, sempre se admitiu o emprego do remédio heroico do habeas corpus. Nesse sentido, e apenas nesse sentido, é que se pode dizer que a ampla defesa abrange o indiciado. O que não se concebe é q permissão do contraditório naquela fase informativa que antecede à instauração do processo criminal, pois não há ali nenhuma acusação. Não havendo, não se pode invocar o princípio da par conditio – igualdade de armas. Todos sabemos que não se admite um decreto condenatório respaldado, exclusivamente, nas provas apuradas na etapa pré-processual. A Autoridade Policial não acusa; investiga. E investigação contraditória é um não-senso. Se assim é, parece-nos não ter sentido estender o instituto do contraditório ao inquérito, em que não há acusação. Quanto à ampla defesa, tem o indiciado direito ao habeas corpus sempre que sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação na sua liberdade de locomoção. Malgrado essas observações, o Estatuto da Advocacia confere ao Advogado o direito de examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante ou de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos. Mas entre essa conduta e o direito ao contraditório há cem léguas de distância.

domingo, 5 de abril de 2015

MANUAL DE PROCESSO PENAL – NOÇÕES PRELIMINARES – PRINCÍPIOS QUE REGEM O PROCESSO PENAL – PRINCÍPIO DA VERDADE REAL – PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE DO JUIZ – PRINCÍPIO DA IGUALDADE DAS PARTES – PRINCÍPIO DA PARIDADE DE ARMAS - VARGAS DIGITADOR

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – NOÇÕES PRELIMINARES – PRINCÍPIOS QUE REGEM O PROCESSO PENAL – PRINCÍPIO DA VERDADE REAL – PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE DO JUIZ – PRINCÍPIO DA IGUALDADE DAS PARTES – PRINCÍPIO DA PARIDADE DE ARMAS - VARGAS DIGITADOR

O Processo Penal é regido por uma série de princípios e regras que outra coisa não representa senão postulados fundamentais da política processual penal de um Estado. Quanto mais democrático for o regime, o processo penal mais se apresenta como um notável instrumento, a serviço da liberdade individual. Sendo o processo penal, como já se disse, uma expressão de cultura, de civilização, e que reflete determinado momento político, evidente que os seus princípios oscilam à medida que os regimes políticos se alteram. Num Estado totalitário, consideram-se as razões do Estado. Em um democrático, como bem o disse Bettiol, aqui já citado, a liberdade individual, como expressão de um valor absoluto, deve ser tida como inviolável pela Constituição (Instituições de direito penal e processo penal, trad. Manuel da Costa Andrade, Coimbra, Coimbra, Ed., 1974, p. 251). Tanto é assim que da data da promulgação do nosso Código de Processo Penal, início de 1942, quando vivíamos sob a égide de um arremedo de Constituição, até hoje, houve várias mudanças no nosso Processo Penal, sempre procurando, de maneira capenga, mas sempre procurando, buscar a tutela dos direitos e interesses do acusado, amparando-lhe e salvaguardando-lhe as legítimas expectativas. Causaria espanto em 1942 afirmar que a única prisão provisória que se justifica é a preventiva e, assim mesmo, para preservar a instrução criminal e assegurar a aplicação da lei penal.

Princípio da verdade real

A função punitiva do Estado deve ser dirigida àquele que, realmente, tenha cometido uma infração; portanto o Processo Penal deve tender à averiguação e descobrimento da verdade real, da verdade material, como fundamento da sentença. No campo extrapenal, porque de regra estão em jogo interesses disponíveis, as partes podem, usando dos seus poderes dispositivos, transacionar, transigir, submeter-se à vontade da parte ex adversa, tornando impossível a restauração real dos fatos. Note-se que os fatos incontroversos não podem ser objeto de prova, na dicção do art. 334 do CPC. No Processo Penal, o fenômeno é inverso, como se constata pelos arts. 209 e 156, segunda parte, dentre outros, pouco importando se é controvertido ou não o fato. Excepcionalmente, o Juiz penal se curva à verdade formal, não dispondo de meios para assegurar o império da verdade. Vejam-se, a propósito, a impossibilidade de revisão pro societate, as hipóteses que admitem a transação segundo a Lei n. 9.099/95 e as várias restrições impostas à prova, como as previstas nos arts. 155, 206 e 207 do CPP. Por outro lado, quando se fala em verdade real, não se tem a presunção de se chegar à verdade verdadeira, como se costuma dizer, ou, se quiserem, a verdade na sua essência – esta é acessível apenas à Suma Potestade -, mas tão-somente salientar que o ordenamento confere ao Juiz penal, mais que ao Juiz não penal, poderes para coletar dados que lhe possibilitem, numa análise histórico-crítica,  na medida do possível, restaurar aquele acontecimento pretérito que é o crime investigado. É certo, ademais, que, mesmo na justiça penal, a procura e o encontro da verdade real se fazem com as naturais reservas oriundas da limitação e falibilidade humanas, e, por isso, melhor seria falar de “verdade processual” ou “verdade forense”, até porque, por mais que o Juiz procure fazer a reconstrução histórica do fato objeto do processo, muitas e muitas vezes o material de que ele se vale (ah! as testemunhas...) poderá conduzi-lo a uma “falsa verdade real”, e por isso mesmo Ada P. Grinover já anotava que “verdade e certeza são conceitos absolutos, dificilmente atingíveis, no processo ou fora dele” (A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório, RF, 347/6).

Princípio da imparcialidade do Juiz

Não se pode admitir Juiz parcial. Se o Estado chamou a si a tarefa de dar a cada um o que é seu, essa missão não seria cumprida se, no processo, não houvesse imparcialidade do Juiz.

Mas a imparcialidade exige, antes de mais nada, independência. Nenhum Juiz poderia ser efetivamente imparcial se não estivesse livre de coações, de influências constrangedoras, enfim, de ameaças que pudessem fazê-lo temer a perda do cargo. Daí as garantias conferidas à Magistratura pela Lei Maior: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, por outro lado, se houver motivo que, eventualmente, possa afetar-lhe a imparcialidade, qualquer das partes pode excepcionar-lhe o impedimento, incompatibilidade ou suspeição, nos termos dos arts. 252, 254 e 112, todos do CPP, se ele próprio não se antecipou, abstendo-se de atuar no feito.

Princípio da igualdade das partes

No processo, as partes, embora figurem em polos opostos, situam-se no mesmo plano, com iguais direitos, ônus, obrigações e faculdades. É uma consequência lógica da estrutura do nosso Processo Penal, que é acusatório. Se a pedra de toque do processo acusatório é a separação das funções de acusar, defender e julgar, pelo menos sob esse ângulo não se pode negar o caráter acusatório do nosso Processo Penal. Certo que não é um processo acusatório puro, ortodoxo, do contrário muitas atividades próprias das partes não seriam conferidas ao Juiz. Sem embargo, é acusatório. E tanto o é que a Constituição guindou a acusação e a defesa à categoria de funções essenciais à administração da Justiça (arts 127 e 133). Sendo acusatório, deve haver uma igualdade entre as partes. Sem essa igualdade de condições, não haveria equilíbrio entre elas, e a ausência de equilíbrio implicaria negação da Justiça. E o legislador procurou manter esse equilíbrio diante do Juiz. Note-se, por exemplo, que o réu não pode defender-se a si mesmo, salvo se tiver habilitação técnica. É como soa o art. 263 do CPP. Se fosse possível a defesa a cargo de pessoa sem habilitação, defesa e acusação ficariam desniveladas, e a contraposição ou possibilidade dialética entre as partes tornar-se-ia impossível. O princípio da igualdade ficaria em desnível, porque um órgão técnico, o represente do Ministério Público, faria uma oposição ao réu, em desigualdade de condições em face da sua falta de conhecimento jurídico. Às partes processuais, representado interesses opostos (Acusação e Defesa), deve ser assegurada absoluta paridade, pois do contrário não seria possível uma genuína e sã contraposição entre elas. Não seria possível (num reforço de linguagem...) uma contraposição dialética. Diz Couture que esse princípio da igualdade nada mais é que o princípio de que todos são iguais perante a lei levado ao processo (Fundamentos del derecho procesal civil, Buenos Aires, Depal, 1972, p. 183), ou como diz Clariá Olmedo: “a norma constitucional segundo a qual todos são iguais perante a lei traduz-se, em juízo, como a igualdade das partes” (Tratado del derecho procesal penal, Buenos Aires, Depalma, 1989, v.1. p. 83).

Princípio da paridade de armas


Para que haja essa igualdade é indispensável disponham as partes das mesmas armas. É o princípio da par conditio. Os direitos e poderes que se conferem à Acusação não podem ser negados à Defesa, e vice-versa. Certo que às vezes concede-se um pouco mais à Defesa. É a hipótese do protesto por novo Júri, dos embargos infringentes e da revisão criminal, exclusivos da Defesa. Por outro lado, na fase pré-processual, na fase do inquérito, a desigualdade entre o que o titular do direito de punir pode fazer e o que resta ao investigado é marcante. Este não goza dos mesmos direitos e não detém os mesmos poderes reservados ao Estado-Administração, representado pela Polícia. Nem dispõe de instrumentos para a este se nivelar. O único direito que lhe é reservado cinge-se à defesa da sua integridade física e da sua liberdade ambulatória. Não pode ser submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (pelo menos é o que diz a nossa Carga Magna...). não pode, também, sofrer constrangimento ilegal em sua liberdade de locomoção. Só.

sábado, 4 de abril de 2015

MANUAL DE PROCESSO PENAL – NOÇÕES PRELIMINARES – AUTONOMIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL – NOMENCLATURA – FINALIDADE – POSIÇÃO NO QUADRO GERAL DO DIREITO – RELAÇÃO DO DIREITO PROCESSUAL PENAL COM OUTROS RAMOS DO DIREITO E CIÊNCIAS AUXILIARES - VARGAS DIGITADOR

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – NOÇÕES PRELIMINARES – AUTONOMIA DO DIREITO PROCESSUAL PENAL – NOMENCLATURA – FINALIDADE – POSIÇÃO NO QUADRO GERAL DO DIREITO – RELAÇÃO DO DIREITO PROCESSUAL PENAL COM OUTROS RAMOS DO DIREITO E CIÊNCIAS AUXILIARES - VARGAS DIGITADOR

O Direito Processual Penal

O Direito Processual constitui ciência autônoma no campo da dogmática jurídica, uma vez que tem objeto e princípios que lhe são próprios. O objeto do Processo Penal é, precipuamente, a prestação jurisdicional, vale dizer, a solução do conflito entre o jus puniendi do Estado e o direito de liberdade do presumido autor do fato infringente da norma. Enquanto o Direito Penal tem por finalidade preservar e resguardar os bens jurídicos mais importantes no meio social, como o direito à vida, à integridade física, à honra, à propriedade etc., descrevendo as condutas proibidas e as respectivas sanções, o Direito Processual Penal mostra os meios para se provocar a atividade do Juiz para que este decida se o acusado foi, ou não, o autor do crime e se merece, ou não, ser punido. Em última análise, este o seu objeto: a solução do litígio que surgiu com a prática do fato infracional. Com razão disse Canelutti: “O direito penal cuida da patologia... e o processual penal, da farmacologia” (Francesco Canelutti, Lecciones sobre el proceso penal, Buenos Aires, EJEA, 1950, v. 1, p. 69). Ou, como esclareceu Beling, a realização do Direito Penal é a tarefa do Direito Processual Penal (Ernst Beling, Derecho procesal penal, trad. Miguel Fenech, Labor, 1943, § 26). Quanto aos princípios, por óbvio, são eles distintos daqueles que disciplinam o Direito Penal. Este é o Direito Material; aquele, o Direito Formal. Ali se cuida, especificamente, das figuras delituais e da respectiva sanção penal. Pelo fato de terem objetos distintos, seus princípios são diversos. Daí os princípios da reserva legal (nullum crimen, nulla poena sine praevia lege), da proibição da analogia da Parte Especial do Código Penal e, na Parte Geral, a proibição da analogia in malam partem, da proporcionalidade da pena, da irretroatividade da lei mais severa, da insignificância, do nulla poena sine culpa, da ultra-atividade da lei mais benigna (Lex mitior etc.). No Processo Penal, em face mesmo do seu objeto, outros são os princípios: o da verdade real, publicidade, devido processo legal, presunção de inocência, imparcialidade do Juiz, duplo grau de jurisdição, ampla defesa, contraditório, igualdade das partes, paridade de armas, inadmissibilidade de prova ilícita, iniciativa das partes, nulla poena sine judice (nenhuma pena pode ser imposta senão através do Juiz), nulla poena sine judicio (nenhuma pena pode ser imposta senão através do processo), Juiz natural etc.

Instrumentalidade do Direito Processual

Não se pode negar o caráter instrumental do Direito Processual, porquanto constitui ele um meio, o instrumento para fazer atuar o Direito material.

No que concerne ao Direito Processual propriamente, mais clara se apresenta tal instrumentalidade, uma vez que não sendo o Direito Penal de coação direta, e uma vez que o Estado autolimitou o seu jus puniendi, não se concebe aplicação de pena sem processo. Nulla poena sine judicio; nulla poena sine judice (nenhuma pena pode ser imposta sem processo; nenhuma pena pode ser imposta senão pelo Juiz). Certo que nas infrações de menor potencial ofensivo não há propriamente um “processo”, mas, também, a medida alternativa proposta ao autor do fato, pela acusação, não constitui pena. E, ainda que o fosse, a “medida” seria proposta pelo acusador e, se aceita, só teria eficácia uma vez homologada pelo Juiz. Sem a homologação judicial nenhum valor teria a transação. Por outro lado, o devido processo legal para essas infrações é o traçado na Lei n. 9.099/95. O que não se concebe é um acordo exclusivamente entre as partes materiais (autor e ofendido) para a inflição de pena ou medida alternativa.

Nomenclatura

Direito Processual Penal ou Direito Judiciário Penal? A despeito de mais antiga, a expressão “Direito Judiciário Penal” está sendo abandonada. E isso talvez pelo fato de poder ser entendido como ramo que se ocupa mais da Organização Judiciária que do próprio processo.

Finalidade

Qual a finalidade do Direito Processual Penal? Podemos dizer que existe uma finalidade mediata, que se confunde com a própria finalidade do Direito Penal – paz social -, e uma finalidade imediata, que outra não é senão a de conseguir a “realizabilidade da pretensão punitiva derivada de um delito, através da utilização da garantia jurisdicional”. Sua finalidade, em suma, é tornar realidade o Direito Penal. Enquanto este restabelece sanções aos possíveis transgressores das suas normas, é pelo Processo Penal que se aplica a sanctio juris, porquanto toda pena é imposta “processualmente”. Por outro lado, convém deixar assinalado, como bem o disse Tornaghi, que as normas processuais representam o prolongamento e a efetivação do capítulo constitucional sobre os direitos e as garantias individuais (Compêndio de processo penal, t. I, Rio de Janeiro, Konfino, 1967, p. 15). Por isso mesmo João Mendes Júnior ensinava que “as leis do processo são o complemento necessário das leis constitucionais” (O processo criminal brasileiro, 2. ed.,  Freitas Bastos, v. 1, p. 7). E. F. Manduca, por seu turno, proclamava que o processo penal “é a parte essencial do moderno direito constitucional dos Estados livres” (apud José Frederico Marques, Estudos de direito processual penal, Rio de Janeiro, Forense, 1960, p. 45). Enquanto a Constituição proclama os direitos e garantias fundamentais do homem, é por meio do processo penal que as garantias tornam os direitos fundamentais realidade.

Posição no quadro geral do Direito

O Direito Processual Penal é ramo do Direito Público. E o é porque o Estado Soberano, nas relações reguladas pelo Direito Processual Penal, interfere como um dos sujeitos, e, além disso, o objetivo das normas que informam o Direito Processual Penal constitui um fim específico do próprio Estado.

Relação do Direito Processual Penal com outros ramos do Direito e ciências auxiliares


Não se concebe um ordenamento jurídico em que os vários ramos do Direito que o compõem se contradigam. Pelo contrário: o ordenamento deve apresentar-se de maneira unitária. Ora, sendo o Direito Processual Parte desse ordenamento, “vive em íntima comunicação com os demais ramos do Direito”, nomeadamente com o Direito Constitucional.

MANUAL DE PROCESSO PENAL – NOÇÕES PRELIMINARES – UNIDADE OU DUALIDADE DO DIREITO PROCESSUAL? CONCEITO DE DIREITO PROCESSUAL PENAL - VARGAS DIGITADOR

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – NOÇÕES PRELIMINARES – UNIDADE OU DUALIDADE DO DIREITO PROCESSUAL? CONCEITO DE DIREITO PROCESSUAL PENAL - VARGAS DIGITADOR

O Processo, como instrumento compositivo de litígio, é um só. É por meio do processo que o Estado desenvolve sua atividade jurisdicional. Assim, Direito Processual Civil e Direito Processual Penal não passam de face de um mesmo fenômeno, ramos de um mesmo tronco.

Nas suas linhas estruturais, não divergem os Processos Civil e Penal. Muitos institutos de um e de outro são idênticos. Que é a ação senão um direito público, subjetivo, qual o de provocar a atuação dos órgãos jurisdicionais? Todas as ações de todos os ramos do Direito Processual não têm um caráter público, dado que se dirigem ao Estado para obter a atuação de seus órgãos jurisdicionais?

Assim, quer no Processo Penal, quer no Processo Civil, o conceito de ação não é um só. Apenas a natureza da pretensão é que dá, quanto ao conteúdo, um colorido diferente à ação penal e à ação civil.

E quanto à Jurisdição? Como função soberana, como atividade precípua de um dos Poderes do Estado – o Judiciário -, é única, pouco importando a natureza do conflito por dirimir.

E no que tange aos recursos: o fundamento filosófico dos recursos em geral não assenta, como dizia o Marquês de São Vicente, na falibilidade humana? Haverá diferença ontológica entre os recursos da esfera penal e os da esfera civil?

E respeitante às exceções processuais? Haverá alguma diferença substancial entre elas?

E as citações, notificações, intimações, inclusive a própria sentença: por acaso tais institutos não são formalmente idênticos? Se diferenças houver, serão, quando muito, de grau, e não qualitativas.

E no concernente às provas? Do ponto de vista estrutural, não se pode negar a identidade da prova no campo civil e no penal. É certo que, quando se fala em unidade do Direito Processual, não se pretende confundir o Direito Processual Penal com o Direito Processual Civil, ou que aquele seja reabsorvido por este. Não se pretende, enfim, estabelecer absoluta identidade entre ambos, mas apenas realçar que as pilastras são comuns, que muitos institutos são idênticos e que por isso se pode falar em uma Teoria Geral do Processo.

Conceito de Direito Processual Penal


Podemos conceituá-lo como Frederico Marques o fez: conjunto de normas e princípios que regulam a aplicação jurisdicional do Direito Penal objetivo, a sistematização dos órgãos de jurisdição e respectivos auxiliares, bem como da persecução penal.

MANUAL DE PROCESSO PENAL– NOÇÕES PRELIMINARES – O PROCESSO COMO COMPLEXO DE ATOS E COMO RELAÇÃO JURÍDICA - VARGAS DIGITADOR

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – NOÇÕES PRELIMINARES – O PROCESSO COMO COMPLEXO DE ATOS E COMO RELAÇÃO JURÍDICA - VARGAS DIGITADOR

Formada a lide penal, o Estado, por meio dos órgãos competentes, , põe-se, inicialmente, a desenvolver intensa atividade investigadora para tornar possível conhecer o genuíno autor da infração penal, bem como tornar possível conhecer o genuíno autor da infração penal, bem como para colher as primeiras informações a respeito do fato infringente da norma, das circunstâncias que o motivaram e daquelas que o circunvolveram. Essa primeira fase da persecução, embora não integre propriamente o processo, a ele se liga por uma necessidade lógica. Colhidas as primeiras notícias sobre a infração e identificado o seu autor, o Estado, já agora representado (leia-se presentado – grifo de Vargas Digitador) por outro órgão, o Ministério Público, (o Ministério Público presenta o Estado, uma vez ser ele o próprio Estado, apesar de pouco usada, a palavra presentar tem um significado único, apud a obra de Pontes de Miranda Comentários ao Código de Processo Civil – Tomo II – art. 46 a 153, 3ª edição, revista e aumentada, pp.175/176, Editora Forense:  “o Ministério Público, que presenta o Estado, para obter o que o próprio Estado prometeu quando passou a si a Justiçagrifo de Vargas Digitador),  o leva ao conhecimento do Juiz, em petição circunstanciada, a pretensão punitiva, instaurando-se, assim, o processo. Vários atos, com relevância para o processo, sucedem-se, então, de acordo com as regras e formalidades que devem ser observadas.

Visto dessa maneira, o processo não passa de uma série de atos visando à aplicação da lei ao caso concreto. A palavra “ato”, do latim actum, do verbo egere, significa feito. Logo, “ato” é aquilo que é feito pelo homem: um bilhete, um livro, uma pergunta, tudo são atos. Quando o ato tem importância para o processo ele se diz ato processual: a denúncia, seu recebimento, a citação, o interrogatório etc. Entre o ato inicial (denúncia), exercício do direito de ação, e a decisão final sobre o mérito, numerosos atos são realizados, de acordo com as regras e formalidades iniciam com a denúncia ou queixa e culminam com a decisão final do órgão jurisdicional pondo fim ao litígio, dando a cada um o que é seu.

Ao sistema de princípios e normas que regulam o processo, disciplinando as atividades dos sujeitos interessados, do órgão jurisdicional e de seus auxiliares, dá-se o nome de Direito Processual.

Sendo o processo, como realmente o é, forma de composição de litígio, conclui-se que, conceitualmente, o processo é uno, pois nada mais representa senão um substitutivo civilizado da vingança privada.


Sem embargo dessa unidade conceitual, o Direito Processual apresenta dois grandes ramos: o Direito Processual Civil e o Direito Processual Penal. E essa divisão é feita levando-se em conta o seu conteúdo ou objeto: se a natureza da lide for extrapenal, a regulamentação normativa do processo é estabelecida pelo Direito Processual civil. E tal regulamentação será feita pelo Direito Processual Penal ao se tratar de “causas penais”.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

MANUAL DE PROCESSO PENAL – O PROCESSO ABSORVEU AS DEMAIS FORMAS COMPOSITIVAS DO LITÍGIO? – O “JUS PUNIENDI” - VARGAS DIGITADOR

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – NOÇÕES PRELIMINARES – O PROCESSO ABSORVEU AS DEMAIS FORMAS COMPOSITIVAS DO LITÍGIO? – O “JUS PUNIENDI” - VARGAS DIGITADOR

O processo absorveu as demais formas compositivas do litígio?

Insta acentuar que, embora a composição dos litígios se opere por meio do processo, este não absorveu por completo as demais formas compositivas da lide. Excepcionalmente, permite a lei ao indivíduo prover a conservação ou a obtenção de um bem jurídico com a execução de atos que regra geral lhe são defesos. Vejam-se, a propósito, as normas que se contêm nos arts. 1.210, 1283 e 644 do Código Civil. Trata-se de casos de verdadeira “autodefesa”, consentida e moderada pelo Estado. Por outro lado, proclamam os arts. 188 do Código Civil e 24 e 25 do CP serem lícitos os atos praticados em legítima defesa ou em estado de necessidade.

Quanto à autocomposição, ainda se mantém, quando em jogo interesses disponíveis. As transações são muito comuns na esfera extrapenal. Atualmente, com a criação dos Juizados Especiais Criminais, nas causas penais de menor potencial ofensivo, a “transação” não passa de verdadeira “autocomposição”.

O “jus puniendi”

Dos bens ou interesses tutelados pelo Estado (por meio das normas), uns existem cuja violação afeta sobremodo as condições de vida em sociedade. O direito à vida, à honra, à integridade física são exemplos. Tais bens e muitos outros são tutelados pelas normas penais, e sua violação é o que se chama ilícito penal ou infração penal. O ilícito penal atenta pois, contra os bens mais caros e importantes de quantos possua o homem, e, por isso mesmo, os mais importantes da vida social! Cabe ao legislador dizer quais são esses bens.

Como esses bens ou interesses são tutelados em função da vida social, como são eminentemente sociais, o Estado, então, não permite que a aplicação do preceito sancionador ao transgressor da norma de comportamento, inserta na lei penal, cabe ao próprio Estado, por meio dos seus órgãos, tomar a iniciativa motu proprio, para garantir, com sua atividade, a observância da lei.

Porque os bens tutelados pelas normas penais são eminentemente públicos, o direito de punir os infratores corresponde à sociedade. Ninguém desconhece que a prática de infrações penais transtorna a ordem pública, e a sociedade é a principal vítima, por isso mesmo, tem o direito de prevenir e reprimir aqueles atos que são lesivos à sua existência e conservação.

Como a sociedade, assim entendida, é uma entidade abstrata, a função que lhe cabe, de reprimir as infrações penais, permanece em mãos do Estado, que a realiza por meio dos seus órgãos competentes.

O jus puniendi pertence, pois, ao Estado, como uma das expressões mais características da sua soberania. Observe-se, contudo, que o jus puniendi existe in abstracto  e in concreto. Com efeito. Quando o Estado, por meio do Poder Legislativo, elabora as leis penais, cominando sanções àqueles que vierem a transgredir o mandamento proibitivo que se contém na norma penal, surge para ele o jus puniendi num plano abstrato e, para o particular, surge o dever de abster-se de realizar a conduta punível. Todavia, no instante em que alguém realiza a conduta proibida pela norma penal, aquele jus puniendi desce do plano abstrato para o concreto, pois, já agora, o Estado tem o dever de infligir a pena ao autor da conduta proibida. Surge, assim, com a prática da infração penal, a “pretensão punitiva”.

Desse modo, o Estado pode exigir que o interesse do autor da conduta punível em conservar a sua liberdade se subordine ao seu, que é o de restringi-la com a inflição da pena.

A pretensão punitiva surge, pois, no momento em que o “jus puniendi” in abstracto se transfigura no “jus puniendi” in concreto.

E de que maneira consegue o Estado tornar efetivo o seu direito de punir, infligindo a pena ao culpado? Também por intermédio do processo.

Da mesma forma que não haveria equilíbrio estável no meio social se se permitisse, no campo extrapenal, às próprias partes litigantes decidirem, pelo uso da força, seus litígios, também e principalmente no campo penal, na esfera repressiva, os abusos indescritíveis se multiplicariam em número sempre crescente, em virtude dos desmandos que o titular do direito de punir, cego e desenfreado, passaria a cometer.

Pondo os olhos nessa realidade incontrastável, o Estado, então, autolimitou o seu poder repressivo.

Assim, pelo respeito à dignidade humana e à liberdade individual é que o Estado fixa a manifestação do seu poder repressivo não só em pressupostos jurídico-penais materiais  (nullum crimen, nulla poena sine lege – não há crime sem prévia definição, nem pena sem anterior cominação legal), como também assegura a aplicação da lei penal ao caso concreto, de acordo com as formalidades prescritas previamente em lei, e sempre por meio dos órgãos jurisdicionais (nulla poena sine judice, nulla poena sine judicio – nenhum pena pode ser imposta senão pelo Juiz, nenhuma pena pode ser aplicada senão por meio do processo).

Daí as regras previstas no art. 5º, XXXIX, XXXV, LIII, e LIV, da Magna Carta: “não há crime sem lei anterior que o defina”; “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito”; “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”; e, finalmente, “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Desse modo, o Estado somente poderá infligir pena ao violador da norma penal após a comprovação de sua responsabilidade (por meio do processo) e mediante decisão do órgão jurisdicional.

Assim, quando alguém comete uma infração penal, o Estado, como titular do direito de punir, impossibilitado, pelas razões expostas, de autoexecutar seu direito, vai a juízo (tal qual o particular que teve seu interesse atingido pelo comportamento ilícito de outrem) por meio do órgão próprio (o Ministério Público) e deduz a sua pretensão, isto é, esclarece o que deseja, o que pretende. O Juiz, então, procura ouvir o pretenso culpado. Colhe as provas que lhe forem apresentadas por ambas as  (Ministério Público e réu), recebe as suas razões e, após o estudo do material de cognição recolhido, procura ver se prevaleceu o interesse do Estado em punir o culpado, ou se o interesse do réu, em não sofrer restrição no seu jus libertatis. Em suma: o Juiz dirá qual dos dois tem razão. Se o Estado, aplica a sanctio juris ao culpado. Se o réu, absolve-o. isso é processo.

Se o direito de punir pertence ao Estado, se a pena somente poderá ser imposta pelo órgão jurisdicional por meio de regular o processo, se este se instaura com a propositura da ação, é óbvio que o Estado necessita de órgãos para desenvolverem a necessária atividade, visando a obter a aplicação da sanctio juris ao culpado. Essa atividade é denominada persecutio criminis. E tal direito à persecução penal (investigar o fato infringente da norma e pedir o julgamento da pretensão punitiva) é uma obrigação funcional do Estado para lograr um dos fins essenciais para os quais o próprio Estado para lograr um dos fins essenciais para os quais o próprio Estado foi constituído (segurança e reintegração da ordem jurídica).

Para que o Ministério Público, como órgão do Estado, possa exercer o direito de ação penal, levando ao conhecimento do Juiz a notícia sobre um fato que se reveste de aparência criminosa, apontando-lhe, também, o autor, é curial deva ele ter em mãos os dados indispensáveis. Tais informações preliminares são colhidas, no primeiro momento da persecução, pela Polícia Judiciária, ou Polícia Civil, como diz a Constituição, outro órgão do Estado incumbido de investigar o fato típico e sua respectiva autoria, a fim de possibilitar a propositura da ação penal. Assim, a persecutio criminis apresenta dois momentos distintos: o da investigação e o da ação penal. Esta consiste no pedido de julgamento da pretensão punitiva, enquanto a primeira é atividade preparatória da ação penal, de caráter preliminar e informativo.

Cumpre observar não ser pacífico falar em “lide” no campo processual penal. Se a lide é caracterizada por uma pretensão resistida ou insatisfeita, diz-se não se pode conceber lide no Processo Penal, à semelhança do que ocorre no cível. Sendo o Estado o titular do direito de punir e o do bem-estar social, e sedo este a maior das suas finalidades, quando alguém comete uma infração penal, não é vontade dele infligir a pena ao criminoso, mas, simplesmente, querer que o Juiz aprecie aquele fato e diga se o seu autor merece ou não ser punido. Sustenta-se, então, não haver conflito de interesses, e sim, tão-somente, um único interesse: interesse em apurar se o réu merece ou não receber a reprimenda.

Sem embargo, a doutrina majoritária fala de “lide penal”.


O Estado é titular único e exclusivo do direito de punir. Poderia reprimir os delitos pelos seus órgãos administrativo, ou pelos seus Juízes, como acontecia no processo inquisitivo, mas como ninguém suportaria viver num Estado em que o titular do direito de punir pudesse exercê-lo desenfreadamente, ele autolimitou o seu poder repressivo, preferindo, tal como se dá no cível, o uso das vias judiciárias para julgar o seu interesse na repressão, e, ao mesmo tempo, tutelando o direito de liberdade, de maneira bem significativa, exigindo a paridade de armas, o contraditório e a ampla defesa, não admitindo que o autor da conduta punível se submeta à pena sem reação, criou um verdadeiro processo de partes. Sua pretensão punitiva, nascida no instante mesmo em que se verifica a infração, deve ser resistida. Daí por que ninguém poderá ser processado sem defensor ainda que ausente ou foragido. Daí por que o Estado não pode, em nenhuma hipótese, deixar de oferecer ao acusado a oportunidade de defender-se. Queira ou não, o acusado é obrigado a defender-se. Nada impede que ele reconheça a sua culpa (pleas guilty – submissão) ou abdique dos seus direitos, como na transação. E não basta a defesa material, ou autodefesa. Exige-se, sob pena de nulidade absoluta, a defesa técnica. Não é pelo fato de o Estado desejar um julgamento justo, imparcial, que deixa de existir a lide penal. O interesse do réu em não sofrer restrição na sua liberdade, tenha ou não razão, contrapõe-se ao interesse do Estado, que é o de puni-lo, se culpado for, contudo, embora não haja absoluta identidade entre lide civil e lide penal, não será possível negar a existência de uma lide penal. Pouco importa se ela é artificial ou não. Nem por isso deixa de ser lide. Se a lide civil pode ser solucionada amigavelmente, se no processo civil, quando em jogo interesses disponíveis há sempre a fase de conciliação e no processo penal, de regra, a pretensão deve ser obrigatoriamente resistida, o mínimo que se poderá dizer é que a lide penal é sui generis. Ademais, cumpre observar que em face da Lei n. 11.313, de 28-6-2006, aumentou, consideravelmente, o número de infrações de menor potencial ofensivo e que por isso mesmo, coo no cível, comportam acordos, transações... Sobre o tema v: o excelente trabalho do Prof. José Carlos Teixeira Giorgis. A lide como categoria comum do processo, Porto Alegre, LeJur, 1991, em especial p. 89 e ss.).

quinta-feira, 2 de abril de 2015

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – NOÇÕES PRELIMINARES – FORMAS COMPOSITIVAS DO LITÍGIO - O MONOPÓLIO DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA. O PROCESSO - VARGAS DIGITADOR

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição - Editora Saraiva – NOÇÕES PRELIMINARES – FORMAS COMPOSITIVAS DO LITÍGIO -  O MONOPÓLIO DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA. O PROCESSO - VARGAS DIGITADOR

FORMAS COMPOSITIVAS DO LITÍGIO

O emprego da força devia ter sido a forma mais usual para a sua solução. Era a “autodefesa”. Por óbvio não era a solução ideal, porquanto o mais forte levaria vantagem. “La raison du plus fort est toujours la meilleure” – a razão do mais forte é sempre a melhor – como dizia La Fontaine em uma de suas fábulas.

Outro meio para a solução dos litígios era a “autocomposição”. Pela economia de despesas, de gastos, ausência de violência, seria uma forma excelente. Todavia, embora vigente, ainda hoje, para numerosos casos, não pode ser estendida à generalidade dos conflitos, uma vez que, com frequência, “envolve uma capitulação do litigante de menor resistência”. Ademais, e se um dos conflitantes não quisesse a composição? Por óbvio, o conflito não seria solucionado.

O MONOPÓLIO DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA. O PROCESSO

Era preciso, destarte, que a composição, a solução do litígio, se fizesse de maneira pacífica e justa e ficasse a cargo de um terceiro. Era preciso antes de mais nada que se tratasse de um terceiro forte demais, de modo a tornar sua decisão respeitada e obedecida por todos, principalmente pelos litigantes.

Como se percebe, somente o Estado é que podia ser esse terceiro. Então o Estado avocou a tarefa de administrar justiça restaurando a ordem jurídica quando violada. Essa intervenção, entretanto, ocorreu paulatina e gradativamente.

Hoje somente o Estado é que pode dirimir os conflitos de interesses. Daí a regra do art. 345 do CP: é proibido fazer justiça com as próprias mãos, embora a pretensão seja legítima. Só o Estado, e exclusivamente o Estado, é que pode administrá-la. Daí se infere que, detendo ele o monopólio da administração da justiça, surge-lhe o dever de garanti-la.

Desse modo, se apenas o Estado é que pode administrar justiça, solucionando os litígios, e ele o faz por meio do Poder Judiciário, é óbvio que, se alguém sofre uma lesão em seu direito, estando impossibilitado de fazê-lo valer pelo uso da força, pode dirigir-se ao Estado, representado pelo Poder Judiciário, e dele reclamar a prestação jurisdicional (aquilo que ele se prontificou a fazer com exclusividade), isto é, pode dirigir-se ao Estado-Juiz e exigir dele se faça respeitado o seu direito. A esse direito de invocar a garantia jurisdicional chama-se direito de ação. Daí proclamar a Lei Fundamental no seu art. 5º, XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.


Dessa maneira o Estado consegue dirimir os conflitos de interesses? Por meio do processo. Este nada mais é senão forma de composição de litígios. Em sua etimologia, a palavra processo traz a ideia de ir para a frente, de avançar. Então o processo  é uma sucessão de atos com os quais se procura dirimir o conflito de interesses. Nele se desenvolve uma série de atos coordenados visando à composição da lide, e esta se compõe quando o Estado, por meio do Juiz, depois de devidamente instruído com as provas colhidas, depois de sopesar as razões dos litigantes, dita a sua resolução com força obrigatória. Pode-se dizer, também, que processo é aquela atividade que o Juiz, encarregado que é de solucionar os conflitos de interesses de maneira imparcial, secondo verità e secondo giustizia, desenvolve, objetivando dar a cada um o que é seu.

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Ed. Saraiva – NOÇÕES PRELIMINARES - O LITÍGIO - VARGAS DIGITADOR

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Ed. Saraiva – NOÇÕES PRELIMINARES - O LITÍGIO - VARGAS DIGITADOR
Capítulo 1
O LITÍGIO

O homem não pode viver senão em sociedade. As sociedades são organizações de pessoas para a obtenção de fins comuns, em benefício de cada qual. Mas, se não houvesse um poder, nessas sociedades, restringindo as condutas humanas, elas jamais subsistiriam. Cada um faria o que bem quisesse e entendesse, invadindo a esfera de liberdade do outro, e, desse modo, qualquer agrupamento humano seria caótico. Daí o surgimento do Estado, com os seus indefectíveis elementos: povo, território e governo.

Visando à continuidade da vida em sociedade, à defesa das liberdades individuais, em suma, ao bem-estar geral, os homens organizaram-se em Estado. Desde então eles se submeteram às ordens dos governantes, não mais fazendo o que bem queriam e entendiam, mas o que lhes era permitido ou não proibido.

Evidentemente, nos seus primeiros anos, todos os poderes se enfeixavam nas mãos de uma só pessoa, como no regime tribal, ou na família de tipo patriarcal. Depois, com o crescimento do agrupamento humano, por certo houve necessidade de distribuição de funções, e, finalmente, num estágio mais avançado, os órgãos que desempenhavam as funções mais importantes, as funções básicas, atingiram a posição de Poderes.

A transformação foi paulatina.

Para atingir seus fins, as funções básicas do Estado – legislativa, administrativa e jurisdicional – foram entregues a órgãos distintos: Legislativo, Executivo e Judiciário. Três, pois, os órgãos que se altearam a Poderes.

Eles devem ser independentes e harmônicos entre si. Nenhum deles pode sobrepor-se aos demais dentro nos seus círculos de atribuições. Não há nem deve haver hierarquia entre eles. Cada qual atua dentro nas suas respectivas esferas,

A função do Legislativo é legislar, elaborando leis que venham ao encontro dos reclamos da sociedade, sem ferir a Constituição. A do Executivo, administrar, observando os preceitos legais. A do Judiciário, julgar, aplicando as leis aos casos concretos.

Para manter a harmonia no meio social e, enfim, para atingir os seus objetivos, um dos quais se alça à posição de primordial – o bem-estar geral -, o Estado elabora as leis, por meio das quais se estabelecem normas de conduta, disciplinam-se as relações entre os homens e regulam-se as relações derivadas de certos fatos e acontecimentos que surgem na vida em sociedade. Essas normas, gerais e abstratas, dispõem, inclusive, sobre as consequências que podem advir do seu descumprimento. Em face de um conflito de interesses, desde que juridicamente relevante, a norma dispõe não só quanto à relevância de um deles, como também quanto às consequências da sua lesão.

Tais normas são indispensáveis, para que se saiba o que se pode e o que não se pode fazer. O homem precisa, pois, contribuir para que a sociedade não se destrua, não se extermine, porquanto sua destruição implica seu próprio aniquilamento. Se ele precisa da sociedade, obviamente deve pautar seus atos de acordo com as normas de conduta que lhe são traçadas pelo Estado, responsável pelos destinos, conservação, harmonia e bem-estar da sociedade.

Entretanto, não é isso o que ocorre. Os conflitos de interesses, dos mais singelos aos mais complexos, verificam-se com frequência.

Quando “o sujeito de um dos interesses em conflito encontra resistência do sujeito do outro interesse”, fala-se em lide.

Lide, pois, na difundida lição de Carnelutti, é um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida ou insatisfeita.

Ainda segundo o ensinamento do mestre, denomina-se pretensão a exigência de subordinação de um interesse alheio ao interesse próprio. Na lide, há um interesse subordinante e um subordinado. Um que deve prevalecer, por ser protegido pelo Direito, e outro que deve ser subordinado, por lhe faltar a tutela jurídica.

Mas pouca importância teria essa tarefa do Estado em estabelecer normas de conduta aos seus coassociados com a ameaça de uma sanção se, porventura, não conseguisse um modo razoável para solucionar esses conflitos de interesses que surgem a todo instante na vida em sociedade. E os conflitos se resolvem e ficam solucionados fazendo-se prevalecer o interesse que realmente for tutelado pelo direito objetivo.


De nada valeriam essas normas se o legislador não cominasse sanções àqueles que viessem a transgredi-las. Para as infrações mais graves, sanções mais severas; para os ilícitos menos graves, sanções mais brandas. Mas como resolver esses conflitos?

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição – Editora Saraiva – NOTA INTRODUTÓRIA – VARGAS DIGITADOR

MANUAL DE PROCESSO PENAL – FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO – 9ª Edição – Editora Saraiva – NOTA INTRODUTÓRIA – VARGAS DIGITADOR

As dificuldades da vida moderna, agitada, conturbada, a vontade inopinável da mocidade de querer conciliar o estudo com o struggle for life, a falta de tempo para maiores pesquisas, o número de matérias que consome a vida acadêmica e, ao mesmo tempo, a necessidade de conhecer a disciplina de maneira mais rápida, sem se afastar do seu conteúdo, tudo, tudo levou-me, em face dos longos anos de magistérios a procurar escrever um Manual de Processo Penal que pudesse atender não só aos acadêmicos, mas também àqueles que militam na área criminal, inclusive, e melhormente, os concursandos.

Todos os aspectos fundamentais do Direito Processual Penal, como lei processual no tempo e no espaço, fontes do Direito Processual Penal, interpretação, inquérito, ação penal, ação civil, jurisdição e competência, questões incidentais, prova, sujeitos processuais, prisão e liberdade provisória, citação, notificação, intimação, atos jurisdicionais, nomeadamente a sentença, a coisa julgada, todas as formas procedimentais, os recursos e as ações especiais como o habeas corpus e a revisão criminal, tudo foi posto no Manual, segundo o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência.

Afastei-me das discussões, às vezes até acadêmicas ou bizantinas, como as pertinentes à natureza jurídica da relação processual e da representação, às teorias sobre o direito de ação, das críticas sobre a ação penal privada, sobre ser ou não ser o impeachement verdadeira ação penal, das várias modalidades de indícios e, por último, de temas de Direito Penal que podem ser encontrados em sede própria.

Restringi-me ao essencial, esperando que eventuais interessados em temas aqui não estudados ou procurem resposta nos meus outros trabalhos ou em obras que de há muito integram o nosso acervo de doutrina processual penal.

No Manual, à proporção que são analisadas as matérias objeto dos vários títulos do Código de Processo Penal, há dezenas de indagações (rememorando), para que a própria pessoa que empreendeu a leitura responda. E, se por acaso não o fizer, de certo, instintivamente, monologando, dirá: “acabei de ler esse assunto”, e, assim, será levada a buscar a resposta no corpo do texto. É um modo de memorizar o estudo empreendido. É o meu desejo. Se êxito houver, todos seremos recompensados.

O Autor

Provavelmente, tão logo acabe de digitar este compêndio com o Código Penal de 1940, deverei ser obrigado a realizar outra digitação, haja vista estarmos às portas de nova edição com o Novo Código Penal Brasileiro, que estará valendo a partir do mês de julho de 2015. Acontece, que vejo meus colegas acadêmicos tão sem norte em sua inicial caminhada e estudando agora o que daqui a alguns dias mudará, que, creio, firmemente, se não tiverem este início, muito provavelmente ficarão completamente desconsertados com as novidades, sem terem sequer ideia de por onde começar. (Grifo de Vargas Digitador).

domingo, 29 de março de 2015

DIREITO ECONÔMICO: DIREITO ANTITRUSTE – CAPÍTULO 11 - OBRA DE EUGÊNIO ROSA DE ARAÚJO E APLICADA PELO PROFESSOR FELIPE NOGUEIRA NO CURSO DE DIREITO 8º PERÍODO FAMESC - BJI – 1º SEMESTRE / 2015 - VARGAS DIGITADOR

DIREITO ECONÔMICO: DIREITO ANTITRUSTE – OBRA DE EUGÊNIO ROSA DE ARAÚJO E APLICADA PELO PROFESSOR FELIPE NOGUEIRA NO CURSO DE DIREITO 8º PERÍODO FAMESC - BJI – 1º SEMESTRE / 2015 - VARGAS DIGITADOR

CAPÍTULO 11

No Direito Constitucional brasileiro o art. 170 da Constituição Federal estabelece  como princípios a livre concorrência, a propriedade privada, observada sua função social, a proteção do consumidor e do meio ambiente, ao lado da repressão ao abuso do poder econômico praticado com o objetivo de dominação do mercado, a eliminação da concorrência ou do aumento arbitrário dos lucros, conforme o texto do art. 173, § 4º da CRFB/88.


Disciplinando o tema do Direito Antitruste (LAT) visando à proteção da própria estruturação do mercado e ao seu livre funcionamento, resguardando-o de práticas lesivas aos consumidores, trabalhadores e empresários, o que resulta claro do art. 1º da LAT, onde ficou consignado que a lei “dispõe sobre a repressão a infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico, ressaltando o parágrafo único que a estrutura de mercado, por (art. 219 da CRFB/88) se constituir em direito difuso (transindividual e indisponível) de toda a coletividade, sendo esta a titular do bem jurídico tutelado pela lei antitruste (LAT).”


Importante ressaltar, desde já, que será da conjugação dos arts. 20 e 21 da LAT que exsurgirá a tipificação legal das práticas agressivas à ordem econômica, à concorrência e ao livre mercado, submetendo-as às punições previstas nos arts. 23 e 24 do mesmo diploma.


No que se refere à territorialidade prevista no art. 2º da LAT, optou a legislação antitruste pelo critério da territorialidade objetiva, em vigor também no Direito comunitário, onde o âmbito de validade da lei relaciona-se com o mercado em que se projetaram os efeitos da prática empresarial lesiva à Constituição Econômica.


Se a ação ou o resultado tiver se verificado mesmo em parte, no Brasil, aplica-se a LAT, de forma que se o ilícito afeta o mercado brasileiro, incidirá o comando pertinente e eventuais sanções.


Constituído em forma de autarquia, o CADE, segundo o art. 3º da LAT, constitui-se em pessoa jurídica de direito público, com patrimônio e receita próprios, voltado para a execução de atividades típicas de administração pública que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada.


Embora no REsp 590960, da relatoria do Min. Fux, o Superior Tribunal de Justiça tenha decidido que por serem complexas e técnicas as decisões do CADE são similares às decisões judiciais, discordamos destas afirmação, posto que o texto legal evidencia uma impropriedade, tendo em vista que nosso ordenamento constitucional adotou o sistema de jurisdição única insusceptíveis de revisão com a estabilização criada pela coisa julgada, disso decorrendo que as decisões da autarquia produzem sim, preclusão administrativa, mas não coisa julgada.


Tal conclusão não se altera quando a confrontamos com o art. 50 da LAT que afirma que as decisões do CADE não podem ser revistas ou avocadas administrativamente, bem como do comando do art. 60 que dá as suas decisões força de título executivo extrajudicial, ou ainda, com a letra do art. 65, que impede que ações contra suas decisões suspendam a execução do referido título.


Dentre as competências do CADE previstas no art. 7º da LAT, ressalta em importância a do inciso II, onde incumbe à autarquia decidir sobre a existência de infração contra a ordem econômica, prevista nos arts. 20 e 21, devendo atuar de forma vinculada; não pode o CADE abster-se de verificar a ocorrência do ilícito, o mesmo não ocorrendo no que tange à aplicação das penalidades, onde será possível a atuação discricionária, em razão dos critérios de individualização da pena previstos no art. 27 e no § 1º do art. 54, segundo os quais é facultado ao CADE a aprovação de certos atos de concentração que possam limitar ou prejudicar a livre concorrência, bem como resultar na dominação de mercado relevante de bens e serviços, desde que preencham os requisitos dos incisos I a IV, a saber: aumento da produtividade, melhora da qualidade de bens ou serviços e propiciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico.


Logo, conclui-se que a verificação e análise da ocorrência de inflação contra a ordem econômica são de natureza vinculada, ao passo que a aplicação das penalidades previstas em lei tem cunho discricionário.


Das infrações à ordem econômica tratadas nos arts. 15 a 19, ressalta, em primeiro plano, a figura do sujeito ativo como sendo o empresário, hoje tipificado no novo Código Civil, como sendo “quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens e serviços” (art. 966), sendo certo que o seu espectro de incidência é amplo, abrangendo, por exemplo, empresários individuais, consórcios, microempresas, inclusive pessoas jurídicas de direito público interno que, no exercício de atividades econômicas em sentido estrito (art. 173 da CRFB/88), venham a adotar atitude que colida com a LAT.


A solidariedade dos dirigentes, administradores e sociedades filiadas a grupos, prevista nos arts. 16 e 17 da LAT, implica na responsabilização, não só da empresa, mas também de seus dirigentes e administradores, criando uma dupla sujeição passiva, afora, evidentemente, atividades exercidas por empresário individual. Há uma pluralidade de relações subjetivas e uma unidade objetiva da prestação, vez que cada dirigente ou administrador é obrigado por toda a obrigação e submetido pela responsabilidade. Note-se que no caso das filiadas a regra do direito societário não é a solidariedade, o que para efeito de tutela das estruturas do livre mercado a lei antitruste é lei especial em relação, por exemplo, à Lei das S.A. (arts. 165 a 277).


No art. 18 adotou-se teoria da desconsideração da personalidade jurídica, já prevista no art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, bem como no art. 50 do novo Código Civil, segundo a qual supera-se a autonomia patrimonial existente entre a pessoa jurídica e o sócio ou administrador, quando estes violarem dita autonomia para a realização de fraudes ou abusos de direito, ficando o responsável pelo mau uso da personalidade jurídica da entidade diretamente responsável pela obrigação.


A pessoa jurídica não deixa de existir, os seus atos praticados regularmente continuam eficazes e válidos, apenas ocorrerá uma ineficácia temporária dos seus atos constitutivos. No caso da lei antitruste a teoria da desconsideração poderá ser aplicada tanto na fase de averiguação da existência de infração contra a ordem econômica, quanto por ocasião da aplicação de penalidades.


A repressão das infrações à ordem econômica, não exclui a punição do empresário por ilícitos penais e civil, derivados do mesmo fato gerador previsto na lei antitruste (art. 19), i.e, a sua eventual absolvição criminal não implicará, por exemplo, no pleito civil do lesado, salvo, evidentemente, se restar configurada a inexistência do fato ou autoria. Note-se que o art. 935 do novo Código Civil dispõe que “a responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.”


Quer a lei antitruste, para a caracterização de quaisquer condutas infracionais do art. 21, a indispensável conjugação com o art. 20 e, para tanto, deve ser feita breve análise dos conceitos de livre iniciativa, livre concorrência, mercado relevante e posição dominante.


A livre iniciativa, prevista no art. 170 caput da Constituição Federal como princípio da ordem econômica, implica na possibilidade, ampla em nosso ordenamento, do exercício de qualquer atividade econômica lícita (art. 966 do CCB/02) ou que seja permitida por lei ou autorizada por autoridade competente.


A livre concorrência, prevista no art. 170, IV, da Constituição Federal é desdobramento do princípio da livre iniciativa, complementando-o com sua ponderação e, para tanto, o legislador constituinte no § 4º do art. 174 dispôs que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. A Constituição não condena o exercício do poder econômico; apenas seu abuso suscita a intervenção estatal, coibindo excessos tais como os cartéis e monopólios de rato que venham a turbar o livre funcionamento das estruturas de mercado.


Identifica-se um mercado relevante (art. 20, II, da Lei nº. 8.884/94) levando-se em conta sua configuração ligada a aspectos geográficos, às peculiaridades dos bens e serviços e da análise de inúmeras variantes, buscadas caso a caso. Para que se revele o mercado relevante é necessário identificar o espaço geográfico em que se desenvolvem as relações de concorrência em que atua o agente econômico, bem como as especificidades do bem ou serviço em si, hábitos do seu consumidor, qualidade/necessidade do bem ou serviço, custos, barreiras econômicas que dificultem ou impeçam a produção ou prestação por outros agentes, incentivos creditícios ou fiscais concedidos e a fungibilidade do bem ou serviço, que se traduz na possibilidade de troca do consumo por outro tipo ou qualidade (elasticidade).


Para melhor compreensão da ideia de mercado relevante e seus contornos, muito elucidativo é o exemplo das escovas e pastas de dente.


Pode-se analisar, no Brasil, os mercados destes produtos na região Nordeste ou Sudeste (maior renda x menor renda); verificar a possibilidade de substituição dos bens por outros similares (pasta de dente e escovas não possuem substitutos no mercado); analisar os hábitos do consumidor (Nordeste/preço x Sudeste/qualidade) e, por fim, é possível verificar a existência de barreiras de entrada no mercado, i.e, a dificuldade de produção em pequena escala destes produtos.


Verifica-se que a conquista de mercado decorrente de processo natural fundado na maior eficiência do agente econômico em relação aos seus concorrentes afasta a ilicitude da conduta tipificada no inciso II do art. 20 da Lei n. 8.884/94, nos termos do § 1º do art. 10. Nesse caso, o poder no mercado é incapaz de tipificar a dominação ilícita, em razão dos resultados obtidos pela concorrência natural da maior eficiência por parte do agente econômico.


Note-se que eficiência não se confunde com eficácia. Eficiência significa a aptidão para obter o máximo ou melhor resultado ou rendimento com a menor perda ou o menor dispêndio de esforços e liga-se à noção de rendimento, produtividade e adequação à função, ao passo que a eficácia é aptidão para produzir efeitos.


Identifica-se a posição dominante (art. 20, § 2º, LAT) quando do controle de “parcela substancial do mercado relevante” confere ao seu detentor quantidade de poder econômico tal que passa a exercer influência determinante sobre a concorrência, principalmente no que se refere à formação de preços, seja pelo volume da oferta, seja pela procura, proporcionando elevado grau de independência em face dos demais agentes econômicos de um mercado relevante. A posição dominante só é punida quando haja prejuízo à livre concorrência – o percentual de 20% indica mera presunção relativa, admitindo prova em contrário (de não ter sido violada a livre concorrência e colocado o mercado em risco).


Nem toda restrição à livre concorrência significa domínio de mercado ou abuso de posição dominante. Sem que haja restrição à livre concorrência, as noções isoladas de mercado relevante e posição dominante não são determinantes para o direito antitruste. Dominação de mercados ou abuso de posição dominante se entrosam, na medida em que somente estão configurados enquanto afetarem a livre concorrência.


Dessa forma, para a configuração das infrações previstas nos arts. 20 e 21 da LAT (CRFB/88, art. 173, § 4º), torna-se indispensável a conjugação dos dois dispositivos. A conduta empresarial (art. 21) somente é infratora se o seu efeito, efetivo ou potencial, no mercado estiver configurado no art. 20. Apenas se a conduta produzir efeitos para além das relações econômicas do exclusivo interesse dos agentes diretamente envolvidos é que a própria estrutura do mercado estará em risco.


A responsabilidade administrativa, assim, decorre de avaliação objetiva dos efeitos da conduta empresarial, não interessando se o empresário pretendeu ou não os resultados, agindo culposamente com imprudência, negligência ou imperícia.


Das penas previstas nos arts. 23 a 27 da LAT, importa destacar que as mesmas podem deixar de ser aplicadas se a conduta eventualmente tida como infracional não redundar em malefício à política econômica traçada pelo Poder Executivo, no que se refere à promoção do desenvolvimento regional, à empregabilidade, à robustez da política fiscal etc.


Nesse sentido, a aplicação das penalidades por parte do CADE submete-se ao critério da discricionariedade, embora vinculado à aferição da ocorrência da infração contra a ordem econômica.


O art. 28 da LAT, que tratava da prescrição das infrações contra a ordem econômica, foi revogado pela Lei n. 9.873/99, dispondo em seu art. 1º que “prescreve em cinco anos a ação punitiva da administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor, contados da data do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado”. Dispôs ainda o  § 1º que “incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada”.


Nos termos do § 2º do art. 1º da referida Lei n. 9.873/99, interrompe-se a prescrição pela citação por qualquer ato inequívoco que importe apuração do fato, e nos termos do § 3º suspende-se a prescrição durante a vigência dos compromissos de cessação ou de desempenho, previstos nos arts. 53 e 58 da LAT.


A definitividade administrativa das decisões do CADE está previsto no art. 50 da LAT, o que significa que suas decisões não podem ser revistas ou avocadas tanto por Ministro de Estado quanto pelo Presidente da República, devendo qualquer tipo de irresignação ser direcionado ao Poder Judiciário.


Importante instrumento da lei antitruste é o compromisso de cessação de prática sob investigação, cuja anuência por parte do empresário investigado não importa confissão quanto à matéria de fato, nem reconhecimento da ilicitude da conduta analisada, a teor do art. 53 da LAT. A composição com o empresário realça a atuação preventiva do Estado e visa adequar o comportamento do agente econômico aos padrões concorrenciais previstos na Constituição federal e na norma antitruste.


De arremate, é preciso destacar que o compromisso de cessação constitui título executivo extrajudicial, nos termos do § 4º do art. 53 da LAT, e não se aplica às hipóteses dos incisos I, II e VIII do art. 21 do mesmo diploma.


É preciso relembrar, nesse passo, que nosso ordenamento constitucional adotou como princípio da ordem econômica a livre iniciativa e a livre concorrência (art. 170, caput, e inciso IV), com perfil capitalista e liberal, onde há a apropriação privada dos meios de produção, isto é, as indústrias e os equipamentos que geram a riqueza nacional não são propriedade exclusiva do Estado.


Assim, retomando alguns conceitos do Capítulo I, é necessário ressaltar a noção de concorrência perfeita como modelo abstrato (inexistente na realidade), onde teríamos um mercado, na vertente dos produtores:


          - incapaz de, por si só, baixar os preços por não poder fornecer uma maior quantidade que os concorrentes;

          - onde todos os compradores e vendedores dispusessem do completo conhecimento dos preços do mercado local e de outras praças;

          - a impossibilidade de o vendedor crescer a ponto de dominar o mercado;

          - a inexistência de barreiras de entrada no mercado, permitindo a livre movimentação dos fatores da produção (terra, trabalho e capital) e dos empresários.


No viés da demanda, o modelo de concorrência perfeita traduz a existência de muitos compradores, incapazes de, com o volume de suas aquisições, forçar a queda do preço dos produtos, a informação completa sobre preços, locais de venda e ausência de problemas com transporte e homogeneidade do produto (indiferença em comprar de um ou de outro vendedor).


Instituto de grande importância no direito concorrencial é a figura do Truste, que se identifica na organização ou estrutura econômico-financeira empresarial na qual várias empresas, já detentoras da maior parte do mercado, fundem-se ou combinam-se para assegurar esse controle, estabelecendo preços elevados, controlando a produção e venda de certos produtos e buscando a monopolização do mercado. Pode-se formar através de fusão ou incorporação de uma empresa em outra, holdings ou qualquer agrupamento societário que possa limitar ou prejudicar, de qualquer forma, a livre concorrência e submetido a uma direção única.


O oligopólio, por outro lado, é um tipo de estrutura em que poucas pessoas detêm o controle da maior parcela do mercado (carros, cigarros, lâmpadas, cartões de créditos etc.).


Veja-se, ainda, a nefasta figura do Cartel, que se caracteriza por meio de grupos de empresas independentes que formalizam um acordo para atuação coordenada, com vista a interesses comuns. Seus objetivos mais comuns são: controle do nível de produção e das condições de venda; fixação do controle de preços, controle das fontes de matéria-prima; fixação de margens de lucros e divisão de territórios de operação; divisão de mercados. Assim: preço único, estratégias comuns, vantagens ao monopólio, organização informal ou clandestina, acordo secreto de “cavalheiros” e delimitação de mercados (deve ser destacada a distinção entre cartel interno {entre agentes situados dentro do país} e externo {entre agentes fora do país)}.


O monopólio, mais uma patologia concorrencial, se traduz na forma de organização de mercado em que poucas empresas, em regra de grande porte, são fornecedoras de determinada matéria-prima, produto ou serviço, ao passo que o monopsônio significa a estrutura de mercado em que existe um comprador de uma mercadoria, em geral matéria-prima ou produto, onde os preços não são determinados pelos vendedores, mas pelo único comprador.


Dadas essas concisas explicações preliminares, já explanadas no Capítulo I, passa-se à breve análise das formas de controle de atos restritivos ou prejudiciais à concorrência, do art. 54 da LAT, que dispõe que os atos, sob qualquer forma manifestados  que possam limitar, ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, deverão ser submetidos à apreciação do CADE.


O CADE poderá autorizar os referidos atos desde que tenham por objetivo, cumulada ou alternativamente, aumentar a produtividade, melhorar a qualidade de bens ou serviços, ou, ainda, propiciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico (inciso I do art. 54 da Lei n. 8.884/94).


Do mesmo modo, podem ser autorizados os atos em que os benefícios decorrentes sejam distribuídos equitativamente entre seus participantes, de um lado, e os consumidores ou usuários finais de outro (inciso II), os que não impliquem eliminação de concorrência da parte substancial de mercado relevante de bens e serviços (inciso III), e nos quais sejam observados os limites estritamente necessários para atingir os objetivos visados (inciso IV).


Poderão ser, ainda, considerados legítimos os atos acima indicados quando necessários por motivos preponderantes da economia nacional, do bem comum, e não impliquem em prejuízo ao consumidor ou usuário final, desde que atenda a, pelo menos, 3 (três) das condições previstas nos incisos I a IV do § 1º do art. 54.


Logo, os ajustes, acordos ou convenções entre empresas de qualquer natureza que produzam efeitos concorrenciais têm validade desde sua celebração, ficando sua eficácia sob condição resolutiva tácita, visto que o controle pelo CADE é a posteriori.


Ocorrem aqui as denominadas regras da razão, as isenções e as autorizações que se constituem em técnicas destinadas a viabilizar a realização de uma determinada prática, ainda que restritiva da concorrência, afastando-se as barreiras legais a sua concretização.


Na regra da razão, somente são consideradas ilegais as práticas que restrinjam a concorrência de forma não razoável ao livre comércio (EUA).


No modelo europeu de isenções, a restrição pode não ser aplicada a determinada atividade caso acarrete a melhoria da produção ou distribuição de bens ou ainda o progresso técnico ou econômico, caracterizando um controle a posteriori.


Por fim, nas autorizações, também de controle posterior, as práticas produzem efeitos plenos até serem formalmente proibidas, conforme o º 4º do art. 54 da LAT.


Estão incluídos no comando do art. 54 da Lei n. 8.884/94 os atos que, de qualquer forma, resultem em participação de empresa ou grupo de empresas resultante em 20% (vinte por cento) de um mercado relevante, seja através de fusão ou incorporação de empresas, constituição de sociedade para exercer controle de empresas de qualquer forma de agrupamento societário, a teor do seu § 3º.


Os atos de que trata o art. 54 deverão ser apresentados para exame, previamente ou no prazo máximo de 15 (quinze) dias úteis de sua realização (§ 4º), sob pena de ineficácia retroativa a esta data (§ 7º), sendo certo que, se não apreciados no prazo de 60 (sessenta) dias, previsto no § 6º, serão automaticamente aprovados (§ 7º, parte final).


A rejeição por parte do CADE (§ 8º) poderá gerar a determinação, por parte da autarquia, de sua desconstituição, total ou parcial, através de distrato, cisão de sociedade, venda de ativos, cessação parcial de atividades ou qualquer ato ou providência que elimine os efeitos nocivos à ordem econômica, independentemente da responsabilidade civil por perdas e danos eventualmente causados a terceiros.



A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) deve comunicar ao CADE as mudanças de controle acionário de companhias abertas e os registros de fusão para análise (§ 10 do art. 54).